UNESP 2022 assim como a língua de um povo

Questão 3

2022Português

(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 1) Leia a crnica Almaspenadas, de Olavo Bilac, publicada originalmente em 1902 Outro fantasma?... verdade: outro fantasma. J tardava. O Rio de Janeiro no pode passar muito tempo sem o seu lobisomem. Parece que tudo aqui concorre para nos impelir ao amor do sobrenatural [...]. Agora, j se no adormecem as crianas com histrias de fadas e de almas do outro mundo. Mas, ainda h menos de cinquenta anos, este era um povo de beatos [...]. [...] Os tempos melhoraram, mas guardam ainda um pouco dessa primitiva credulidade. Inventar um fantasma ainda um magnfico recurso para quem quer levar abom termo qualquer grossa patifaria. As almas simples vo propagando o terror, e, sob a capa e a salvaguarda desse temor, os patifes vo rejubilando. O novo espectro que nos aparece o de Catumbi. Comeou a surgir vagamente, sem espalhafato, pelo pacato bairro como um fantasma de grande e louvvel modstia. E to esbatido1passava o seu vulto na treva, to sutilmente deslizava ao longo das casas adormecidas que as primeiras pessoas que o viram no puderam em conscincia dizerse era duende macho ou duende fmea. [...] O fantasma no falava naturalmente por saber de longa data que pela boca que morrem os peixes e os fantasmas... Tambm, ningum lhe falava no por experincia, mas por medo.Porque, enfim, pode um homem ter nascido num sculo de luzes e de descrenas, e ter mamado o leite do liberalismo nos estafados seios da Revoluo Francesa, e no acreditar nem em Deus nem no Diabo e, apesar disso, sentir avoz presa na garganta, quando encontra na rua, a desoras2, uma avantesma3... Assim, um profundo mistrio cercava a existncia do lobisomem de Catumbi quando comearam de aparecer vestgios assinalados de sua passagem, no j pelas ruas, maspelo interior das casas. No vades agora crer que se tenham sumido, por exemplo, as hstias consagradas da igreja de Catumbi, ou que os empregados do cemitrio de S. Francisco de Paula tenham achado alguma sepultura vazia, ou que algum circunspecto pai de famlia, certa manh, ao despertar, tenha dado pela falta... da prpria alma. Nada disso. Os fenmenos eram outros. Desta casa sumiram-se as arandelas, daquela outra as galinhas, daquela outra as joias... E a polcia, finalmente, adquiriu a convico de que o lobisomem, para perptua e suprema vergonha de toda a sua classe, andava acumulando novos pecados sobre os pecados antigos, e dando-se prtica de excessos menos merecedores de exorcismos que de cadeia. Dizem as folhas4que a polcia, competentemente munida de bentinhos5e de revlveres, de amuletos e de sabres, assaltou anteontem o reduto do fantasma. Um jornal, dando conta da diligncia, disse que o delegado achou dentro da casa sinistra um velho pardieiro6que fica no topo de uma ladeira ngreme alguns objetos singulares que pareciam instrumentos pertencentes a gatunos. E acrescentou: alguns morcegos esvoaavam espavoridos, tentando apagar as velas acesas que os sitiantes7empunhavam. Esta nota de morcegos deve ser um chique romntico donoticiarista. No fundo da alma de todo o reprter h sempre um poeta... Vamos l! nestes tempos, que correm, j nem h morcegos. Esses feios quirpteros, esses medonhos ratos alados, companheiros clssicos do terror noturno, j no aparecem pelo bairro civilizado de Catumbi. Os animais, que esvoaavam espavoridos, eram sem dvida os franges roubados aos quintais das casas... Ai dos fantasmas! e mal dos lobisomens! o seu tempo passou. (Olavo Bilac.Melhores crnicas, 2005.) 1esbatido: de tom plido. 2a desoras: muito tarde. 3avantesma: alma do outro mundo, fantasma, espectro. 4folha: peridico dirio, jornal. 5bentinho: objeto de devoo contendo oraes escritas. 6pardieiro: prdio velho ou arruinado. 7sitiante: policial. Porque, enfim, pode um homem ter nascido num sculo de luzes e de descrenas, e ter mamado o leite do liberalismo nos estafados seios da Revoluo Francesa, e no acreditar nem em Deus nem no Diabo e, apesar disso, sentir a voz presa na garganta, quando encontra na rua, a desoras, uma avantesma... (2o pargrafo) Nesse trecho, o cronista acaba por desconstruir a oposio entre


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Questão 16

2022Português

(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Leia o trecho inicial da crnica Est aberta a sesso do jri, de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1943. O Dr. Frana, Juiz de Direito numa cidadezinha sertaneja, andava em meio sculo, tinha gravidade imensa, verbo escasso, bigodes, colarinhos, sapatos e ideias de pontas muito finas. Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na justia procedessem da mesma forma e chegou a mandar retirar-se do Tribunal um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razovel e fnebre, para no prejudicar a decncia do veredicto. No via, no sorria. Quando parava numa esquina, as cavaqueiras dos vadios gelavam. Ao afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta centmetros, exatos, apesar de barrocas e degraus. A espinha no se curvava, embora descesse ladeiras, as mos e os braos executavam os movimentos indispensveis, as duas rugas horizontais da testa no se aprofundavam nem se desfaziam. Na sua biblioteca digna e sbia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na encadernao negra semelhante do proprietrio, empertigavam-se e nenhum ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso. Dr. Frana levantava-se s sete horas e recolhia-se meia-noite, fizesse frio ou calor, almoava ao meio-dia e jantava s cinco, ouvia missa aos domingos, comungava de seis em seis meses, pagava o aluguel da casa no dia 30 ou no dia 31, entendia-se com a mulher, parcimonioso, na linguagem usada nas sentenas, linguagem arrevesada e arcaica das ordenaes. Nunca julgou oportuno modificar esses hbitos salutares. No amou nem odiou. Contudo exaltou a virtude, emanao das existncias calmas, e condenou o crime, infeliz consequncia da paixo. Se atentssemos nas palavras emitidas por via oral, poderamos afirmar que o Dr. Frana no pensava. Vistos os autos, etc., perceberamos entretanto que ele pensava com alguma frequncia. Apenas o pensamento de Dr. Frana no seguia a marcha dos pensamentos comuns. Operava, se nonos enganamos, deste modo: considerando isto, considerando isso, considerando aquilo, considerando ainda mais isto, considerando porm aquilo, concluo. Tudo se formulava em obedincia s regras e era impossvel qualquer desvio. Dr. Frana possua um esprito, sem dvida, esprito redigido com circunlquios, dividido em captulos, ttulos, artigos e pargrafos. E o que se distanciava desses pargrafos, artigos, ttulos e captulos no o comovia, porque Dr. Frana est livre dos tormentos da imaginao. (Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas, 1976.) 1barroca: monte de terra ou de barro. Na crnica, o Dr. Frana caracterizado como


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Questão 16

2018Português

(UNESP - 2018 - 1 FASE) Leia o trecho do conto Pai contra me, de Machado de Assis (1839-1908), para responder (s) questo(es). A escravido levou consigo ofcios e aparelhos, como ter sucedido a outras instituies sociais. No cito alguns aparelhos seno por se ligarem a certo ofcio. Um deles era o ferro ao pescoo, outro o ferro ao p; havia tambm a mscara de folha de flandres. A mscara fazia perder o vcio da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha s trs buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrs da cabea por um cadeado. Com o vcio de beber, perdiam a tentao de furtar, porque geralmente era dos vintns do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e a ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal mscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcana sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, venda, na porta das lojas. Mas no cuidemos de mscaras. O ferro ao pescoo era aplicado aos escravos fujes. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa tambm, direita ou esquerda, at ao alto da cabea e fechada atrs com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. H meio sculo, os escravos fugiam com frequncia. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravido. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia algum de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono no era mau; alm disso, o sentimento da propriedade moderava a ao, porque dinheiro tambm di. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, no raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganh-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anncios nas folhas pblicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito fsico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificao. Quando no vinha a quantia, vinha promessa: gratificar-se- generosamente ou receber uma boa gratificao. Muita vez o anncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalo, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse. Ora, pegar escravos fugidios era um ofcio do tempo. No seria nobre, mas por ser instrumento da fora com que se mantm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implcita das aes reivindicadoras. Ningum se metia em tal ofcio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptido para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir tambm, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pr ordem desordem. (Contos: uma antologia, 1998.) A perspectiva do narrador diante das situaes e dos fatos relacionados escravido marcada, sobretudo,


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Questão

2018Português

(UNESP - 2018 - 2 FASE) Para responder (s) questo(es), leia o trecho inicial do conto Desenredo, do escritor Joo Guimares Rosa (1908-1967). Do narrador a seus ouvintes: J Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para no ser clebre. Com elas quem pode, porm? Foi Ado dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livria, Rivlia ou Irlvia, a que, nesta observao, a J Joaquim apareceu. Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e po. Alis, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e J Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em mpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notrio, na valentia com cime; e as aldeias so a alheia vigilncia. Ento ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo mundo. Todo abismo navegvel a barquinhos de papel. No se via quando e como se viam. J Joaquim, alm disso, existindo s retrado, minuciosamente. Esperar reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. At que deu-se o desmastreio. O trgico no vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro Sem mais c nem mais l, mediante revlver, assustou-a e matou-o. Diz-se, tambm, que de leve a ferira, leviano modo. J Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decbito dorsal, por dores, frios, calores, qui lgrimas, devolvido ao barro, entre o inefvel e o infando. Imaginara-a jamais a ter o p em trs estribos; chegou a maldizer de seus prprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de v-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de to vermelha e preta amplitude. Ela longe sempre ou ao mximo mais formosa, j sarada e s. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoes. Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim impossvel? Azarado fugitivo, e como Providncia praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo engenhoso. Soube-o logo J Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas j medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou ela sutil como uma colher de ch, grude de engodos, o firme fascnio. Nela acreditou, num abrir e no fechar de ouvidos. Da, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escndalo popular, por que forma fosse. (Tutameia, 1979.) a) Considere os seguintes provrbios: 1. A desgraa vem sem ser chamada. 2. desgraa ningum foge. 3. At com a desgraa a gente se acostuma. 4. Desgraa pouca bobagem. 5. A desgraa de uns o bem de outros. Qual dos provrbios mais se aproxima da ideia contida em O trgico no vem a conta-gotas. (6 pargrafo)? Justifique sua resposta. b) Reescreva a frase Com elas quem pode, porm? (2 pargrafo), substituindo o pronome elas pelo seu referente e a conjuno porm por outra de sentido equivalente.


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Questão 4

2017Português

(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. (2 pargrafo) Em relao ao perodo do qual faz parte, a orao destacada exprime ideia de


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Questão 3

2021Português

(UNESP - 2021 - 2 FASE) Leia a crnica de Machado de Assis, publicada em 19.05.1888. Eu perteno a uma famlia de profetasaprs coup,post facto,depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holands. Por isso digo, e juro se necessrio for, que toda a histria desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforri-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notcias dissessem trinta e trs (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simblico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha lngua), levantei-me eu com a taa de champanha e declarei que, acompanhando as ideias pregadas por Cristo, h dezoito sculos, restitua a liberdade ao meu escravo Pancrcio; que entendia que a nao inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens no podiam roubar sem pecado. Pancrcio, que estava espreita, entrou na sala, como um furaco, e veio a abraar-me os ps. Um dos meus amigos (creio que ainda meu sobrinho) pegou de outra taa, e pediu ilustre assembleia que correspondesse ao ato que eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entregueia carta ao molecote. Todos os lenos comovidos apanharam as lgrimas de admirao. Ca na cadeira e no vi mais nada. De noite, recebi muitos cartes. Creio que esto pintando o meu retrato, e suponho que a leo. No dia seguinte, chamei Pancrcio e disse-lhe com rara franqueza: Tu s livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, j conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que Oh! meu senh! fico. Um ordenado pequeno, mas que h de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje ests mais alto que eu. Deixa ver; olha, s mais alto quatro dedos Artura no qu diz nada, no, senh Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-ris; mas de gro em gro que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. Eu vaio um galo, sim, senh. Justamente. Pois seis mil-ris. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. Pancrcio aceitou tudo; aceitou at um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me no escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, no podia anular o direito civil adquirido por um ttulo que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu o meu bom Pancrcio; da para c, tenho-lhe despedido alguns pontaps, um ou outro puxo de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe no chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que at alegre. O meu plano est feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolio legal, j eu, em casa, na modstia da famlia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notcia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples suposio) ento professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente polticos, no so os que obedecem lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: s livre, antes que o digam os poderes pblicos, sempre retardatrios, trpegos e incapazes de restaurar a justia na terra, para satisfao do cu. (Machado de Assis.Crnicas escolhidas, 2013.) 1aprs coup: a posteriori. 2post facto: aps o fato. 3coup du milieu: bebida, s vezes acompanhada de brindes, que se tomava no meio de um banquete. O trecho profetas aprs coup, post facto, depois do gato morto (1pargrafo) sugere que o narrador se considera um profeta de fatos ou eventos


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(UNESP - 2015/2 - 1 FASE) Aquesto focalizaum trecho de uma crnica do escritor Graciliano Ramos (1892-1953). Para chegar ao soberbo resultado de transformar a banha em fibra, a vem o futebol. Mas por que o futebol? No seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? No que me repugne a introduo de coisas exticas entre ns. Mas gosto de indagar se elas sero assimilveis ou no. No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituio alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho hbrido que possa viver c em casa. De outro modo, resignemo-nos s broncas tradies dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-me que o futebol no se adapta a estas boas paragens do cangao. roupa de emprstimo, que no nos serve. Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um pas necessrio, no s que se harmonize com a ndole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar no esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indgena. preciso, pois, que v preencher uma lacuna, como diz o chavo. O do futebol no preenche coisa nenhuma, pois j temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes1jogam com uma percia que deixaria o mais experimentadosportmanbritnico de queixo cado. Os campees brasileiros no teriam feito a figura triste que fizeram em Anturpia se a bola figurasse nos programas das Olimpadas e estivessem a disput-la quatro sujeitos de pulso. Apenas um representante nosso conseguiu ali distinguir-se, no tiro de revlver, o que pouco lisonjeiro para a vaidade de um pas em que se fala tanto. Aqui seria muito mais fcil o indivduo salientar-se no tiro de espingarda umbiguda, emboscado atrs de um pau. Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O futebol no pega, tenham a certeza. No vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importncia. No confundamos. As grandes cidades esto no litoral; isto aqui diferente, serto. As cidades regurgitam de gente de outras raas ou que pretende ser de outras raas; ns somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego. Nas cidades os viciados elegantes absorvem o pio, a cocana, a morfina; por aqui h pessoas que ainda fumam liamba2. 1mambembe: medocre, reles, de baixa condio. 2liamba: cnhamo, maconha. (Linhas tortas, 1971.) No fragmento da crnica, publicada pela primeira vez em 1921, o cronista considerava que:


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(UNESP - 2015/2 - 1 FASE) A questo aborda uma passagem da pea teatralFrei Lus de Sousa, de Almeida Garrett (1799-1854). Cena V JORGE, MADALENA E MARIA JORGE Ora seja Deus nesta casa! (Maria beija-lhe o escapulrio1e depois a mo; Madalena somente o escapulrio.) MADALENA Sejais bem-vindo, meu irmo! MARIA Boas tardes, tio Jorge! JORGE Minha senhora mana! A bno de Deus te cubra, filha! Tambm estou desassossegado como vs, mana Madalena: mas no vos aflijais, espero que no h de ser nada. certo que tive umas notcias de Lisboa... MADALENA (assustada) Pois que , que foi? JORGE Nada, no vos assusteis; mas bom que estejais prevenida, por isso vo-lo digo. Os governadores querem sair da cidade... um capricho verdadeiro... Depois de aturarem metidos ali dentro toda a fora da peste, agora que ela est, se pode dizer, acabada, que so rarssimos os casos, que por fora querem mudar de ares. MADALENA Pois coitados!... MARIA Coitado do povo! Que mais valem as vidas deles? Em pestes e desgraas assim, eu entendia, se governasse, que o servio de Deus e do rei me mandava ficar, at a ltima, onde a misria fosse mais e o perigo maior, para atender com remdio e amparo aos necessitados. Pois, rei no quer dizer pai comum de todos? JORGE A minha donzela Teodora! Assim , filha, mas o mundo doutro modo: que lhe faremos? MARIA Emend-lo. JORGE (para Madalena, baixo) Sabeis que mais? Tenho medo desta criana. MADALENA (do mesmo modo) Tambm eu. JORGE (alto) Mas enfim, resolveram sair: e sabereis mais que, para corte e buen retiro dos nossos cinco reis, os senhores governadores de Portugal por D. Filipe de Castela, que Deus guarde, foi escolhida esta nossa boa vila de Almada, que o deveu fama de suas guas sadias, ares lavados e graciosa vista. MADALENA Deix-los vir. JORGE Assim : que remdio! Mas ouvi o resto. O nosso pobre Convento de So Paulo tem de hospedar o senhor arcebispo D. Miguel de Castro, presidente do governo. Bom prelado ele; e, se no fosse que nos tira do humilde sossego de nossa vida, por vir como senhor e prncipe secular... o mais, pacincia. Pior o vosso caso... MADALENA O meu! JORGE O vosso e de Manuel de Sousa: porque os outros quatro governadores e aqui est o que me mandaram dizer em muito segredo de Lisboa dizem que querem vir para esta casa, e pr aqui aposentadoria2. MARIA (com vivacidade) Fechamos-lhes as portas. Metemos a nossa gente dentro o tero3 de meu pai tem mais de seiscentos homens e defendemo-nos. Pois no uma tirania?... E h de ser bonito!... Tomara eu ver seja o que for que se parea com uma batalha! JORGE Louquinha! MADALENA Mas que mal fizemos ns ao conde de Sabugal e aos outros governadores, para nos fazerem esse desacato? No h por a outras casas; e eles no sabem que nesta h senhoras, uma famlia... e que estou eu aqui?... (Teatro, vol. 3, 1844.) 1 escapulrio: faixa de tecido que frades e freiras de certas ordens religiosas crists usam pendente sobre o peito. 2 pr aposentadoria: ficar, morar. 3tero: corpo de tropas dos exrcitos portugus e espanhol dos sculos XVI e XVII. Ao contradizer a me, aps ouvir esta dizer Pois coitados!..., a personagem Maria manifesta


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(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia o trecho extrado do artigo Cosmologia, 100, de Antonio Augusto Passos Videira e Cssio Leite Vieira Vou conduzir o leitor por uma estrada que eu mesmo percorri, rdua e sinuosa. A frase que tem algo da essncia do hoje clssico A estrada no percorrida (1916), do poeta norte-americano Robert Frost (1874-1963) est em um artigo cientfico publicado h cem anos, cujo teor constitui um marco histrico da civilizao. Pela primeira vez, cerca de 50 mil anos depois de o Homo sapiens deixar uma mo com tinta estampada em uma pedra, a humanidade era capaz de descrever matematicamente a maior estrutura conhecida: o Universo. A faanha intelectual levava as digitais de Albert Einstein (1879-1955). Ao terminar aquele artigo de 1917, o fsico de origem alem escreveu a um colega dizendo que o que produzira o habilitaria a ser internado em um hospcio. Mais tarde, referiu-se ao arcabouo terico que havia construdo como um castelo alto no ar. O Universo que saltou dos clculos de Einstein tinha trs caractersticas bsicas: era finito, sem fronteiras e esttico o derradeiro trao alimentaria debates e traria arrependimento a Einstein nas dcadas seguintes. Em Consideraes Cosmolgicas na Teoria da Relatividade Geral, publicado em fevereiro de 1917 nos Anais da Academia Real Prussiana de Cincias, o cientista construiu (de modo muito visual) seu castelo usando as ferramentas que ele havia forjado pouco antes: a teoria da relatividade geral, finalizada em 1915, esquema terico j classificado como a maior contribuio intelectual de uma s pessoa cultura humana. Esse bloco matemtico impenetrvel (mesmo para fsicos) nada mais do que uma teoria que explica os fenmenos gravitacionais. Por exemplo, por que a Terra gira em torno do Sol ou por que um buraco negro devora avidamente luz e matria. Com a introduo da relatividade geral, a teoria da gravitao do fsico britnico Isaac Newton (1642-1727) passou a ser um caso especfico da primeira, para situaes em que massas so bem menores do que as das estrelas e em que a velocidade dos corpos muito inferior da luz no vcuo (300 mil km/s). Entre essas duas obras de respeito (de 1915 e de 1917), impressiona o fato de Einstein ter achado tempo para escrever uma pequena joia, Teoria da Relatividade Especial e Geral, na qual populariza suas duas teorias, incluindo a de 1905 (especial), na qual mostrara que, em certas condies, o espao pode encurtar, e o tempo, dilatar. Tamanho esforo intelectual e total entrega ao raciocnio cobraram seu pedgio: Einstein adoeceu, com problemas no fgado, ictercia e lcera. Seguiu debilitado at o final daquela dcada. Se deslocados de sua poca, Einstein e sua cosmologia podem ser facilmente vistos como um ponto fora da reta. Porm, a historiadora da cincia britnica Patricia Fara lembra que aqueles eram tempos de cosmologias, de vises globais sobre temas cientficos. Ela cita, por exemplo, a teoria da deriva dos continentes, do gelogo alemo Alfred Wegener (1880-1930), marcada por uma viso cosmolgica da Terra. Fara d a entender que vrias reas da cincia, naquele incio de sculo, passaram a olhar seus objetos de pesquisa por meio de um prisma mais amplo, buscando dados e hipteses em outros campos do conhecimento. Folha de S.Paulo, 01.01.2017. Adaptado. Ao escrever a seu colega dizendo que o que produzira o habilitaria a ser internado em um hospcio (3pargrafo), Einstein reconhece, em relao ao artigo de 1917, seu carter


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Questão 4

2021Português

(UNESP - 2021 - 2 FASE) Leia a crnica de Machado de Assis, publicada em 19.05.1888. Eu perteno a uma famlia de profetasaprs coup,post facto,depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holands. Por isso digo, e juro se necessrio for, que toda a histria desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforri-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notcias dissessem trinta e trs (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simblico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha lngua), levantei-me eu com a taa de champanha e declarei que, acompanhando as ideias pregadas por Cristo, h dezoito sculos, restitua a liberdade ao meu escravo Pancrcio; que entendia que a nao inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens no podiam roubar sem pecado. Pancrcio, que estava espreita, entrou na sala, como um furaco, e veio a abraar-me os ps. Um dos meus amigos (creio que ainda meu sobrinho) pegou de outra taa, e pediu ilustre assembleia que correspondesse ao ato que eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entregueia carta ao molecote. Todos os lenos comovidos apanharam as lgrimas de admirao. Ca na cadeira e no vi mais nada. De noite, recebi muitos cartes. Creio que esto pintando o meu retrato, e suponho que a leo. No dia seguinte, chamei Pancrcio e disse-lhe com rara franqueza: Tu s livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, j conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que Oh! meu senh! fico. Um ordenado pequeno, mas que h de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje ests mais alto que eu. Deixa ver; olha, s mais alto quatro dedos Artura no qu diz nada, no, senh Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-ris; mas de gro em gro que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. Eu vaio um galo, sim, senh. Justamente. Pois seis mil-ris. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. Pancrcio aceitou tudo; aceitou at um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me no escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, no podia anular o direito civil adquirido por um ttulo que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu o meu bom Pancrcio; da para c, tenho-lhe despedido alguns pontaps, um ou outro puxo de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe no chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que at alegre. O meu plano est feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolio legal, j eu, em casa, na modstia da famlia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notcia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples suposio) ento professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente polticos, no so os que obedecem lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: s livre, antes que o digam os poderes pblicos, sempre retardatrios, trpegos e incapazes de restaurar a justia na terra, para satisfao do cu. (Machado de Assis.Crnicas escolhidas, 2013.) 1aprs coup: a posteriori. 2post facto: aps o fato. 3coup du milieu: bebida, s vezes acompanhada de brindes, que se tomava no meio de um banquete. Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notcias dissessem trinta e trs (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simblico. (2pargrafo) No contexto em que se inserem, as oraes sublinhadas expressam, respectivamente, ideia de


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(UNESP - 2015 - 2 FASE) Nota preliminar 1 Em todo o momento de atividade mental acontece em ns um duplo fenmeno de percepo: ao mesmo tempo que temos conscincia dum estado de alma, temos diante de ns, impressionando-nos os sentidos que esto virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para convenincia de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepo. 2 Todo o estado de alma uma paisagem. Isto , todo o estado de alma no s representvel por umapaisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. H em ns um espao interior onde a matria da nossa vida fsica se agita. Assim uma tristeza um lago morto dentro de ns, uma alegria um dia de sol no nosso esprito. E mesmo que se no queira admitir que todo o estado de alma uma paisagem pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser H sol nos meus pensamentos,ningum compreender que os meus pensamentos esto tristes. 3 Assim tendo ns, ao mesmo tempo, conscincia do exterior e do nosso esprito, e sendo o nosso esprito uma paisagem, temos ao mesmo tempo conscincia de duas paisagens. Ora essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo num dia de sol uma alma triste no pode estar to triste como num dia de chuva e, tambm, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que na ausncia da amada o sol no brilha, e outras coisas assim. (Obra potica, 1965.) Paisagem holandesa No me sais da memria. s tu, querida amiga, Uma imagem que eu vi numa aguarela1 antiga. Era na Holanda. Um fim de tarde. Um cu lavado. Frondes abrindo no ar um plio recortado... 5 Um moinho beira dgua e imensa e desconforme A pincelada verde-azul de um barco enorme. A casaria alm... Perto o cais refletindo Uma barra de sombra entre as guas bulindo... E, debruada ao cais, olhando a tarde imensa, 10 Uma rapariguinha olha as guas e pensa... loira e triste. Nos seus olhos claros anda A mesma paz que envolve a paisagem da Holanda. Paira o silncio... Uma ave passa, arminho2 e gaza3, flor dgua, acenando adeus com o leno da asa... 15 a saudade de Algum que anda extasiado, a esmo, Com a paisagem da Holanda escondida em si mesmo, Com aquela rapariga a sofrer e a cismar Num pr de sol que d vontade de chorar... Ai no ser eu um moinho isolado e tristonho 20 Para viver como na paz de um grande sonho, A refletir a minha vida singular Na gua dormente, na gua azul do teu olhar... (Toda uma vida de poesia, 1957.) 1 aguarela: aquarela. 2 arminho: pele ou pelo do arminho; muito alvo, muito branco, alvura (sentido figurado). 3 gaza: tecido fino, transparente, feito de seda ou algodo. Em todo o momento de atividade mental acontece em ns um duplo fenmeno de percepo. Na orao transcrita, que inicia o comentrio de Fernando Pessoa, explique por que, sob o ponto de vista gramatical, a forma verbal acontece est flexionada na terceira pessoa do singular.


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(UNESP - 2015/2 - 1 FASE) A questo aborda uma passagem da pea teatralFrei Lus de Sousa, de Almeida Garrett (1799-1854). Cena V JORGE, MADALENA E MARIA JORGE Ora seja Deus nesta casa! (Maria beija-lhe o escapulrio1e depois a mo; Madalena somente o escapulrio.) MADALENA Sejais bem-vindo, meu irmo! MARIA Boas tardes, tio Jorge! JORGE Minha senhora mana! A bno de Deus te cubra, filha! Tambm estou desassossegado como vs, mana Madalena: mas no vos aflijais, espero que no h de ser nada. certo que tive umas notcias de Lisboa... MADALENA (assustada) Pois que , que foi? JORGE Nada, no vos assusteis; mas bom que estejais prevenida, por isso vo-lo digo. Os governadores querem sair da cidade... um capricho verdadeiro... Depois de aturarem metidos ali dentro toda a fora da peste, agora que ela est, se pode dizer, acabada, que so rarssimos os casos, que por fora querem mudar de ares. MADALENA Pois coitados!... MARIA Coitado do povo! Que mais valem as vidas deles? Em pestes e desgraas assim, eu entendia, se governasse, que o servio de Deus e do rei me mandava ficar, at a ltima, onde a misria fosse mais e o perigo maior, para atender com remdio e amparo aos necessitados. Pois, rei no quer dizer pai comum de todos? JORGE A minha donzela Teodora! Assim , filha, mas o mundo doutro modo: que lhe faremos? MARIA Emend-lo. JORGE (para Madalena, baixo) Sabeis que mais? Tenho medo desta criana. MADALENA (do mesmo modo) Tambm eu. JORGE (alto) Mas enfim, resolveram sair: e sabereis mais que, para corte e buen retiro dos nossos cinco reis, os senhores governadores de Portugal por D. Filipe de Castela, que Deus guarde, foi escolhida esta nossa boa vila de Almada, que o deveu fama de suas guas sadias, ares lavados e graciosa vista. MADALENA Deix-los vir. JORGE Assim : que remdio! Mas ouvi o resto. O nosso pobre Convento de So Paulo tem de hospedar o senhor arcebispo D. Miguel de Castro, presidente do governo. Bom prelado ele; e, se no fosse que nos tira do humilde sossego de nossa vida, por vir como senhor e prncipe secular... o mais, pacincia. Pior o vosso caso... MADALENA O meu! JORGE O vosso e de Manuel de Sousa: porque os outros quatro governadores e aqui est o que me mandaram dizer em muito segredo de Lisboa dizem que querem vir para esta casa, e pr aqui aposentadoria2. MARIA (com vivacidade) Fechamos-lhes as portas. Metemos a nossa gente dentro o tero3 de meu pai tem mais de seiscentos homens e defendemo-nos. Pois no uma tirania?... E h de ser bonito!... Tomara eu ver seja o que for que se parea com uma batalha! JORGE Louquinha! MADALENA Mas que mal fizemos ns ao conde de Sabugal e aos outros governadores, para nos fazerem esse desacato? No h por a outras casas; e eles no sabem que nesta h senhoras, uma famlia... e que estou eu aqui?... (Teatro, vol. 3, 1844.) 1 escapulrio: faixa de tecido que frades e freiras de certas ordens religiosas crists usam pendente sobre o peito. 2 pr aposentadoria: ficar, morar. 3tero: corpo de tropas dos exrcitos portugus e espanhol dos sculos XVI e XVII. Nada, no vos assusteis; mas bom que estejais prevenida, por isso vo-lo digo. Em relao forma verbal digo, os pronomes oblquos tonos vo-lo atuam, respectivamente, como


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(UNESP - 2014 - 1 FASE) A questo focaliza uma passagem do romancegua-Me, de Jos Lins do Rego (1901-1957). gua-Me Jogava com toda a alma, no podia compreender como um jogador se encostava, no se entusiasmava com a bola nos ps. Atirava-se, no temia a violncia e com a sua agilidade espantosa, fugia das entradas, dos pontaps. Quando aquele back1, num jogo de subrbio, atirou-se contra ele, recuou para derrub-lo, e com tamanha sorte que o bruto se estendeu no cho, como um fardo. E foi assim crescendo a sua fama. Aos poucos se foi adaptando ao novo Joca que se formara nos campos do Rio. Dormia no clube, mas a sua vida era cada vez mais agitada. Onde quer que estivesse, era reconhecido e aplaudido. Os garons no queriam cobrar as despesas que ele fazia e at mesmo nos nibus, quando ia descer, o motorista lhe dizia sempre: Joca, voc aqui no paga. Quando entrava no cinema era reconhecido. Vinham logo meninos para perto dele. Sabia que agradava muito. No clube tinha amigos. Havia porm o antigo center-forward2que se sentiu roubado com a sua chegada. No tinha razo. Ele fora chamado. No se oferecera. E o homem se enfureceu com Joca. Era um jogador de fama, que fora grande nos campos da Europa e por isso pouco ligava aos que no tinham o seu cartaz. A entrada de Joca, o sucesso rpido, a maravilha de agilidade e de oportunismo, que caracterizava o jogo do novato, irritava-o at ao dio. No dia em que tivera que ceder a posio, a um menino do Cabo Frio, fora para ele como se tivesse perdido as duas pernas. Viram-no chorando, e por isso concentrou em Joca toda a sua raiva. No entanto, Joca sempre o procurava. Tinha sido a sua admirao, o seu heri. 1 Beque, ou seja, o zagueiro de hoje. 2 Centroavante. (gua-Me, 1974.) No dia em que tivera que ceder a posio, a um menino do Cabo Frio, fora para ele como se tivesse perdido as duas pernas. Segundo o contexto, a imagem como se tivesse perdido as duas pernas revela, com grande expressividade e fora emocional,


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Questão 18

2021Português

(UNESP - 2021 - 1 FASE) Leia a narrativa O leo, o burro e o rato, de Millr Fernandes, para responder s questes de 16 a 19. Um leo, um burro e um rato voltaram, afinal, da caada que haviam empreendido juntos1e colocaram numa clareira tudo que tinham caado: dois veados, algumas perdizes, trs tatus, uma paca e muita caa menor. O leo sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou: Bem, agora que terminamos um magnfico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforo conjunto. Compadre burro, por favor, voc, que o mais sbio de ns trs, com licena do compadre rato, voc, compadre burro, vai fazer a partilha desta caa em trs partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, at o rio, beber um pouco de gua, deixando nosso grande amigo burro em paz para deliberar. Os dois se afastaram, foram at o rio, beberam gua2e ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caa em trs partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leo: Pronto, compadre leo, a est: que acha da partilha? O leo no disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no cho, morto. Sorrindo, o leo voltou-se para o rato e disse: Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impresso de que concorda em que no podamos suportar a presena de tamanha inaptido e burrice. Desculpe eu ter perdido a pacincia, mas no havia outra coisa a fazer. H muito que eu no suportava mais o compadre burro. Me faa um favor agora divida voc o bolo da caa, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou at o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberao sensata. Mal o leo se afastou, o rato no teve a menor dvida. Dividiu o monte de caa em dois: de um lado, toda a caa, inclusive o corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza morto por acaso. O leo ainda no tinha chegado ao rio, quando o rato o chamou: Compadre leo, est pronta a partilha! O leo, vendo a caa dividida de maneira to justa, no pde deixar de cumprimentar o rato: Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como voc chegou to depressa a uma partilha to certa? E o rato respondeu: Muito simples. Estabeleci uma relao matemtica entre seu tamanho e o meu claro que voc precisa comer muito mais. Tracei uma comparao entre a sua fora e a minha claro que voc precisa de muito maior volume de alimentao do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posio na floresta com a minha e, evidentemente, a partilha s podia ser esta. Alm do que, sou um intelectual, sou todo esprito! Inacreditvel, inacreditvel! Que compreenso! Que argcia! exclamou o leo, realmente admirado. Olha, juro que nunca tinha notado, em voc, essa cultura. Comovoc escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria? Na verdade, leo, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fnebre, se no se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto. Moral: S um burro tenta ficar com a parte do leo. 1 A conjugao de esforos to heterogneos na destruio do meio ambiente coisa muito comum. 2 Enquanto estavam bebendo gua, o leo reparou que o rato estava sujando a gua que ele bebia. Mas isso j outra fbula. (100 fbulas fabulosas, 2012.) Mal o leo se afastou, o rato no teve a menor dvida. (8o pargrafo) Em relao orao que a sucede, a orao sublinhada expressa ideia de


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(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia o trecho extrado do artigo Cosmologia, 100, de Antonio Augusto Passos Videira e Cssio Leite Vieira Vou conduzir o leitor por uma estrada que eu mesmo percorri, rdua e sinuosa. A frase que tem algo da essncia do hoje clssico A estrada no percorrida (1916), do poeta norte-americano Robert Frost (1874-1963) est em um artigo cientfico publicado h cem anos, cujo teor constitui um marco histrico da civilizao. Pela primeira vez, cerca de 50 mil anos depois de o Homo sapiens deixar uma mo com tinta estampada em uma pedra, a humanidade era capaz de descrever matematicamente a maior estrutura conhecida: o Universo. A faanha intelectual levava as digitais de Albert Einstein (1879-1955). Ao terminar aquele artigo de 1917, o fsico de origem alem escreveu a um colega dizendo que o que produzira o habilitaria a ser internado em um hospcio. Mais tarde, referiu-se ao arcabouo terico que havia construdo como um castelo alto no ar. O Universo que saltou dos clculos de Einstein tinha trs caractersticas bsicas: era finito, sem fronteiras e esttico o derradeiro trao alimentaria debates e traria arrependimento a Einstein nas dcadas seguintes. Em Consideraes Cosmolgicas na Teoria da Relatividade Geral, publicado em fevereiro de 1917 nos Anais da Academia Real Prussiana de Cincias, o cientista construiu (de modo muito visual) seu castelo usando as ferramentas que ele havia forjado pouco antes: a teoria da relatividade geral, finalizada em 1915, esquema terico j classificado como a maior contribuio intelectual de uma s pessoa cultura humana. Esse bloco matemtico impenetrvel (mesmo para fsicos) nada mais do que uma teoria que explica os fenmenos gravitacionais. Por exemplo, por que a Terra gira em torno do Sol ou por que um buraco negro devora avidamente luz e matria. Com a introduo da relatividade geral, a teoria da gravitao do fsico britnico Isaac Newton (1642-1727) passou a ser um caso especfico da primeira, para situaes em que massas so bem menores do que as das estrelas e em que a velocidade dos corpos muito inferior da luz no vcuo (300 mil km/s). Entre essas duas obras de respeito (de 1915 e de 1917), impressiona o fato de Einstein ter achado tempo para escrever uma pequena joia, Teoria da Relatividade Especial e Geral, na qual populariza suas duas teorias, incluindo a de 1905 (especial), na qual mostrara que, em certas condies, o espao pode encurtar, e o tempo, dilatar. Tamanho esforo intelectual e total entrega ao raciocnio cobraram seu pedgio: Einstein adoeceu, com problemas no fgado, ictercia e lcera. Seguiu debilitado at o final daquela dcada. Se deslocados de sua poca, Einstein e sua cosmologia podem ser facilmente vistos como um ponto fora da reta. Porm, a historiadora da cincia britnica Patricia Fara lembra que aqueles eram tempos de cosmologias, de vises globais sobre temas cientficos. Ela cita, por exemplo, a teoria da deriva dos continentes, do gelogo alemo Alfred Wegener (1880-1930), marcada por uma viso cosmolgica da Terra. Fara d a entender que vrias reas da cincia, naquele incio de sculo, passaram a olhar seus objetos de pesquisa por meio de um prisma mais amplo, buscando dados e hipteses em outros campos do conhecimento. Folha de S.Paulo, 01.01.2017. Adaptado. Emprega-se a vrgula para indicar, s vezes, a elipse do verbo: Ele sai agora: eu, logo mais. (Evanildo Bechara. Moderna gramtica portuguesa, 2009. Adaptado.) Verifica-se a ocorrncia de vrgula para indicar a elipse do verbo no seguinte trecho:


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(UNESP - 2017/2 - 2 fase - Questo 30) Para responder (s) questo(es) a seguir, leia o segundo captulo do romance Iracema, do escritor Jos de Alencar (1829-1877), publicado em 1865. Alm, muito alm daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da 1grana, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da 2jati no era doce como seu sorriso, nem a baunilha recendia no bosque como seu hlito perfumado. Mais rpida que a ema selvagem, a morena virgem corria o serto e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nao tabajara. O p grcil e nu, mal roando, alisava apenas a verde pelcia que vestia a terra com as primeiras guas. Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da 3oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da accia silvestre esparziam flores sobre os midos cabelos. Escondidos na folhagem os pssaros ameigavam o canto. Iracema saiu do banho: o 4aljfar dgua ainda a 5roreja, como doce 6mangaba que corou em manh de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do 7gar as flechas de seu arco e concerta com o sabi da mata, pousado no galho prximo, o canto agreste. A graciosa 8ar, sua companheira e amiga, brinca junto dela. s vezes sobe aos ramos da rvore e de l chama a virgem pelo nome; outras, remexe o uru9 de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do 10craut, as agulhas da 11juara com que tece a renda e as tintas de que matiza o algodo. Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol no deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contempl-la, est um guerreiro estranho, se guerreiro e no algum mau esprito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das guas profundas. 12Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rpido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro mpeto, a mo 13lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moo guerreiro aprendeu na religio de sua me, onde a mulher smbolo de ternura e amor. Sofreu mais dalma que da ferida. O sentimento que ele ps nos olhos e no rosto, no o sei eu. Porm a virgem lanou de si o arco e a 14uiraaba e correu para o guerreiro, sentida da mgoa que causara. A mo que rpida ferira estancou mais rpida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a 15flecha homicida; deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: Quebras comigo a flecha da paz? Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmos j possuram e hoje tm os meus. Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e cabana de Araqum, pai de Iracema. Iracema, 2006. 1grana: pssaro de cor negra. 2jati: pequena abelha que fabrica delicioso mel. 3oiticica: rvore frondosa. 4aljfar: prola; por extenso: gota. 5rorejar: banhar. 6mangaba: fruto da mangabeira. 7gar: ave de cor vermelha. 8ar: periquito. 9uru: pequeno cesto. 10craut: bromlia. 11juara: palmeira de grandes espinhos. 12ignoto: que ou o que desconhecido. 13lesto: gil, veloz. 14uiraaba: estojo em que se guardavam e transportavam as flechas. 15quebrar a flecha: maneira simblica de se estabelecer a paz entre os indgenas. Examine o seguinte trecho: O sentimento que ele ps nos olhos e no rosto, no o sei eu. (12 pargrafo) A quem se refere o pronome eu? Reescreva este trecho em ordem direta, substituindo o pronome o pelo seu referente.


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(UNESP - 2020 - 1FASE) Para responder s questes, leia o trecho de uma carta enviada por Antnio Vieira ao rei D. Joo IV em 4 de abril de 1654. No fim da carta de que V. M.1 me fez merc me manda V. M. diga meu parecer sobre a convenincia de haver neste estado ou dois capites-mores ou um s governador. Eu, Senhor, razes polticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal ser um ladro que dois; e que mais dificultoso sero de achar dois homens de bem que um. Sendo propostos a Cato dois cidados romanos para o provimento de duas praas, respondeu que ambos lhe descontentavam: um porque nada tinha, outro porque nada lhe bastava. Tais so os dois capites-mores em que se repartiu este governo: Baltasar de Sousa no tem nada, Incio do Rego no lhe basta nada; e eu no sei qual maior tentao, se a1, se a2. Tudo quanto h na capitania do Par, tirando as terras, no vale 10 mil cruzados, como notrio, e desta terra h-de tirar Incio do Rego mais de 100 mil cruzados em trs anos, segundo se lhe vo logrando bem as indstrias. Tudo isto sai do sangue e do suor dos tristes ndios, aos quais trata como to escravos seus, que nenhum tem liberdade nem para deixar de servir a ele nem para poder servir a outrem; o que, alm da injustia que se faz aos ndios, ocasio de padecerem muitas necessidades os portugueses e de perecerem os pobres. Em uma capitania destas confessei uma pobre mulher, das que vieram das Ilhas, a qual me disse com muitas lgrimas que, dos nove filhos que tivera, lhe morreram em trs meses cinco filhos, de pura fome e desamparo; e, consolando-a eu pela morte de tantos filhos, respondeu-me: Padre, no so esses os por que eu choro, seno pelos quatro que tenho vivos sem ter com que os sustentar, e peo a Deus todos os dias que me os leve tambm. So lastimosas as misrias que passa esta pobre gente das Ilhas, porque, como no tm com que agradecer, se algum ndio se reparte no lhe chega a eles, seno aos poderosos; e este um desamparo a que V. M. por piedade dever mandar acudir. Tornando aos ndios do Par, dos quais, como dizia, se serve quem ali governa como se foram seus escravos, e os traz quase todos ocupados em seus interesses, principalmente no dos tabacos, obriga-me a conscincia a manifestar a V. M. os grandes pecados que por ocasio deste servio se cometem. (Srgio Rodrigues (Org.).Cartas brasileiras, 2017. Adaptado.) 1V. M.: Vossa Majestade. Sempre que haja necessidade expressiva de reforo, de nfase, pode o objeto direto vir repetido. Essa reiterao recebe o nome de objeto direto pleonstico. (Adriano da Gama Kury. Novas lies de anlise sinttica, 1997. Adaptado.) Antnio Vieira recorre a esse recurso expressivo em:


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(UNESP - 2014 - 1 FASE) A questo tomam por base uma passagem do artigoOs operrios da msica livre, de Ronaldo Evangelista. Desde o final do sculo 20, toda a engrenagem industrial do mercado musical passa por intensas transformaes, como o surgimento e disseminao de novas tecnologias, em grande parte gratuitas, como os arquivos MP3s, as redes de compartilhamento destes arquivos, mecanismos torrents, sites de armazenamento de contedo, ferramentas de publicao on-line tudo disposio de quem quisesse dividir com os outros suas canes e discos favoritos. A era ps-industrial atingiu toda a indstria do entretenimento, mas o brao da msica foi quem mais sofreu, especialmente as grandes gravadoras multinacionais, as chamadas majors, que sofreram um declnio em todas as etapas de seu antigo negcio, ao mesmo tempo em que rapidamente se aperfeioavam ferramentas baratas e caseiras de produo que diminuam a distncia entre amadores e profissionais. A era digital tambm chamada de ps-industrial porque confronta o modelo de produo que dominava at o final do sculo 20. Esse modelo industrial baseado na repetio, em formatar e embalar. Por trs disso, a ideia obter a mxima produo o que, para produtos em geral, funciona muito bem. Quando esses parmetros so aplicados arte, a venda do produto (por exemplo, o disco) depende do contedo (a cano). A cano que vai resultar nessa produo mxima buscada por meio de um equilbrio entre criatividade e uma frmula de sucesso que desperte o interesse do pblico. Como estudos ainda no conseguiram decifrar como direcionar a criatividade de uma maneira que certamente despertar esse interesse (e maximizar a produo), a opo normalmente costuma ser pela soluo mais simples. Cada um tem descoberto suas frmulas e possibilidades, pois tudo tende a ser cada vez menos homogneo, opina o baiano Lucas Santtana, que realizou seus discos recentes s prprias custas.Claro que ainda existe uma distncia em relao aos artistas chamados mainstream, continua. Mas voc muda o tamanho da escala e j est tudo igual em termos de business. A pergunta se essa gerao faz uma msica para esse grande mercado ou se ela est formando um novo pblico. Outra pergunta se o grande mercado na verdade no passa de uma imposio de uma mfia que dita o que vai ser popular. (Galileu, maro de 2013. Adaptado.) Como estudos ainda no conseguiram decifrar como direcionar a criatividade de uma maneira que certamente despertar esse interesse (e maximizar a produo), a opo normalmente costuma ser pela soluo mais simples. O perodo em destaque apresenta muitos ecos (coincidncias de sons de finais de palavras). Uma das formas de evit-los e tornar a sequncia mais fluente seria colocar conduzir, tal, quantidade produzida em lugar de, respectivamente, tal, quantidade produzida em lugar de, respectivamente,


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Questão 29

2014Português

(UNESP - 2014 - 2 FASE)As questes abaixo tomam por base um trecho da conferncia Sobre algumas lendas do Brasil, de Olavo Bilac (1865-1918), e um soneto do mesmo autor, utilizado por ele para ilustrar seus argumentos. Sendo cada homem todo o universo, tem dentro de si todos os deuses, todas as potestades superiores e inferiores que dirigem o universo. (Tudo, se existe objetivamente, porque existe subjetivamente; tudo existe em ns, porque tudo criado e alimentado por ns). E esta considerao nos leva ao assunto e explanao do meu tema. Existem em ns todas as entidades fantsticas, que, segundo a crena popular, enchem a nossa terra: so sentimentos humanos, que, saindo de cada um de ns, personalizam-se, e comeam a viver na vida exterior, como mitos da comunho. Tup, demiurgo criador, e o seu Anhang, demiurgo destruidor. o eterno dualismo, governando todas as fases religiosas, toda a histria mitolgica da humanidade. J entre os persas e os iranianos, na religio de Zoroastro, havia um deus de bondade, Ormuz, e um deus de maldade, Ahriman. A religio de Mans, na Babilnia, no criou a ideia do dualismo; acentuou-a, precisou-a; a base da religio dos maniqueus era a oposio e o contraste da luz e da treva: o mundo visvel, segundo eles, era o resultado da mistura desses dois elementos eternamente inimigos. Mas em todos os grandes povos, e em todas as pequenas tribos, sempre houve, em todos os tempos, a concepo desse conflito: e esse conflito perdura no catolicismo, fixado na concepo de Deus e do Diabo. Os nossos ndios sempre tiveram seu Tup e o seu Anhang... Ora, o selvagemdas margens do Amazonas, do So Francisco e do Paran compreende os dois demiurgos, porque os sente dentro de si mesmo. E ns, os civilizados do litoral, compreendemos e contemos em ns esses dois princpios antagnicos, Deus e o Diabo. Cada um de vs tem uma arena ntima em que a todo o instante combatem um gnio do bem e um gnio do mal: No s bom, nem s mau: s triste e humano... Vives ansiando em maldies e preces, Como se, a arder, no corao tivesses O tumulto e o clamor de um largo oceano. Pobre, no bem como no mal, padeces; E, rolando num vrtice vesano*, Oscilas entre a crena e o desengano, Entre esperanas e desinteresses. Capaz de horrores e de aes sublimes, No ficas das virtudes satisfeito, Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: E, no perptuo ideal que te devora, Residem juntamente no teu peito Um demnio que ruge e um deus que chora... * Vesano: louco, demente, delirante, insensato. (ltimas conferncias e discursos, 1927.) O conferencista Olavo Bilac sugere que, apesar da diferena de credos, as religies se filiam a um mesmo princpio. Que princpio esse e o que origina no mbito religioso?


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Questão 2

2019Português

(UNESP - 2019 - 1 FASE) Leia o trecho do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, para responder s questes de02a07. O caboclo mal-encarado eu encontrei um dia em casa do Mendona tambm se acabou em desgraa. Uma limpeza. Essa gente quase nunca morre direito. Uns so levados pela cobra, outros pela cachaa, outros matam-se. Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viva e rfos midos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o ltimo teve angina e a mulher enforcou-se. Para diminuir a mortalidade e aumentar a produo, proibi a aguardente. Conclui-se a construo da casa nova. Julgo que no preciso descrev-la. As partes principais apareceram ou aparecero; o resto dispensvel e apenas pode interessar aos arquitetos, homens que provavelmente no lero isto. Ficou tudo confortvel e bonito. Naturalmente deixei de dormir em rede. Comprei mveis e diversos objetos que entrei a utilizar com receio, outros que ainda hoje no utilizo, porque no sei para que servem. Aqui existe um salto de cinco anos, e em cinco anos o mundo d um bando de voltas. Ningum imaginar que, topando os obstculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurana e percorrido, sem me deter, caminhos certos. No senhor, no procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei dificuldades: muitas curvas. Acham que andei mal? A verdade que nunca soube quais foram os maus. Fiz coisas que me trouxeram prejuzo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a inteno de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legtimas as aes que me levaram a obt-las. Alcancei mais do que esperava, merc de Deus. Vieram-me as rugas, j se v, mas o crdito, que a princpio se esquivava, agarrou-se comigo, as taxas desceram. E os negcios desdobraram-se automaticamente. Automaticamente. Difcil? Nada! Se eles entram nos trilhos, rodam que uma beleza. Se no entram, cruzem os braos. Mas se virem que esto de sorte, metam o pau: as tolices que praticarem viram sabedoria. Tenho visto criaturas que trabalham demais e no progridem. Conheo indivduos preguiosos que tm faro: quando a ocasio chega, desenroscam-se, abrem a boca - e engolem tudo. Eu no sou preguioso. Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favorvel nas seguintes. Depois da morte do Mendona, derrubei a cerca, naturalmente, e levei-a para alm do ponto em que estava no tempo de Salustiano Padilha. Houve reclamaes. - Minhas senhoras, seu Mendona pintou o diabo enquanto viveu. Mas agora isto. E quem no gostar, pacincia, v justia. Como a justia era cara, no foram justia. E eu, o caminho aplainado, invadi a terra do Fidlis, paraltico de um brao, e a dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando Direito. Respeitei o engenho do Dr. Magalhes, juiz. Violncias midas passaram despercebidas. As questes mais srias foram ganhas no foro, graas s chicanas de Joo Nogueira. Efetuei transaes arriscadas, endividei-me, importei maquinismos e no prestei ateno aos que me censuravam por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim comps sobre ela dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. Costa Brito tambm publicou uma nota naGazeta, elogiando-me e elogiando o chefe poltico local. Em consequncia mordeu-me cem mil-ris. (S. Bernardo, 1996.) No trecho, o narrador revela-se uma pessoa


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Questão 5

2016Português

(UNESP - 2016/2 - 1 FASE) Leia o excerto do Sermo da primeira dominga do Advento de Antnio Vieira (1608-1697), pregado na Capela Real em Lisboa no ano de 1650. Sabei cristos, sabei prncipes, sabei ministros, que se vos h de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se ho de condenar muitos, pelo que no fizeram, todos. [...] Desamos a exemplos mais pblicos. Por uma omisso perde-se uma mar, por uma mar perde-se uma viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado: dai conta a Deus de uma ndia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omisso. Por uma omisso perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasio, por uma ocasio perde-se um negcio, por um negcio perde-se um reino: dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas1, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omisso. Oh que arriscada salvao! Oh que arriscado ofcio o dos prncipes e o dos ministros! Est o prncipe, est o ministro divertido, sem fazer m obra, sem dizer m palavra, sem ter mau nem bom pensamento: e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omisso, est cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruies, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o prncipe e o ministro com uma omisso matam de um golpe uma monarquia. A omisso o pecado que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omisso um pecado que se faz no fazendo. [...] Mas por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes so os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes so os piores: por omisses, por negligncias, por descuidos, por desatenes, por divertimentos, por vagares, por dilaes, por eternidades. Eis aqui um pecado de que no fazem escrpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, j que assim o querem: o mal que se perdem a si e perdem a todos; mas de todos ho de darconta a Deus. Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrpulo os ministros, dos pecados do tempo. Porque fizeram o ms que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanh o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer j. To delicadas como isto ho de ser as conscincias dos que governam, em matrias de momentos. O ministro que no faz grande escr- pulo de momentos no anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda que mal, tambm se restitui; o tempo no tem restituio alguma. (Essencial, 2013. Adaptado.) 1fazenda: conjunto de bens, de haveres. Em Est o prncipe, est o ministro divertido, sem fazer m obra, sem dizer m palavra, sem ter mau nem bom pensamento (2pargrafo), o adjetivo destacado no est empregado na acepo corrente de alegre; o contexto, porm, permite recuperar a seguinte acepo:


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(UNESP - 2016 - 1FASE) A questo aborda um poema do portugus Eugnio de Castro (1869-1944). MOS Mos de veludo, mos de mrtir e de santa, o vosso gesto como um balouar de palma; o vosso gesto chora, o vosso gesto geme, o vosso gesto canta! Mos de veludo, mos de mrtir e de santa, rolas volta da negra torre da minhalma. Plidas mos, que sois como dois lrios doentes, Caridosas Irms do hospcio da minhalma, O vosso gesto como um balouar de palma, Plidas mos, que sois como dois lrios doentes... Mos afiladas, mos de insigne formosura, Mos de prola, mos cor de velho marfim, Sois dois lenos, ao longe, acenando por mim, Duas velas flor duma baa escura. Mimo de carne, mos magrinhas e graciosas, Dos meus sonhos de amor, quentes e brandos ninhos, Divinas mos que me heis coroado de espinhos, Mas que depois me haveis coroado de rosas! Afilhadas do luar, mos de rainha, Mos que sois um perptuo amanhecer, Alegrai, como dois netinhos, o viver Da minha alma, velha av entrevadinha. (Obras poticas, 1968.) A musicalidade, as reiteraes, as aliteraes e a profuso de imagens e metforas so algumas caractersticas formais do poema, que apontam para sua filiao ao movimento


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(UNESP - 2019 - 1FASE) Leia o trecho do livro A dana do universo, do fsico brasileiro Marcelo Gleiser, para responder (s) questo(es) a seguir. Algumas pessoas tornam-se heris contra sua prpria vontade. Mesmo que elas tenham ideias realmente (ou potencialmente) revolucionrias, muitas vezes no as reconhecem como tais, ou no acreditam no seu prprio potencial. Divididas entre enfrentar sua insegurana expondo suas ideias opinio dos outros, ou manter-se na defensiva, elas preferem a segunda opo. O mundo est cheio de poemas e teorias escondidos no poro. Coprnico , talvez, o mais famoso desses relutantes heris da histria da cincia. Ele foi o homem que colocou o Sol de volta no centro do Universo, ao mesmo tempo fazendo de tudo para que suas ideias no fossem difundidas, possivelmente com medo de crticas ou perseguio religiosa. Foi quem colocou o Sol de volta no centro do Universo, motivado por razes erradas. Insatisfeito com a falha do modelo de Ptolomeu, que aplicava o dogma platnico do movimento circular uniforme aos corpos celestes, Coprnico props que o equante fosse abandonado e que o Sol passasse a ocupar o centro do cosmo. Ao tentar fazer com que o Universo se adaptasse s ideias platnicas, ele retornou aos pitagricos, ressuscitando a doutrina do fogo central, que levou ao modelo heliocntrico de Aristarco dezoito sculos antes. Seu pensamento reflete o desejo de reformular as ideias cosmolgicas de seu tempo apenas para voltar ainda mais no passado; Coprnico era, sem dvida, um revolucionrio conservador. Ele jamais poderia ter imaginado que, ao olhar para o passado, estaria criando uma nova viso csmica, que abriria novas portas para o futuro. Tivesse vivido o suficiente para ver os frutos de suas ideias, Coprnico decerto teria odiado a revoluo que involuntariamente causou. Entre 1510 e 1514, comps um pequeno trabalho resumindo suas ideias, intitulado Commentariolus (Pequeno comentrio). Embora na poca fosse relativamente fcil publicar um manuscrito, Coprnico decidiu no publicar seu texto, enviando apenas algumas cpias para uma audincia seleta. Ele acreditava piamente no ideal pitagrico de discrio; apenas aqueles que eram iniciados nas complicaes da matemtica aplicada astronomia tinham permisso para compartilhar sua sabedoria. Certamente essa posio elitista era muito peculiar, vinda de algum que fora educado durante anos dentro da tradio humanista italiana. Ser que Coprnico estava tentando sentir o clima intelectual da poca, para ter uma ideia do quo perigosas eram suas ideias? Ser que ele no acreditava muito nas suas prprias ideias e, portanto, queria evitar qualquer tipo de crtica? Ou ser que ele estava to imerso nos ideais pitagricos que realmente no tinha o menor interesse em tornar populares suas ideias? As razes que possam justificar a atitude de Coprnico so, at hoje, um ponto de discusso entre os especialistas. (A dana do universo, 2006. Adaptado.) Em Mesmo que elas tenham ideias realmente (ou potencialmente) revolucionrias, muitas vezes no as reconhecem como tais, ou no acreditam no seu prprio potencial (1 pargrafo), a locuo conjuntiva sublinhada pode ser substituda, sem prejuzo para o sentido do texto, por:


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Questão 31

2014Português

(UNESP - 2014 - 2 FASE)As questes abaixo tomam por base um trecho da conferncia Sobre algumas lendas do Brasil, de Olavo Bilac (1865-1918), e um soneto do mesmo autor, utilizado por ele para ilustrar seus argumentos. Sendo cada homem todo o universo, tem dentro de si todos os deuses, todas as potestades superiores e inferiores que dirigem o universo. (Tudo, se existe objetivamente, porque existe subjetivamente; tudo existe em ns, porque tudo criado e alimentado por ns). E esta considerao nos leva ao assunto e explanao do meu tema. Existem em ns todas as entidades fantsticas, que, segundo a crena popular, enchem a nossa terra: so sentimentos humanos, que, saindo de cada um de ns, personalizam-se, e comeam a viver na vida exterior, como mitos da comunho. Tup, demiurgo criador, e o seu Anhang, demiurgo destruidor. o eterno dualismo, governando todas as fases religiosas, toda a histria mitolgica da humanidade. J entre os persas e os iranianos, na religio de Zoroastro, havia um deus de bondade, Ormuz, e um deus de maldade, Ahriman. A religio de Mans, na Babilnia, no criou a ideia do dualismo; acentuou-a, precisou-a; a base da religio dos maniqueus era a oposio e o contraste da luz e da treva: o mundo visvel, segundo eles, era o resultado da mistura desses dois elementos eternamente inimigos. Mas em todos os grandes povos, e em todas as pequenas tribos, sempre houve, em todos os tempos, a concepo desse conflito: e esse conflito perdura no catolicismo, fixado na concepo de Deus e do Diabo. Os nossos ndios sempre tiveram seu Tup e o seu Anhang... Ora, o selvagemdas margens do Amazonas, do So Francisco e do Paran compreende os dois demiurgos, porque os sente dentro de si mesmo. E ns, os civilizados do litoral, compreendemos e contemos em ns esses dois princpios antagnicos, Deus e o Diabo. Cada um de vs tem uma arena ntima em que a todo o instante combatem um gnio do bem e um gnio do mal: No s bom, nem s mau: s triste e humano... Vives ansiando em maldies e preces, Como se, a arder, no corao tivesses O tumulto e o clamor de um largo oceano. Pobre, no bem como no mal, padeces; E, rolando num vrtice vesano*, Oscilas entre a crena e o desengano, Entre esperanas e desinteresses. Capaz de horrores e de aes sublimes, No ficas das virtudes satisfeito, Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: E, no perptuo ideal que te devora, Residem juntamente no teu peito Um demnio que ruge e um deus que chora... * Vesano: louco, demente, delirante, insensato. (ltimas conferncias e discursos, 1927.) Indique a pessoa gramatical dos verbos empregados no soneto e identifique, no plano do contedo, a quem o eu lrico se dirige por meio dessa pessoa gramatical.


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(UNESP - 2013/2 - 1a fase) Instruo: As questes de nmeros 11 a 15 tomam por base um fragmento da crnica Letra de cano e poesia, de Antonio Cicero. Como escrevo poemas e letras de canes, frequentemente perguntam-me se acho que as letras de canes so poemas. A expresso letra de cano j indica de que modo essa questo deve ser entendida, pois a palavra letra remete escrita. O que se quer saber se a letra, separada da cano, constitui um poema escrito. Letra de cano poema? Essa formulao inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que no se pode determinar a priori quais so as formas lcitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na pgina e diz que um poema, quem provar o contrrio? Neste ponto, parece-me inevitvel introduzir um juzo de valor. A verdadeira questo parece ser se uma letra de cano um bom poema. Entretanto, mesmo esta ltima pergunta ainda no suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de cano necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de cano possivelmente um bom poema. Quanto primeira pergunta, evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema necessariamente um bom poema; nenhum texto necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar se uma boa letra necessariamente um bom poema. Ora, tambm a essa pergunta a resposta negativa. Quem j no teve a experincia, em relao a uma letra de cano, de se emocionar com ela ao escut-la cantada e depois consider-la inspida, ao l-la no papel, sem acompanhamento musical? No difcil entender a razo disso. Um poema um objeto autotlico, isto , ele tem o seu fim em si prprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a consider-lo independentemente do fato de que, alm de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. J uma letra de cano heterotlica, isto , ela no tem o seu fim em si prpria. Para que a julguemos boa, necessrio e suficiente que ela contribua para que a obra ltero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de cano servir para fazer uma boa cano, ela boa, ainda que seja ilegvel. E a letra pode ser ilegvel porque, para se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou as palavras certas enfatizadas, ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da msica qual se encontra associada. (Folha de S.Paulo, 16.06.2007.) Nenhum poema necessariamente um bom poema; nenhum texto necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra necessariamente um bom poema. O advrbio necessariamente, nas trs ocorrncias verificadas na passagem mencionada, equivale, pelo sentido, a:


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Questão 4

2018Português

(UNESP - 2018/2 - 1 FASE) Leia o conto A moa rica, de Rubem Braga (1913-1990), para responder questo A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avanava no batelo1velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho2de cavalo; depois, numa choa de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina. Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moa que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabamos que era muito rica, filha de um irmo de um homem de nossa terra. A princpio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calas compridas, fazia caadas, dava tiros, saa de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaa, como todos ns, e cantou primeiro uma coisa em ingls, depois o Luar do serto e uma cano antiga que dizia assim: Esse algum que logo encanta deve ser alguma santa. Era uma cano triste. Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adorao sbita, mas tmida, esse fervor confuso da adolescncia adorao sem esperana, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suter e sapato de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que j tinha ido at Europa e tinha um automvel e uma coleo de espingardas magnficas. No a mim, com minha pobre flaubert3, no a mim, de cala e camisa, descalo, no a mim, que no sabia lidar nem com um motor de popa, apenas tocar um batelo com meu remo. Duas semanas depois que ela chegou que a encontrei na praia solitria; eu vinha a p, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu corao bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manh fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse bom-dia que no interior a gente d a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. So as duas imagens que se gravaram na minha memria, desse encontro: a pele escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respirao animal no ar fino da manh. E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Sria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calas de palm-beach, relgio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de no saber quase nada, no sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia e falou de minha irm, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi at perto da lagoa. De repente me fulminou: Por que voc no gosta de mim? Voc me trata sempre de um modo esquisito... Respondi, estpido, com a voz rouca: Eu no. Ela ento riu, disse que eu confessara que no gostava mesmo dela, e eu disse: No isso. Montou o cavalo, perguntou se eu no queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. No insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte foi-se embora. Agora eu estava ali remando no batelo, para ir no Severone apanhar uns camares vivos para isca; e o relincho distante de um cavalo me fez lembrar a moa bonita e rica. Eu disse comigo rema, bobalho! e fui remando com fora, sem ligar para os respingos de gua fria, cada vez com mais fora, como se isto adiantasse alguma coisa. (Os melhores contos, 1997.) 1batelo: embarcao movida a remo. 2rincho: relincho. 3flaubert: um tipo de espingarda. O pleonasmo (do grego pleonasms, que quer dizer abundncia, excesso, amplificao) uma repetio de unidades lingusticas idnticas do ponto de vista semntico, o que implica que a repetio tautolgica (redundante). No entanto, ela uma extenso do enunciado com vistas a intensificar o sentido. (Jos Luiz Fiorin. Figuras de retrica, 2014. Adaptado.) Verifica-se a ocorrncia de pleonasmo em: