O que foi o movimento abolicionista no Brasil

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A campanha cívica que pôs fim à escravidão no Brasil contou com a participação de vários setores da sociedade brasileira, à exceção dos grandes proprietários de terra - como os cafeicultores paulistas, que certamente perdiam com o fim da mão-de-obra escrava. É o que conta o historiador Marco Antonio Villa na entrevista que segue.

Como começou o movimento abolicionista do Brasil?

O abolicionismo foi um produto da década de 1880. Até então, o que havia eram tentativas emancipacionistas que queriam a extinção gradual do trabalho escravo, enquanto os abolicionistas desejavam a abolição total e imediata da escravidão.

Antes da lei áurea, a escravidão vinha perdendo força, não?

Sim. O primeiro golpe na escravatura foi a abolição do tráfico negreiro, ocorrido depois de 40 anos de pressões britânicas, através da lei Eusébio de Queirós, de 1850. Para os escravocratas, isso criou o problema de manter o trabalho compulsório sem o constante fluxo de mão-de-obra proveniente da África, devido à alta taxa de mortalidade entre os cativos causada pelas longas jornadas de trabalho, epidemias, castigos corporais e péssimas condições de alimentação e habitação.

Como os escravocratas resolveram esse problema?

Com o tráfico interprovincial. Entre 1850 e 1885, cerca de 150 mil a 200 mil escravos foram vendidos pelas províncias nordestinas para o sul cafeeiro. O comércio interprovincial aumentou devido à demanda sulista, mas também devido à crise da lavoura açucareira nordestina e os efeitos da seca de 1877-1879, que obrigou a venda de escravos em larga escala, acabando por se transformar em uma fonte de renda alternativa para a debilitada economia da região.

Houve outros fatores que favorecessem o emancipacionismo?

Sim, vários acontecimentos dos anos 1860. Por exemplo, a guerra do Paraguai, que se estendeu de 1864 a 1870. Milhares de escravos foram libertados para combater no lugar de seus proprietários. Além disso, houve a guerra civil americana, entre 1861 e 1865, que terminou com a vitória dos nortistas, favoráveis ao fim da escravatura. Houve a extinção da servidão na Rússia em 1861 e o fim da escravidão nos impérios francês e português. Tudo isso impulsionou o movimento emancipacionista aqui.

Os cafeicultores paulistas fizeram parte desse movimento?

É um equívoco associar os cafeicultores ao abolicionismo. Até as vésperas da abolição, o braço negro constituiu a base principal do trabalho nas fazendas de café. A introdução dos imigrantes europeus funcionou como uma fonte alternativa no fornecimento de força de trabalho, ocupou as brechas não preenchidas pelo trabalho escravo, que se tornava escasso e caro. A grande produtividade das terras da região permitiu aos fazendeiros paulistas adaptar-se mais rapidamente ao fim da escravidão, mas isso só ocorreu quando já não havia alternativa a não ser o trabalho livre.

Os cafeicultores eram a favor da escravidão. E quanto ao republicanismo?


O republicanismo teve pouca influência entre 1870 e 1885. A adesão de dom Pedro 2o à causa abolicionista abriu as portas a propaganda republicana, que começou a contar com o apoio dos conservadores. A relação entre os escravocratas descontentes com o apoio da coroa ao abolicionismo e o movimento republicano foi ficando cada vez mais estreita. A ideia republicana passa a simbolizar para os fazendeiros a possibilidade de manter seus privilégios de classe ameaçados pelo reformismo dos abolicionistas monárquicos, como Joaquim Nabuco e André Rebouças.

Joaquim Nabuco, aliás, merece destaque nessa história...

Certamente, a grande figura do movimento abolicionista, seu maior tribuno, foi Joaquim Nabuco. De 1878 a 1888 foi o principal representante parlamentar dos abolicionistas. Excelente orador e polemista, escreveu vários libelos antiescravistas e buscou apoio na Europa para o movimento, transformando-se num de seus símbolos e no alvo predileto do ódio dos escravocratas.

Quem participava do movimento? Quem eram os abolicionistas?


Gente de várias classes sociais, inclusive das elites políticas, como Nabuco, gente que pretendia reformar a monarquia, ou intelectuais brancos, como o teatrólogo Artur Azevedo e o poeta Castro Alves, ou negros como o advogado Luís Gama ou o engenheiro André Rebouças, ou mestiços como o jornalista José do Patriocínio. O próprio exército, que se formou na guerra do Paraguai e que contou com colaboração dos escravos. Além disso, as classes médias urbanas que começavam a ter significado na sociedade brasileira, os estudantes universitários, que vão desenvolver inúmeras atividades em prol da abolição.

Você pode dar exemplos dessas atividades?

Em São Paulo, por exemplo, a Sociedade dos Caifazes, um movimento abolicionista radical, liderado pelo advogado Antonio Bento de Sousa e Castro especializou-se em incentivar e organizar fugas de cativos. Utilizaram-se das ferrovias que, ironicamente, foram construídas para racionalizar o transporte do café, ou seja, a economia escravista, transformando-as em instrumentos que acabaram com a organização do trabalho. Do Oeste paulista, os escravos eram levados para São Paulo e daí para Santos, onde organizaram um grande quilombo, o Jabaquara, com cerca de dez mil habitantes.

A partir daí, como as coisas ficaram?


A abolição transformou-se num caminho sem retorno, quando o exército, em outubro de 1887, manifestou-se em petição à princesa Isabel, solicitando dispensa de perseguir os escravos fugidos. No final de 1887, a maioria dos fazendeiros acabou por se converter ao abolicionismo, ou melhor, por se resignar a ele. Em 13 de maio de 1888, depois de tramitar na Câmara e no Senado, a lei que abolia a escravidão foi levada à sanção da Princesa Isabel, que então exercia a Regência no lugar do pai. Não se deve ignorar a importância da Lei Áurea, que libertou cerca de 700 mil escravos que ainda havia no país. Além disso, criou mais ressentimentos contra a monarquia, abrindo caminho para a República.

Quais as consequências da abolição para a monarquia?


A monarquia brasileira foi sabiamente aconselhada a pagar uma indenização aos proprietários de escravos, mas não levou em conta o bom conselho. Resultado: perdeu sua base de apoio. Até a fração mais "moderna" dos cafeicultores do Oeste Paulista passou a temer que o império realizasse reformas para obter apoio político da massa negra recém libertada. A necessidade de impedir qualquer alteração no status quo afastou os cafeicultores da monarquia e os jogou nos braços dos republicanos.

 O movimento abolicionista nas últimas décadas do Império constituiu um dos principais pilares contra a permanência da escravidão no Brasil. Outro pilar de luta contra a escravidão era a própria ação dos escravos, caracterizadas por rebeliões, fugas em massas e recorrências aos tribunais para conseguirem sua liberdade.

Para alguns grupos sociais do Império os dois pilares da luta contra a escravidão – movimento abolicionista e ação autônoma dos cativos contra a escravidão – deveriam convergir em atuações conjuntas. Para outros grupos sociais os dois pilares não deveriam convergir, entendendo que o movimento abolicionista deveria ser conduzido sem a participação dos escravos.

Tal situação refletia a existência de diversos grupos interessados no fim da escravidão, que iam desde monarquistas a republicanos, de grandes latifundiários a ex-escravos. Entretanto, é possível destacar a existência de dois tipos de movimento abolicionista no Brasil do século XIX, que genericamente pode ser divido entre o movimento abolicionista das elites e o movimento abolicionista popular.

Os principais expoentes do movimento abolicionista das elites podem ser encontrados, por exemplo, em organizações como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, criada em 1880 e liderada por Joaquim Nabuco. Ou na Confederação Abolicionista, fundada por José do Patrocínio e outros militantes em 1883.

Outros setores da sociedade se posicionavam naquele momento da história do Brasil também contra a reprodução da escravidão, como entre os oficiais do exército, que se recusaram a cumprir sua função de capitães-do-mato. Ou mesmo grandes latifundiários de São Paulo, que viam a escravidão como um obstáculo a um maior desenvolvimento econômico de seus empreendimentos.

Estes grupos pretendiam alcançar a abolição da escravidão do Brasil através de meios pacíficos e legais, sob a tutela do Estado e, em muitos casos, de forma gradual e com indenizações aos investimentos realizados pelos proprietários dos cativos.

Posturas como essas indicam uma preocupação. A de que as fugas em massas e as rebeliões de escravos fugissem do controle caso fossem apoiadas, criando um clima de revolta social generalizada no Brasil. Era a preocupação das elites de que as classes perigosas da sociedade não mais aceitassem a situação de miséria e exploração a que estavam submetidas, e se voltassem contra seus senhores.

A própria legislação abolicionista era uma resposta à ação dos escravos, como uma forma de conter a escalada de fugas e violências contra os senhores.

Porém, havia grupos sociais em várias partes do país que viam a necessidade de apoiar a luta dos escravos de forma direta e prática. Luiz Gama era uma dessas pessoas. Vendido como escravo pelo pai na infância, Gama conseguiu sua alforria. Estudou e passou a advogar. Nessa função atuou nos tribunais conseguindo a libertação de mais de quinhentos escravos.

No Ceará, o jangadeiro e ex-escravo Francisco do Nascimento passou a se recusar a transportar escravos para os navios no porto de Fortaleza no início da década de 1880. Como isso se iniciou uma onda de libertação de escravos nas cidades e fazendas da província, sem indenizações aos senhores. Em 1884, a escravidão foi abolida no Ceará. Esse tipo de ação ocorreu também na Bahia e no Rio Grande do Sul.

Na província de São Paulo, o ex-delegado, ex-promotor, ex-juíz e jornalista Antônio Bento criou o grupo dos Caifazes. Formado em sua maioria por tipógrafos, artesãos, pequenos comerciantes e ex-escravos, como Antônio Paciência, os caifazes auxiliavam na organização e fuga em massa dos escravos das fazendas. Utilizavam as ferrovias para transportar os fugidos, clandestinamente, em muitos casos para cidades como São Paulo e Santos. Nessa última cidade criaram ainda o Quilombo do Jabaquara, por onde passou mais de dez mil escravos, além de conseguir empregos para muito deles.

Os exemplos referidos servem para o leitor perceber a diversidade de formas que tomou o movimento abolicionista no Brasil. Indicando que o início do processo de modernização capitalista da sociedade brasileira necessitava de encerrar com a escravidão. E como em todos os outros momentos da história do país, esse encerramento se deu forma violenta, colocando os grupos sociais em lados opostos nos conflitos sociais.