A sabedoria popular antecede a techné e o saber científico

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  1. 1. O QUE É POPULAR1 ? José Francisco de Melo Neto2 RESUMO: Esta pesquisa objetiva atualizar o conceito do termo popular, tendo por base a percepção daqueles que atuam nos movimentos sociais. Contudo, antes que se realizem desejos de uma maior precisão e, talvez, de exatidão do que seja popular, os dados pesquisados conduzem para um exercício teórico-dialético de aproximação de um conceito. Assim, é que algo pode ser caracterizado como popular ao conter os seguintes elementos que se relacionam entre si, porém diferenciando-se: a origem nas maiorias, no povo ou a ele esteja direcionado; o político como elemento de promoção de hegemonia desses setores sociais; o metodológico no sentido de animação do exercício para a cidadania crítica e geradora de ação; o ético expresso por princípios de solidariedade, tolerância e justiça; e o utópico, traduzido pela busca incessante de alternativas de vida e de felicidade. A sabedoria popular antecede a techne3 e o saber científico. Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou- se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo4 . 1 Pesquisa realizada entre militantes políticos de movimentos sociais populares e/ou partidários de uma alternativa de sociedade democrático-popular. 2 Professor do quadro permanente do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, João Pessoa, atuando no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular. É coordenador do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular. 3 Na filosofia de Platão e Aristóteles adquire o significado atual da palavra teoria, contrapondo-se à mera experiência. Teoria em função de uma prática (Aristóteles), diferente da perspectiva de Platão como teoria da “ciência pura”. 4 Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental.
  2. 2. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias pré-fixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, ou indiferente ou não tomando como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição que, mesmo entre os gregos, dará outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que dará maior ênfase a uma educação para a qualidade dos nobres e dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga5 , há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando uma outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nessa perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindo-se, todavia, a luta abaixo narrada: “Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. 5 Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
  3. 3. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” ( Hesíodo, 1996: 23-24). Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando também disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano. Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colmeias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo, na segunda parte, as tradições e as regras sobre o trabalho do campo em suas várias estações do ano, regras de vestuário de acordo com as estações, suas máximas morais e suas proibições. “A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular (grifo nosso). Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavaleiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal” (ibid.: 91). Hesíodo, pela primeira vez, preenche essa lacuna, juntando a esses elementos culturais, em forma de poesia, a idéia de direito, expressa através de sua vida de trabalho, no sentido de combate às usurpações promovidas por seu próprio irmão, transformando-se num devoto fervoroso do direito (dike). O trabalho e a justiça tornam-se componentes
  4. 4. intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, não há um sem a existência do outro. Em seus versos mostra que : “À tribo dos imortais irão, abandonando os homens, respeito e justiça distributiva; e tristes pesares vão deixar aos homens mortais. Contra o mal força não haverá!” (Hesíodo, 1996: 37). Não há saída, portanto, para o poeta, entendendo-se que, caso não exista respeito pelo trabalho, também estará comprometida a justiça. Nesse sentido, acrescenta: “O excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a Excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo” (Hesíodo, 1996: 39). É bom lembrar a figura de Prometeu que, furtando o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, é merecedor de castigo. “Oculto retem o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” ( Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais será orientado em proveito dos mortais, não mais garantirá o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva. através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver,
  5. 5. encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade. “Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida” (Jaeger, 1994: 103). O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo estilo próprio de viver e de se identificar com aquelas características próprias da vida campesina. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador que está orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, censurava senhores venais quando do exercício de sua função de julgamento, atropelando o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão do ser justo passa a ter significado concreto entre os gregos, como aquele que obedece à lei e se regula por suas disposições e, mesmo na guerra, está cumprindo o seu dever. Habitualmente, as virtudes foram expressas em quatro: a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência; mas é na justiça que todas estão concentradas, considerando que esta, no sentido mais geral, para além do jurídico, engloba a totalidade das normas morais e políticas. Nessa organização de Estado, fundamentado na noção do direito para todos, é que foi se pautar a vida na polis grega, criando a figura do cidadão, um novo tipo para uma nova comunidade. A presença, agora, do Estado passa a dar dupla conformação política na vida humana, uma vida privada e uma vida pública, no espaço da polis. Uma rigorosa distinção estabelece-se entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum. Um modo de vida que deixa de lado a dimensão da educação hesiódica, pautado pela idéia do trabalho, impregnado de um conteúdo da vida rural. Embora reconhecendo esta sua importância, todavia, o processo civilizatório grego tomou um rumo completamente diverso.
  6. 6. A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma e além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa. Educação fora de qualquer dimensão ideal e sim, fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo „ao que aí está`. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça igual para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras, por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à
  7. 7. poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa vigente, e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcante a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas. “Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo” (ibid.: 81). Na modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e dentre estas a revolução francesa que trouxe ao cenário das lutas políticas setores sociais simples ou populares, lutando por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”. Nessa obra, ele aponta o encaminhamento, à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares), a necessidade de luta e de alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30), fecundando os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre orientação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, neste século XX, o que vem sendo entendido como popular? O que revelam, nesse sentido, os movimentos sociais que atuam na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos políticos6 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, 6 Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Lowy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999.
  8. 8. no Brasil, orienta-se por um “Programa de governo popular nacional revolucionário”7 . Esse programa tem no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile traz nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo simplesmente, a classe operária. Trata-se de uma frente política que vê no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma perspectiva, surge o Partido Popular, no México8 , que veicula uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: “A elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país”. Recentemente, também no Chile, dá-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular9 que saem da clandestinidade, após a vitória de Allende, tendo no popular a perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado Burguês, combatendo a estratégia reformista que sejam as massas subordinadas à democracia desse tipo de Estado. Já aqui, no Brasil, o Partido Comunista do Brasil (PC do B)10 lança a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressa uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo. Para o partido (ibid.: 434), “a luta armada 7 É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideram a sublevação de 1935. 8 O Partido Popular é fundado, no México, por Vicente Lombardo Toledano que depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS). Um partido de oposição fundado para cooperar com o governo. 9 Unidade Popular se constitui como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR, nessa frente, desenvolve- se, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional. 10 Até o final da década de 60, o PC do B, nega-se a comprometer com processos de luta armada, realizando contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia - sendo dizimada pela ditadura militar.
  9. 9. em que se empenhará o povo brasileiro terá um profundo conteúdo popular, englobando as mais amplas massas da população”. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil é a criação do Partido dos Trabalhadores11 que formula uma “Estratégica democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). O “Programa democrático e popular‟, projeto de sociedade para o país, só se concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional12 , inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela aspiração de democracia e liberdade. “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Primeira Declaração da Selva Lacandona, In: Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária surge, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)13 que defendendo a reforma agrária, preocupa-se com o consumo popular como expressão dos que estão sem qualquer tipo de assistência. “Dessa forma, tanto os pequenos produtores familiares, como os produtos destinados ao mercado interno para consumo popular, sempre estiveram à margem das prioridades da pesquisa agropecuária e da assistência técnica, mantidas pelo Estado” (ibid.: 519). Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da Educação Popular. Paulo Freire, por exemplo, em suas duas 11 O Partido dos Trabalhadores(PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu 7o . Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado numa tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário. 12 Surge em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas a luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça. 13 MST, um movimento deste final de século, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo.
  10. 10. importantes obras, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação, se popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos, dessa forma, têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, no sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares14 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado como algo “do povo”. No senso comum, povo é entendido como sendo aquele segmento de poucos recursos, posses e títulos. É um sentido dicotômico, fixado pelas expressões como elite-massa, em que o termo “massa” exprime pessoas desorganizadas e atomizadas. Uma outra compreensão percebe na expressão “do povo” um conjunto de indivíduos iguais e com interesses comuns com pequenos conflitos, apenas. Numa visão nacional-popular, “o povo” é identificado como aquele conjunto de pessoas que lutam contra um colonizador estrangeiro, ou a visão “de povo” expressando as classes subalternas da sociedade, tendo por oposição os dominantes. Há ainda o conceito de “povo” como o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualiza de forma permanente. 14 “Classes populares, pois serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Luiz Eduardo W. Wanderley, Educação popular e processo de democratização. In: A questão política da educação popular. Brasiliense, 2a . São Paulo, 1980.
  11. 11. O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode vê em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, o autor mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sócio-político naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade”(ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) vincula o popular aos movimentos sociais populares. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio-ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38). Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Nesse sentido, é necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações como enfoca Peluzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abarca expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popular-massivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões, envolvendo: a apropriação e a incorporação de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; as
  12. 12. programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vêm ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a Educação Popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) mostra que: “Diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras”. Mas que compreensões15 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Neste final de século, as concepções 15 Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba.
  13. 13. continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”16 . É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim ao mínimo de condições para uma vida digna” 17 . Uma outra percepção vincula-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 18 . Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que contenha “ procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”19 . O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade e atendendo aos interesses desta classe”20 . Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 21 . É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “Programa democrático e popular” para o país. É fácil perceber-se quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde realizam suas políticas. Tornou-se possível, dessa maneira, a „catalogação‟ das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que está, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa 16 Entrevista com dirigente do Sindicato dos Professores da Rede Oficial do Estado. 17 Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux, Pb 18 Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux, Pb. 19 Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos de Rua/Pb. 20 Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/Pb. 21 Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/Pb.
  14. 14. por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, enfim, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos, que constrói um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nos movimentos sociais populares. CONCEPÇÕES DE POPULAR 22 CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES QUANTITATIVO DAS CONCEPÇÕES 1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. Alguns indicadores: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes 20,68% das compreensões externas apontam para visão de que algo é popular quando tem essas origens. 22 Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em toda as regiões geográficas da Paraíba e quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
  15. 15. desprivilegiadas; dirige-se às maiorias, ... 2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania. Alguns indicadores: direcionado ao povo humilde; ampliando canais de participação; exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas; ... 3. POSICIONAMENTO POLÍTICO E FILOSÓFICO Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias. Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo; ... 4. OUTROS ASPECTOS Surgem outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que o ser popular é uma questão de consciência. Alguns Indicadores Algo que vem de associação (comunidades de Base, 51,73% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para visão de que algo é popular se expressar mecanismo para contribuir para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática. 21,84% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que ser popular é posicionar- se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças. 5,71 % compreendem a questão do popular como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
  16. 16. movimentos dos Sem-Terra, sindicato...); uma questão de consciência. Total de indicadores selecionados das concepções de popular: oitenta e sete indicadores Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona todas as suas dimensões constitutivas ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua formulação conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social. Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta. Esta, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses desses setores das maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral
  17. 17. de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão e adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular vai no sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações e, sobretudo, que seja contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas, a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. Mas para que essa ação? Sua direção aponta no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias para a construção de uma outra sociedade, mesmo que arriscando a ordem para que todos tenham direitos, e assim a justiça, efetivamente, seja igual para todos. Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados àquelas maiorias. Nesse contexto, é que se reafirma como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já realizados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário. A
  18. 18. utopia da democracia, como valor permanente a ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não-realização, estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
  19. 19. Referências Beisiegel, Celso de Rui. Política e educação popular (A teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil). Ensaios – 85. São Paulo: Editora Ática, 1992. Bezerra, Aída. As atividades em educação popular. In: A questão política da educação popular. 2a . ed. São Paulo: 1980. Brandão, Carlos Rodrigues. A cultura do povo e a educação popular. In: A questão política da educação popular. 2a . ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. Calado, Alder Júlio Ferreira. Memória histórica e movimentos sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999. Canclini, Néstor Garcia. De qué estamos hablando cuando hablamos de lo popular? In: Comunicación y culturas populares en Latinoamérica. México: Gili, 1987. Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. __________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Hesíodo. Teogonia. Tradução e comentários por Ana Lúcia Silveira Cerqueria e Maria Therezinha Arêas Lyra. Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, 1979. _________. Teogonia. Origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano.3a. ed. Sãao Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 1995. _________. Os trabalhos e os dias. 3a. ed. Introdução, tradução e comentários: Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 1996. Hoornaert, Eduardo. A memória do povo cristão. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. Jaeger, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. (tradução Arthur M. Parreira; adaptação para a edição brasileira Monica Stahel; revisão do texto grego Gilson Cesar Cardoso de Souza). 3a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. Jiménez, Marco Raúl Mejía. Tendencias de la cultura y la cultura popular en la educacion popular. Contexto & Educação. Universidade de Ijuí, n. 9, jan/mar.Ijuí, 1988. Löwy, Michael (org.). O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. (tradutores: Cláudia Schilling, Luis Carlos Borges). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. Manfredi, Sílvia M. A educação popular no Brasil: Uma releitura a partir de Antonio Gramsci. In: A questão política da educação popular. Org. Carlos Rodrigues Brandão. 2a . ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. Marx, , Karl & Engels, Friedrich. O manifesto comunista.. 5a . Ed. São Paulo: Paz e Terra,. 1999.
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