Italo calvino por que ler os clássicos pdf

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Obras do autor publicadas pela Companhia das Letras ITALO CALVINO Os amores dijkeis POR QUE LER O barão nas árvores O caminho de San Giovanni OS CLÁSSICOS O castelo dos destinos cruzados O cavaleiro inexistente Traduçfto: As cidades invisíveis NTLSON MOULTN Contosjàntásticos do século XIX (org) 2ªedição As cosmicômicas 4il reimpressão O dia de um escrutinador Eremita em Paris COMPANHIA DAS LETRAS Fábulas italianas Um general na bihlioteca Marcovaldo ou As estações na cidade Os nossos antepassados Palomar Perde quem jka zangado primeiro (injàntil) Por que ler os clássicos Se um viajante numa noite de inverno Seis propostas para o próximo milênio - Lições americanas Soh o sol:;aguar Todas as cosmicômicas A trilha dos ninhos de aranhas O visconde partido ao meio\\~ ÍNDICE Copyright © 1991 hy Palomar S.r.!. Nota da edição italiana, 7 Título original: Por que ler os clássicos, 9 iPerché leggere C!assici As Odisséias na Odisséia, 17 Xenofonte, Anábase, 25 Capa: Ovídio e a contigüidade universal, 31 Naul Loureiro O céu, o homem, o elefante, 43 As sete princesas de Nezami, 55 Pr'\"paração: Tirant 10 Blanc, 62 Márcia Copula A estrutura do Orlando, 67 Pequena antologia de oitavas, 76 R,\"vis~lO: Gerolamo Cardano, 83 Liege Marucci O livro da Natureza em Galileu, 89 Lucíola S. de Moraes Cyrano na Lua, 96 Robinson Crusoe, Dados Internacionais de- Catalogaç)o na Puh[ica~)o (CII') o diário das virtudes mercantis, 102 (Cfllllara Brasilt:ira do Livro, SI', Brasil) Candide ou a velocidade, 108 Denis Diderot, jacques le jataliste, 113 Cal\\.'ino, Italo, 1923-19HS. Giammaria Ortes, 119 Por que Icr os c1Clssicos / ltalo Calvino ; tradll\\;~\\O Nilson O conhecimento atomizado Moulin. - S:Ü) Paulo: Companhia das Le-tras, 1993. em Stendhal, 125 Guia à Chartreuse para iTítulo original: Pe-rché lcggen:: classici. uso dos novos leitores, 140 ISl\\~ 97H-8S-716/f-339-0 l. Calvino, ltalo, 1923-19BS - Livros e- leitura I. Título. 93-2469 u)I)-809 Índice para catálogo sistemático: 1. Obras litcr<Íri<-ls : Aprcciaçào crítica 809 2007 Todos os dirdtos (ksta edição r,\"s,\"rvados ã EDnORA SCHWARCZ 1:IDA. Rua Ban(kira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 - São Paulo - SI' Tckfone: (11) 3707-3500 Fax: (lI) 3707-3501 www.companhiadaslctras.com.hrA cidade-romance em Balzac, 147 NOTA DA EDIÇÃO ITALIANA Charles Dickens, Our mutual jriend, 153 Gustave Flaubert, Trois contes, 159 Numa carta de 27 de novembro de 1961, Iralo Calvino es- Lev Tolstoi, Dois hussardos, 162 creveu a Niccolà GaBo: \"Para reunir ensaios esparsos e não orgâ- Mark Twain, \"O homem que nicos como os meus é preciso aguardar a própria morte ou pelo menos a velhice avançada\". corrompeu Hadleyburg\", 166 Henry James, Daisy Miller, 172 Mesmo assim, Calvino iniciou esse trabalho em 1980 com Una Robert Louis Stevenson, pietra sopra e, em 1984, publicou Collezione di sabbia. Depois, autorizou a coletânea no exterior, nas versões inglesa, americana, O pavilhão nas dunas, 176 francesa de Una pietra sopra - que não são idênticas ao ori- Os capitães de Conrad, 181 ginal -, dos ensaios sobre Homero, Plínio, Ariosto, Balzac, Sten- Pasternak e a revolução, 186 dhal, Montale e do ensaio que dá título a este livro. Além disso, O mundo é uma alcachofra, 205 modificou - e num caso, Ovídio, agregou uma página que dei- Carlo Emilio Gadda, O Pasticciaccio, 208 xou manuscrita - alguns dos títulos destinados a uma publicação Eugenio Montale, italiana ulterior. \"Forse un mattino andando\", 216 O escolho de Montale, 227 Neste volume, encontra-se grande parte dos ensaios e artigos Hemingwaye nós, 231 de Calvino sobre \"seus\" clássicos: os escritores, os poetas, os cien- Francis Ponge, 240 tistas que mais contaram para ele em diversos períodos de sua vi- Jorge Luis Borges, 246 da. No que concerne aos autores deste século, dei preferência aos A filosofia de Raymond Queneau, 254 ensaios sobre os escritores e poetas pelos quais Calvino nutria uma Pavese e os sacrifícios humanos, 273 admiração particular. Nota bibliográfica, 277 Esther Calvino 7Desejo agradecer a Elisabetta Stefanini pela preciosa POR QUE LER OS CLÁSSICOS ajuda. Comecemos com algumas propostas de definição. E.G. 1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ou- ve dizer: \"Estou relendo ... \" e nunca \"Estou lendo ... \". NOTA DO TRADUTOR: As principais fontes utilizadas nesta tradução foram: J. Brandão, Dicionário mítico-etimológico Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consi- da mitologia grega, Petrópolis, Vozes, 1991-2, 2 vaIs.; deram \"grandes leitores\"; não vale para a juventude, idade em que O. M. Carpeaux, História da literatura ocidental, 2 ~ ed. o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mun- rev. atual., Rio de Janeiro, Alhambra, 1978-84, 8 vols. do vale exatamente enquanto primeiro encontro. O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma peque- na hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranqüilizá-Ias, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras \"de formação\" de um indi- víduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu. Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ci- clos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edi- ções em circulação, se diria que continuam a lê-Ia mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apare- ceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encon- tram, logo começam a falar de episódios e personagens como se 9• POR QUE LER OS CLÁSSICOS POR QUE LER OS CLÁSSICOS • fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecio- do se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se co- nando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emi- mo inconsciente coletivo ou individual. le Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon- Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descre- a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros veu num belíssimo ensaio. permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na encontro é um acontecimento totalmente novo. idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da ju- Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita ventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer importância. De fato, poderíamos dizer: outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao pas- so que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) mui- 4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descober- tos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então ta como a primeira. esta outra fórmula de definição: 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma 2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma ri- releitura. queza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-Iaspe- A definição 4 pode ser considerada corolário desta: la primeira vez nas melhores condições para apreciá-Ias. 6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas que tinha para dizer. pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais formativas no sentido de que dão uma forma às experiências fu- explicativa, como: turas, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de be- 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós tra- leza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recor- zendo consigo as marcas das leituras que precederam a nos- demos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro sa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na lingua- fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem ha- gem ou nos costumes). víamos esquecido. Existe uma força particular da obra que conse- gue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os mo- A definição que dela podemos dar então será: dernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não pos- ) so esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a 3. Os clássicos são livros que exercem uma influência parti- significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me cular quando se impõem como inesquecíveis e também quan- se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrusta- ções, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar 10 de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, 11• POR QUE LER OS CLÁSSICOS POR QUE LER OS CLÁSSICOS • que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro ver ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola e fora de contexto. Se leio Pais efilhos de Turgueniev ou Os pos- deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número suídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você pode- personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias. rá depois reconhecer os \"seus\" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será de- mais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar- mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A se com aquele que se torna o \"seu\" livro. Conheço um excelente escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Do- questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Exis- cumentos de Pickwick e a propósito de tudo cita passagens pro- te uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a in- vocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com epi- trodução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como sódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que: de clássico muito elevada e exigente: 8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma 10. Chama-se de clássico um livro que se configura como nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. repele para longe. Com esta definição nos aproximamos da idéia de livro total, O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sa- como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma bíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspi- primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particu- ra um irresistível desejo de contradizê-Io, de criticá-Io, de brigar lar). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamen- sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma tal, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do não posso deixar de incluí-Io entre os meus autores. Direi portanto: tipo: 11. O \"seu\" clássico é aquele que não pode ser-lhe indife- 9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhe- rente e que serve para definir a você próprio em relação e cer por ouvir dizer, quando são lidos defato mais se reve- talvez em contraste com ele. lam novos, inesperados, inéditos. Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clás- Naturalmente isso ocorre quando um clássico \"funciona\" co- sico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. mo tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se (Para a histórix/de todas essas acepções do termo, consulte-se o a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por de- 13 12• POR QUE LER OS CLÁSSICOS POR QUE LER OS CLÁSSICOS • exaustivo verbete \"Clássico\" de Franco Fortini na Enciclopédia alterná-Ia com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. E isso Einaudi, vol. rn). Aquilo que distingue o clássico no discurso que não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insa- para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um tisfação trepidante. lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer: Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do la- 12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássi- do de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trân- cos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reco- sito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o dis- nhece logo o seu lugar na genealogia. curso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualida- como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras des como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então: que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: \"Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em lei- 1]. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho defundo, mas ao mesmo tempo não po- turas que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?\" e de prescindir desse barulho de fundo. \"Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clás- sicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da 14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde atualidade?\" . predomina a atualidade mais incompatível. É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradi- que dedique o \"tempo-leitura\" de seus dias exclusivamente a ler ção com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos lon- Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Dis- gos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com cours de Ia méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catá- e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas logo do classicismo que nos interessa. islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem tra- Eram as condições que se realizavam plenamente para Leo- balhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pes- pardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega soa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma conta- e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluin- minação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar do a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológi- dos romances e em geral das novidades editoriais, relega das no ca. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser máximo a um papel secundário, para conforto da irmã (\"o teu justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas Stendhal\", escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir \"de on- eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de de\" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento de Colombo em Robertson. máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe 15 14• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS ODISSÉIAS NA ODISSÉIA Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é im- Quantas Odisséias contém a Odisséia? No início do poema, pensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. a Telemaquia é a busca de uma narrativa que não existe, aquela Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplica- narrativa que será a Odisséia. No palácio de Ítaca, o cantor Fêmio ram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só já sabe os nostoi dos outros herÓis; só lhe falta um, o de seu rei; nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de por isso, Penélope não quer mais ouvi-Io cantar. E Telêmaco par- nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de li- te em busca dessa narrativa junto aos veteranos da Guerra de Tróia: vros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que se a encontrar, termine ela bem ou mal, Ítaca sairá da situação pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando amorfa sem tempo e sem lei em que se encontra há tantos anos. uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas oca- sionais. Como todos os veteranos, também Nestor e Menelau têm mui- to para contar; mas não a história que Telêmaco procura. Até que Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana Menelau aparece com uma fantástica aventura: disfarçado de foca, que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescre- capturou o \"velho do mar\", isto é, Proteu das infinitas metamor- ver todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem foses, e obrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Certamente para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italia- Proteu já conhecia toda a Odisséia de ponta a ponta: começa a nos são indispensáveis justamente para serem confrontados com relatar as aventuras de Ulisses do mesmo ponto que Homero, com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente o herói na ilha de Calipso; depois se interrompe. Naquela altura, para serem confrontados com os italianos. Homero pode substituí-l o e continuar a narração. Depois deveria reescrevê-Io ainda uma vez para que não se Tendo chegado à corte dos feacos, Ulisses ouve um aedo cego pense que os clássicos devem ser lidos porque \"servem\" para qual- como Homero que canta as peripécias de Ulisses; o herói explo- quer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clás- de em lágrimas; depois se decide a narrar ele próprio. No relato, sicos é melhor do que não ler os clássicos. chega ao Hades para interrogar Tirésias e este lhe conta a seqüên- cia da história. Mais tarde, Ulisses encontra as sereias que can- E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pen- 17 sador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itá- lia): \"Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprenden- do uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer' \". 1981 16• POR QUE LER OS CLÁSSICOS li AS ODISSÉIAS NA ODISSÉIA • tam; O que cantam? Ainda a Odisséia, quem sabe igual àquela que f Sobre o tema \"esquecer o futuro\" publiquei há anos algumas estamos lendo, talvez muito diferente. Este retorno-narrativa é al- considerações (Corriere delta Sera, 10/8/75) que assim concluíam: go que já existe, antes de se completar: preexiste à própria atua- J ção. Já na Telemaquia, encontramos as expressões \"pensar o re- o que Ulisses salva do lótus, das drogas de Circe, do canto das se- torno\", \"dizer o retorno\". Zeus não \"pensava no retorno\" dos J atridas (m, 160); Menelau pede à filha de Proteu que lhe \"diga o reias, não é apenas o passado e o futuro. A memória conta realmen- retorno\" (IV, 379) e ela lhe explica como obrigar o pai a contá-lo te - para os indivíduos, as coletividades, as civilizações - só se man- (390), e assim o atrida pode capturar Proteu e pedir-lhe: \"Diga- tiver junto a marca do passado e o projeto do futuro, se permitir me o retorno, como velejarei no mar piscoso\" (470). fazer sem esquecer aquilo que se pretendia fazer, tornar-se sem dei- xar de ser, ser sem deixar de tornar-se. O retorno deve ser identificado, pensado e relembrado: o pe- rigo é que possa ser esquecido antes que ocorra. De fato, uma das Ao meu texto seguia-se uma intervenção de Edoardo Sangui- primeiras etapas da viagem contada por Ulisses, aquela na terra neti no Paese Sera (agora no Giornalino 1973-1975, Turim, Ei- dos lotófagos, comporta o risco de perder a memória, por ter naudi, 1976) e uma réplica de cada um, minha e dele. Sanguineti objetava: comido o doce fruto do lótus. Que a prova do esquecimento se j Porque não se pode esquecer que a viagem de Ulisses não é de jeito apresente no início do itinerário de Ulisses, e não no fim, pode nenhum uma viagem de ida, mas de retorno. E então é preciso parecer estranho. Se, após ter superado tantos desafios, suporta- 1 interrogar-se um momento, exatamente, que tipo de futuro ele tem do tantas travessias, aprendido tantas lições, Ulisses tivesse esque- pela frente: pois aquele futuro que Ulisses anda procurando é de fa- cido algo, sua perda teria sido bem mais grave: não extrair expe- to o seu passado. Ulisses vence as bajulações da Regressão porque riências do que sofrera, nenhum sentido daquilo que vivera. se acha todo voltado para uma Restauração. Contudo, pensando bem, a perda da memória é uma ameaça Compreende-se que um dia, por despeito, o verdadeiro Ulisses, que nos cantos IX-XII se repropõe várias vezes: primeiro com o o grande Ulisses, tenha se tornado aquele da Última Viagem: para convite dos lotófagos, depois com os elixires de Circe e mais tar- o qual o futuro não é de modo nenhum um passado, mas a Realiza- de com o canto das sereias. Em todas as situações Ulisses deve ção de uma Profecia - isto é, de uma verdadeira Utopia. Ao passo estar atento, se não quiser esquecer de repente ... Esquecer o quê? que o Ulisses homérico logra recuperar seu passado como um pre- A Guerra de Tróia? O assédio? O cavalo? Não: a casa, a rota da sente: sua sabedoria é a Repetição e isso pode ser bem reconhecido pela Cicatriz que traz e que o marca para sempre. navegação, o objetivo da viagem. A expressão que Homero usa Em resposta a Sanguineti, lembrava eu que (Corriere delta Se- nesses casos é \"esquecer o retorno\". ra, 14/10/75) \"na linguagem dos mitos, bem como na das fábulas Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, e do romance popular, toda empresa portadora de justiça, repara- a forma de seu destino: em resumo, não pode esquecer a Odisséia. dora de ofensas, resgate de uma condição miserável, vem em ge- 1Porém, mesmo o aedo que compõe improvisando ou o rapsodo ral representada como a restauração de uma ordem ideal anterior; o desejo de um futuro a ser conquistado é garantido pela memó- que repete de cor trechos de poemas já cantados não podem ol- vidar se querem \"dizer o retorno\"; para quem canta versos sem ria de um passado perdido\". o apoio de um texto escrito, esquecer é o verbo mais negativo Se examinarmos as fábulas populares, verificaremos que elas que existe; e para eles \"esquecer o retorno\" significa olvidar os apresentam dois tipos de transformação social, sempre com final poemas chamados nostoi, cavalo de batalha de seu repertório. feliz: primeiro de cima para baixo e depois de novo para cima; 18 19• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS ODISSÉIAS NA ODISSÉIA • ou então simplesmente de baixo para cima. No primeiro tipo, exis- valeiros caídos em desgraça, quando triunfarem sobre seus inimi- te um príncipe que por alguma circunstância desastrosa se vê re- gos hão de restaurar uma sociedade dos justos em que será reco- duzido a guardador de porcos ou alguma outra condição miserá- nhecida sua verdadeira identidade. vel, para depois reconquistar sua condição real; no segundo tipo, existe um jovem que não possui nada desde o nascimento, pastor Mas será ainda a mesma identidade de antes? O Ulisses que ou camponês e talvez também pobre de espírito, que por virtude desembarca em Ítaca como um velho mendigo irreconhecível a própria ou ajudado por seres mágicos consegue se casar com a todos talvez não seja mais a mesma pessoa que o Ulisses que par- princesa e tornar-se rei. tiu para Tróia. Não por acaso salvara a vida trocando o nome para Ninguém. O único reconhecimento imediato e espontâneo vem Os mesmos esquemas valem para as fábulas com protagonis- do cão Argos, como se a continuidade do indivíduo só se mani- ta feminina: no primeiro tipo, a donzela de uma condição real ou festasse por meio de sinais perceptíveis para um olho animal. pelo menos privilegiada cai numa situação despojada pela rivali- dade de uma madrasta (como Branca de Neve) ou de meias-irmãs Para a ama-de-leite sua identidade é comprovada por uma ci- (como Cinderela) até que um príncipe se apaixona por ela e a con- catriz de garra de javali, o segredo da fabricação do leito nupcial duz ao vértice da escala social; no segundo tipo, se encontra uma com uma raiz de oliveira é a prova para a esposa e, para o pai, verdadeira pastora ou camponesa pobre que supera todas as des- uma lista de árvores frutíferas; todos eles signos que não têm vantagens de seu humilde nascimento e realiza núpcias principes- nada de régio, que associam o herói com um caçador, um marce- cas. neiro, um homem do campo. A esses sinais se acrescentam a for- ça física e uma combatividade impiedosa contra os inimigos; e Poderíamos pensar que as fábulas do segundo tipo são as que sobretudo o favor manifestado pelos deuses, que é aquilo que con- exprimem mais diretamente o desejo popular de uma reviravolta vence também Telêmaco, mas só enquanto ato de fé. dos papéis sociais e dos destinos individuais, ao passo que as do primeiro tipo deixam aparecer tal desejo de forma mais atenuada, Por seu lado Ulisses, irreconhecível, despertando em Ítaca não como restauração de uma hipotética ordem precedente. Mas, pen- reconhece sua pátria. Atenas terá de intervir para garantir-lhe que sando bem, os destinos extraordinários do pastorzinho ou da pas- Ítaca é mesmo Ítaca. A crise de identidade é geral, na segunda me- torzinha representam apenas uma ilusão miraculosa e consolado- tade da Odisséia. Só a narrativa garante que as personagens são ra que será depois largamente continuada pelo romance popular as mesmas personagens e os lugares são os mesmos lugares. Mas e sentimental. Todavia, os infortúnios do príncipe ou da rainha também a narrativa muda. O relato que o irreconhecível Ulisses desventurada associam a imagem da pobreza com a idéia de um faz ao pastor Eumeu, depois ao rival Antinous e à própria Penélo- direito subtraído, de uma justiça a ser reivindicada, isto é, esta- pe é uma outra Odisséia, completamente diversa; as peregrinações belecem (no plano da fantasia, onde as idéias podem deitar raízes que levaram de Creta até ali a personagem fictícia que ele afirma sob a forma de figuras elementares) um ponto que será fundamen- ser, uma história de naufrágios e piratas muito mais verossímil do tal para toda a tomada de consciência social da época moderna, que aquela que ele mesmo fizera ao rei dos feacos. Quem nos ga- da Revolução Francesa em diante. rante que não seja esta a \"verdadeira\" Odisséia? Mas esta nova Odisséia remete a uma outra Odisséia ainda: o cretense encontra- No inconsciente coletivo, o príncipe disfarçado de pobre é ra Ulisses em suas viagens; assim, eis que Ulisses narra de um Ulis- a prova de que cada pobre é na realidade um príncipe que sofreu ses em viagem por países em que a Odisséia considerada \"verda- uma usurpação e que deve reconquistar seu reino. Ulisses ou Gue- deira\" não o fizera passar. rin Meschino ou Robin Hood, reis ou filhos de reis ou nobres ca- 21 20• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS ODISSÉIAS NA ODISSÉIA • Que Ulisses era um mistificado r já se sabia antes da Odisséia. do poema, portanto o próprio Homero vai confirmá-Ias; e não é Não foi ele quem inventou o grande engodo do cavalo? E, no iní- só isso: os próprios deuses discutem-nas no Olimpo. E que tam- cio da Odisséia, as primeiras evocações de sua personagem são bém Menelau, na Telemaquia, conta uma aventura com a mesma dois flash-backs sobre a Guerra de Tróia narrados um depois do matriz fabular que a de Ulisses: o encontro com o velho do mar. outro por Helena e Menelau: duas histórias de simulação. Na pri- Só nos resta atribuir as diversidades de estilo fantástico àquela mon- meira, ele penetra com vestimentas falsas na cidade assediada pa- ra ali introduzir a chacina; na segunda, é encerrado dentro do ca- tagem de tradições de diferentes origens transmitidas pelos aedos valo com seus companheiros e consegue impedir que Helena os e depois desembocadas na Odisséia homérica, e que no relato de desmascare induzindo-os a falar. Ulisses na primeira pessoa revelaria seu substrato mais arcaico. (Em ambos os episódios, Ulisses se encontra perante Helena; Mais arcaico? Segundo Alfred Heubeck, as coisas poderiam no primeiro como aliada, cúmplice da simulação; no segundo en- ter ocorrido de maneira exatamente oposta. (Ver Homero, Odis- quanto adversária que imita as vozes das mulheres dos aqueus pa- sea, Livros I-IV, introdução de A. Heubeck, texto e comentário r~ induzi-Ios a trair-se. O papel de Helena é contraditório, mas sem- de Stephanie West, Milão, Fundação Lorenzo Valla/Mondadori, pre marcado pela simulação. Do mesmo modo, Penélope também 1981.) se apresenta como fingidora, com o estratagema do tecido; o bor- dado de Penélope é um estratagema simétrico ao do cavalo de Antes da Odisséia (incluindo-se a Ilíada), Ulisses sempre fora Tróia e como ele é um produto da habilidade manual e da contra- um herói épico, e os heróis épicos, como Aquiles e Heitor na Ilíada, fação: as duas principais qualidades de Ulisses são também carac- não têm aventuras fabulares daquele tipo, na base de monstros terísticas de Penélope.) e encantos. Mas o autor da Odisséia deve manter Ulisses longe de Se Ulisses é um simulador, todo o relato que ele faz ao rei casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para os familiares dos feacos poderia ser mentiroso. De fato, suas aventuras maríti- e para os ex-companheiros de armas. Para conseguir isso, deve mas, concentradas em quatro livros centrais da Odisséia, rápida fazê-Io sair do mundo conhecido, entrar em outra geografia, num sucessão de encontros com seres fantásticos (que surgem nas fá- mundo extra-humano, num além (não por acaso suas viagens cul- bulas do folclore de todos os tempos e lugares: o ogro Polifemo, minam na visita aos Infernos). Para tal extrapolação dos territó- os vinte encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e mons- rios da épica, o autor da Odisséia recorre a tradições (estas, sim, tros marinhos), contrastam com o restante do poema, em que mais arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas. dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dra- mático gravitando sobre um objetivo: a reconquista do reino e Portanto, constitui a novidade da Odisséia ter colocado um da mulher cercados pelos prócios. Também aqui se encontram herói épico como Ulisses às voltas \"com bruxas e gigantes, com motivos comuns às fábulas populares, como o tecido de Penélo- monstros e devoradores de homens\", isto é, em situações de um pe e a prova de arco e flecha, mas estamos num terreno mais pró- tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas \"no ximo dos critérios modernos de realismo e verossimilhança: as mundo da antiga fábula e até de primitivas concepções mágicas intervenções sobrenaturais concernem somente às aparições dos e xamanísticas\". deuses olímpicos, em geral encobertos por feições humanas. É aqui que o autor da Odisséia manifesta, segundo Heubeck, Porém, é preciso recordar que as mesmas aventuras (sobre- sua verdadeira modernidade, aquela que o torna próximo e atual: tudo a de Polifemo) são evocadas igualmente em outras passagens se tradicionalmente o herói épico era um paradigma de virtudes aristocráticas e militares, Ulisses é tudo isso e ainda mais, é o ho- 22 mem que suporta as experiências mais duras, as fadigas, a dor e a solidão. \"Certamente ele arrasta seu público a um mítico mun- 23• POR QUE LER OS CLÁSSICOS XENOFONTE, '.f:1NÁBASE\" do de sonho, mas esse mundo de sonho se torna simultaneamen- A impressão mais forte que Xenofonte causa para quem o te a imagem especular do mundo real em que vivemos, no qual dominam necessidades e angústia, terror e dores, e no qual o ho- lê hoje é a de estar vendo um velho documentário de guerra, co- mem se acha imerso sem escapatória.\" mo os que são reapresentados de vez em quando no cinema ou na televisão. O fascínio do branco e preto, do filme meio apaga- No mesmo volume, Stephanie West, embora partindo de pre- do, com fortes contrastes de sombras e movimentos acelerados, missas diferentes das de Heubeck, formula uma hipótese que da- vem espontaneamente ao nosso encontro em trechos como este ria validade ao discurso dele: a hipótese de que tenha existido uma (capítulo v do Livro IV): Odisséia alternativa, um outro itinerário do retorno, anterior a Ho- mero. Homero (ou quem quer que fosse o autor da Odisséia), con- Sempre em cima de muita neve acumulada percorrem mais quinze siderando esse discurso de viagens muito pobre e pouco signifi- parasangas em três dias. O terceiro dia é particularmente terrível por cativo, tê-Ia-ia substituído pelas aventuras fabulosas, mas inspiran- causa do vento tramontana que sopra no sentido contrário ao da do-se nas viagens do pseudocretense. De fato, no proêmio existe marcha: sopra furiosamente por todos os cantos, queimando tudo um verso que deveria apresentar-se como a síntese de toda a Odis- e congelando os corpos ... Para defender os olhos da reverberação séia: \"De muitos homens vi as cidades e conheci os pensamen- da neve, os soldados, ao andar, colocam alguma coisa negra sobre tos\". Que cidades? Quais pensamentos? Tal hipótese se adaptaria os olhos: contra o perigo de congelamento, o remédio mais eficaz melhor ao relato das viagens do pseudocretense ... é mexer sempre os pés, não ficar parado nunca e sobretudo desatar os sapatos à noite ... Um grupo de soldados, tendo ficado para trás Porém, assim que Penélope o reconheceu, no leito reconquis- por tais dificuldades, vislumbra não muito distante, numa vala em tado, Ulisses volta a falar de ciclopes, sereias ... Será que a Odis- meio ao manto de neve, uma poça escura: é neve derretida, pen- séia não é o mito de todas as viagens? Talvez para Ulisses-Homero sam. De fato, a neve se desfez naquele ponto, pela presença de uma a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse a mes- nascente que brota ali perto, exalando vapores para o céu. ma experiência ora na linguagem do vivido ora na linguagem do Mas citar Xenofonte não dá certo: aquilo que conta é a suces- mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou gran- são contínua de detalhes visuais e de ação; é difícil encontrar uma de, sempre é Odisséia. 25 1983 24• POR QUE LER OS CLÁSSICOS XENOFONTE, \"ANÁBASE\" • passagem que represente plenamente o prazer sempre variado da Em si mesmo, o tema da Anábase seria adequado a um conto leitura. Tentemos esta, duas páginas antes: picaresco ou herói-cômico: 10 mil mercenários gregos, engajados com pretexto mentiroso por um príncipe persa, Ciro, o jovem, Alguns gregos que se afastaram do campo contam ter vislumbrado numa expedição ao interior da Ásia Menor destinada na realidade à distância algo similar à massa de um exército e muitas fogueiras a derrubar o irmão Artaxerxes lI, são derrotados na batalha de surgindo na noite. Ao ouvir isso, os estrategos consideram pouco Cunaxa e se encontram sem chefes, distantes da pátria, tendo de seguro permanecer acampados de modo disperso e reúnem nova- forçar o caminho de retorno entre populações inimigas. Só que- mente o exército. Os soldados instalam-se todos ao ar livre, pois rem voltar para casa, mas, o que quer que façam, eles constituem parece que vai haver bom tempo. Como se tivesse sido programa- um perigo público: são 10 mil, armados, famintos, aonde chegam do, durante a noite cai neve suficiente para cobrir armas, animais depredam e destroem, como uma nuvem de gafanhotos; e arras- e homens encolhidos no chão; as bestas têm os membros tão enri- tam um enorme séquito de mulheres. jecidos pelo gelo que não conseguem erguer-se sobre as pernas; os homens hesitam em levantar-se, porque a neve depositada sobre Xenofonte não era o tipo de deixar-se tentar pelo estilo he- os corpos e ainda não derretida transmite calor. Então, Xenofonte róico da epopéia nem de explorar - a não ser raramente - os se levanta corajosamente e, despindo-se, começa a dar machada- aspectos truculento-grotescos de uma situação como aquela. Es- das na lenha; a exemplo dele, alguém se ergue, arranca-lhe o ma- creve o memorial técnico de um oficial, um diário de viagem com chado das mãos e prossegue a obra; outros mais se levantam e acen- todas as distâncias e os pontos de referência geográficos e infor- dem o fogo; todos untam braços e pernas não com óleo mas com mações sobre os recursos vegetais e animais, e uma resenha de ungüentos encontrados na aldeia, feitos com sementes de gergelim, problemas diplomáticos, logísticos, estratégicos e respectivas so- amêndoas amargase almecegueira, misturados com gordura. Extraí- luções. do das mesmas substâncias existe até um tipo de ungüento perfu- mado. O relato é entremeado de \"atas de reuniões\" do estado-maior A rápida mudança de uma representação visual para outra e e dos discursos de Xenofonte às tropas ou aos embaixadores dos daí para a anedota e de novo para o registro de costumes exóti- bárbaros. Dessas passagens oratórias eu conservava, desde os cos: este é o tecido que serve de fundo para um contínuo desen- bancos de escola, a lembrança de um grande tédio, mas me equi- rolar de episódios aventurosos, de obstáculos imprevistos na mar- vocava. O segredo, ao ler a Anábase, é jamais pular nada, acom- cha de um exército errante. Cada obstáculo é superado, em geral, panhar tudo ponto por ponto. Em cada um daqueles discursos mediante uma astúcia de Xenofonte: toda cidade fortificada a ser existe um problema político: de política externa (as tentativas de relações diplomáticas com os príncipes e os chefes dos territórios assaltada, toda tropa inimiga que se opõe em campo aberto, todo através dos quais se pede passagem) ou de política interna (as dis- vau, toda intempérie exigem um achado, uma centelha de gênio, cussões entre os chefes helênicos, com as habituais rivalidades en- uma invenção estratégica do narrador-protagonista-comandante. tre atenienses e espartanos etc.). E como o livro é escrito em po- Às vezes, Xenofonte parece uma daquelas personagens infantis de lêmica com outros generais, sobre as responsabilidades de cada histórias em quadrinhos que, em cada capítulo, superam dificul- um na condução daquela retirada, o fundo de polêmicas abertas dades impossíveis; ou melhor, muitas vezes os protagonistas do ou apenas referidas precisa ser extraído daquelas páginas. episódio são dois, os dois oficiais rivais, Xenofonte e Quirísofo, o ateniense e o espartano, e a invenção de Xenofonte é sempre Como escritor de ação, Xenofonte é exemplar; se o confron- a mais astuta, generosa e decisiva. tarmos com o autor contemporâneo que mais lhe corresponde - o coronel Lawrence - verificamos de que modo a mestria do in- 26 27• POR QUE LER OS CLÁSSICOS XENOFONTE, \"ANÁBASE\" • glês consiste em suspender - subentendido à exatidão, pura con- das virtudes clássicas, filosófico-cívico-militares, que Xenofonte cretude, da prosa - um halo de maravilha estética e ética ao re- e os seus tratam de adaptar às circunstâncias. E acontece que esse dor das histórias e das imagens; no grego não, a exatidão e a secu- contraste não possui em absoluto a tragicidade comovente do ra não deixam subentender nada: as duras virtudes do soldado não outro: Xenofonte parece convencido de haver conciliado os dois pretendem ser nada além das duras virtudes do soldado. termos. O homem pode reduzir-se a gafanhoto e mesmo assim apli- car a tal condição um código de disciplina e decoro - numa pa- Existe, sim, um pathos da Anábase: é a ânsia do retorno, a lavra: um \"estilo\"; e dar-se por satisfeito; não discutir nem muito angústia do país estrangeiro, o esforço de não se perder, pois en- nem pouco o fato de ser gafanhoto mas somente o modo de sê- quanto estiverem juntos de algum modo carregam a pátria consi- 10. Em Xenofonte, já está bem delineada com todos os seus limi- go. Essa luta pela volta de um exército conduzido à derrota numa tes a ética moderna da perfeita eficiência técnica, do estar' 'à altu- guerra que não é sua e abandonado a si mesmo, esse combater ra da situação\", do \"fazer bem as coisas que têm de ser feitas\" só para abrir uma brecha contra ex-aliados e ex-inimigos, tudo is- independentemente da avaliação da própria ação em termos de so aproxima a Anábase de um filão de nossas leituras recentes: moral universal. Continuo a chamar de moderna esta ética por- que assim era na minha juventude e era este o sentido que se os livros de memória sobre a retirada da Rússia dos alpinos italia- extraía de tantos filmes americanos e também dos romances de nos. Não é uma descoberta de agora: em 1953, Elio Vittorini, ao apresentar aquele que viria a tornar-se um livro exemplar no gê- Hemingway, e eu oscilava entre a adesão a esta moral \"técnica\" nero, Il sergente nella neve de Mario Rigoni Stern, o definia co- e \"pragmática\" e a consciência do vazio que se abria por baixo. mo \"pequena anábase dialetal\". E, de fato, os capítulos de retira- Mas ainda hoje, quando parece tão longe do espírito da época, da na neve da Anábase (dos quais extraí as citações anteriores) creio que tinha algo de bom. são ricos em episódios que poderiam ser tomados pelos do Ser- gente. Xenofonte tem o grande mérito, no plano moral, de não mis- tificar, de nunca idealizar a posição que defende. Se em relação Característica de Rigoni Stern e de outros dentre os melho- aos costumes dos \"bárbaros\" manifesta freqüentemente o distan- res livros italianos sobre a retirada da Rússia é que o narrado r- ciamento e a aversão do \"homem civilizado\", deve ser dito que protagonista é um bom soldado, tal como Xenofonte, e fala das a hipocrisia \"colonialista\" lhe era estranha. Sabe que comanda uma ações militares com empenho e competência. Para eles como pa- horda de bandidos em terra estrangeira, sabe que a razão não per- ra Xenofonte as virtudes guerreiras, no desmoronamento geral das tence a ele mas aos bárbaros invadidos. Em suas exortações aos ambições mais pomposas, voltam a ser virtudes práticas e solidá- soldados não deixa de relembrar as razões dos inimigos: \"Uma rias segundo as quais se mede a capacidade de cada um de ser útil ou.tra consideração vocês precisam fazer. Os inimigos terão tem- não apenas a si mesmo mas também aos outros. (Lembremos La po para destruir-nos e possuem boas razões para preparar-nos ci- guerra dei poveri de Nuto Revelli pelo apaixonado furor do ofi- ladas, já que ocupamos suas propriedades ... \". Ao tentar conferir cial desiludido; e um outro bom livro injustamente negligencia- um estilo, uma norma, a essa movimentação biológica de homens do, I lunghi fucili, de Cristoforo M. Negri.) ávidos e violentos entre as montanhas e as planícies da Anatólia, encontra-se toda a sua dignidade: dignidade limitada, não trágica, Porém, acabam aí as analogias. As memórias dos alpinos nas- no fundo burguesa. Sabemos que se pode muito bem conseguir cem do contraste de uma Itália humilde e sensata com as loucuras dar aparência de estilo e dignidade às piores ações, mesmo quan- e o massacre da guerra total; nas memórias do general do século do não ditadas como essas por um estado de necessidade. O exér- v, o contraste se dá entre a situação de nuvem de gafanhotos a que se reduziu o exército de mercenários helênicos e o exercício 29 28• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE UNIVERSAL cito dos helenos que serpenteia entre os desfiladeiros das monta- nhas e os vaus, entre contínuas emboscadas e saques, não mais Existe no alto céu uma via que se vê quando faz bom tempo. Lác- distinguindo onde passa de vítima a opressor, circundado também tea se chama e brilha justamente por sua brancura. Por ali passam na frieza dos massacres pela suprema hostilidade da indiferença os deuses dirigindo-se à moradia do Senhor Supremo dos Trovões, e do acaso, inspira uma angústia simbólica que talvez só nós pos- no palácio. À direita e à esquerda, com as portas abertas, acham-se samos entender. os átrios dos deuses nobres, sempre cheios de gente. A plebe mora dispersa noutros lugares. Os deuses mais poderosos e ilustres esta- 1978 beleceram aqui seu domicílio, em frente [\"\".a fronte potentes/ cae- licolae clarique suos posuere penates\"). Se a expressão não pareces- 30 se irreverente, ousaria dizer que esse lugar é o Palatino do grande céu. Assim Ovídio, na abertura das Metamorfoses, para introduzir- nos no mundo dos deuses celestes, começa aproximando-o tanto a ponto de torná-Ia idêntico à Roma de todos os dias, enquanto urbanismo, divisão em classes sociais, hábitos cotidianos (como no caso de clientes se amontoando). E enquanto religião: os deu- ses mantêm seus protetores nas casas onde residem, o que impli- ca que os soberanos dos céus e da terra tributam por sua vez um culto a seus pequenos deuses domésticos. Aproximação não quer dizer redução ou ironia: estamos num universo em que as formas preenchem densamente o espaço tro- cando de modo contínuo qualidades e dimensões, e o fluir do tem- po é ocupado por uma proliferação de contos e de ciclos de con- tos. As formas e as histórias terrestres repetem formas e histórias 31• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE ...• celestes, mas umas e outras se entrelaçam reciprocamente numa cidades de deuses e templos cheios de oferendas?\", diz Febo), po- dupla espiral. A contigüidade entre deuses e seres humanos - pa- voado por figuras de bestas ferozes que são apenas simulacra, for- rentes dos deuses e objeto de seus amores compulsivos - é um mas de constelações, mas nem por isso menos ameaçadoras; aí dos temas dominantes das Metamorfoses, mas não passa de um se reconhece uma pista oblíqua, a meia altura, que evita o pólo caso particular da contigüidade entre todas as figuras ou formas austral e a Ursa; mas se sairmos da estrada e nos perdermos pelos de tudo o que existe, antropomorfas ou não. Fauna, flora, reino precipícios, acabamos por passar sob a Lua, chamuscar as nuvens, mineral, firmamento englobam em sua substância comum aquilo atear fogo à Terra. que costumamos considerar humano enquanto conjunto de qua- lidades corpóreas, psicológicas e morais. Após a cavalgada celeste suspensa no vazio, que é a parte mais sugestiva do relato, começa a grande descrição da Terra, do mar A poesia das Metamorfoses se radica sobretudo nesses limi- fervente no qual flutuam corpos de focas de barriga para cima, uma das páginas clássicas do Ovídio catastrófico, que faz pendant tes imprecisos entre mundos diferentes, e já no Livro II encontra com o dilúvio do Livro r. Ao redor da Alma Tellus, da Terra-Mãe, refluem todas as águas. As fontes esgotadas tentam ocultar-se de uma ocasião extraordinária no mito de Faetonte, que ousa conduzir novo no escuro útero materno (\"fontes/ qui se condiderant in opa- o carro do Sol. O céu aí aparece como espaço absoluto, geome- cae viscera matris ...\"). E a Terra, exibindo os cabelos crestados tria abstrata e ao mesmo tempo teatro de uma aventura humana e os olhos injetados de cinza, pede clemência a]úpiter com o fio recriada com tal precisão de detalhes que não nos deixa perder de voz que resta à sua garganta sedenta, advertindo-o de que se o fio da meada nem por um segundo, levando o envolvimento os pólos se incendiarem ruirão também os palácios dos deuses. emocional até a dor. (Os pólos terrestres ou os celestes? Fala-se até do eixo da Terra, que Atlas já não consegue sustentar, pois está incandescente. Mas Não é apenas a precisão nos dados concretos mais materiais, naquele tempo os pólos eram uma noção astronômica e, além dis- como o movimento do carro que derrapa e pula por causa da so, o verso seguinte precisa: regia caeli. Então o palácio celeste leveza insólita da carga, ou nas emoções do jovem cocheiro desa- era mesmo lá em cima? Como é que Febo o excluía e Faetonte jeitado, mas na visualização de modelos ideais, como o mapa ce- não o encontrou? Por outro lado, tais contradições não se encon- leste. Digamos logo que se trata de uma precisão aparente, de tram só em Ovídio: também em Virgílio, como em outros sumos dados contraditórios que comunicam sua sugestão quando consi- poetas da Antiguidade, é difícil ter uma idéia clara de como os an- derados um por um e também como efeito narrativo geral, mas tigos \"viam\" de fato o céu.) não podem juntar-se numa visão coerente: o céu é uma esfera atra- vessada por caminhos que sobem e descem, identificáveis pelos O episódio culmina com a dt;struição do carro solar atingido sulcos das rodas, mas ao mesmo tempo giratória, turbilhão que pelo raio de ]úpiter, numa explosão de pedaços sem {im: \"Illic vai na direção contrária à do carro solar; encontra-se suspenso nu- frena iacent, illic temone revulsus/ axis, in hac radii fractarum parte ma altura vertiginosa sobre as terras e os mares que se vêem ao rotarum ...\". (Este não é o único acidente de trânsito nas Metamor- fundo; ora aparece como uma abóbada suspensa em cuja parte foses: uma outra mudança de rumo com grande velocidade é a mais alta encontram-se fixadas as estrelas; ora como uma ponte de Hipólito no último livro do poema, onde a riqueza de detalhes que sustenta o carro no vazio, provocando em Faetonte um ter- ao se referir ao acidente passa da mecânica para a anatomia, des- ror igual tanto para prosseguir quanto para recuar (\"Quid faciat? crevendo a dilaceração das vísceras e dos membros arrancados.) Multum caeli post terga relictum/ ante oculos plus est. Animo me- titur utrumque\"); é vazio e deserto (não é o céu-cidade do Livro 33 I, portanto: \"Talvez imagine que existam bosques sagrados e 32• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE ...• A mescla deuses-homens-natureza implica não uma ordem hie- Nem uma coisa nem outra. Na grande amostragem de mitos que é o poema inteiro, o mito de Palas e Aracne pode conter por rárquica unívoca mas um intricado sistema de interações em que sua vez duas amostragens em escala reduzida, com direcionamen- cada nível pode influir sobre os outros, mesmo que em medidas tos ideológicos opostos: um para infundir temor sacro e o outro diferentes. O mito, em Ovídio, é o campo de tensão em que tais para incitar à irreverência e à relatividade moral. Quem daí con- forças se defrontam e se equilibram. Tudo depende do espírito cluísse que o poema inteiro deve ser lido do primeiro modo - com que o mito é narrado: às vezes os próprios deuses relatam dado que o desafio de Aracne é cruelmente punido - ou do se- os mitos dos quais são partes interessadas como exemplos morais gundo - uma vez que a transcrição poética favorece o culpado para admoestar os mortais; em outros casos, os mortais usam os e a vítima - estaria enganado: as Metamorfoses pretendem repre- mitos de modo polêmico ou como desafio aos deuses, como fa- sentar o conjunto do que é passível de ser narrado transmitido zem as Piérides ou Aracne. Ou quem sabe existem mitos que os pela literatura com toda a força de imagens e de significados que deuses gostam de ouvir contar e outros que preferem sejam silen- ele comporta, sem decidir - segundo a ambigüidade propriamente ciados. As Piérides conhecem uma versão da escalada dos Gigan- mítica - entre as chaves de leitura possíveis. Só reunindo no poe- tes ao Olimpo, vista da parte dos Gigantes, com deuses assusta- ma todos os contos e as intenções de conto que fluem em todas dos e obrigados a fugir (Livro v). Ela é contada depois de terem as direções, que se acumulam e pressionam para canalizar-se na desafiado as musas na arte de narrar e as musas respondem com extensão ordenada de seus hexâmetros, o autor das Metamorfo- outra série de mitos, que restabelecem as razões do Olimpo; de- ses terá a certeza de não corresponder a um desenho parcial mas à multiplicidade vivente, que não exclui nenhum deus conheci- pois punem as Piérides transformando-as em pegas. O desafio aos do ou desconhecido. deuses implica uma intenção irreverente ou blasfema no relato: a tecelã Aracne desafia Minerva na arte de tecer e representa nu- O caso de um deus novo e estrangeiro, difícil de ser reconhe- cido como tal, um deus-escândalo em contraste com todo mode- ma tapeçaria os pecados dos deuses libertinos (Livro VI). lo de beleza e virtude, é largamente lembrado nas Metamorfoses: A precisão técnica com que Ovídio descreve o funcionamen- Baco-Dionísio. É de seu culto orgíaco que as devotas de Minerva (as filhas de Mínias) se recusam a participar, continuando a tecer to dos teares durante o desafio pode indicar-nos uma possível iden- e a cardar a lã nos dias das festas báquicas, aliviando a longa fadiga tificação do trabalho do poeta com a tecelagem de uma tapeçaria com os contos. Eis assim um outro uso da narrativa, que leiga- de púrpura multicolorida. Mas qual? A de Palas-Minerva, onde, ao mente se justifica com o divertimento puro (\"quod tempora lon- redor das grandes figuras olímpicas com seus tradicionais atribu- ga videri/ non sinat\") e com a contribuição à produtividade (\"uti- tos, são representadas, em cenas minúsculas nos quatro cantos da le opus manuum vario sermone levemus\"), mas que sempre condiz tela, emolduradas por ramos de oliveira, quatro punições divinas com Minerva, melior dea para aquelas moças laboriosas a quem a mortais que desafiaram os deuses? Ou então a de Aracne, em repugnavam as orgias e os desperdícios dos cultos de Dionísio, que as seduções insidiosas de Júpiter, Netuno e ApoIo, que Oví- que se expandiam pela Grécia depois de ter conquistado o Oriente. dio já havia narrado por extenso, ressurgem como emblemas sar- cásticos entre guirlandas de flores e festões de hera (não sem o Certamente a arte de narrar, apreciada pelas tecelãs, tem uma acréscimo de alguns detalhes preciOSOS:Europa que, transporta- conexão com o culto de Palas-Minerva. Já o verificamos com Arac· da através do mar na garupa do touro, ergue os pés para não se ne, que por ter desprezado a deusa é transformada em aranha; mas molhar: \" ...tactumque vere ri/ adsilientis aquae timidasque redu- podemos vê-Io também no caso oposto, num culto excessivo por cere plantas' ')? 35 34• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE. ..• Palas que leva a não reconhecer os outros deuses. Também as fi- des. Assim, continuamente se decantam nas Metamorfoses novas lhas de Mínias, de fato (Livro IV), culpadas enquanto muito seguras concreções de histórias como nas conchas das quais pode se ge- de sua virtude, demasiado exclusivas em sua devoção (intempes- rar a pérola: é o caso do humilde idílio de Filêmon e Báucis, que tiva Minerva), serão punidas de modo horrível, com a metamor- contém todo um mundo minucioso e um ritmo inteiramente di- fose em morcegos, pelo deus que não conhece o trabalho mas a verso. embriaguez, que não ouve os contos mas o canto arrebatado r e obscuro. Para não ser transformado também ele em morcego, Oví- Observe-se que Ovídio só se vale de tais complicações estru- dio se preocupa bastante em deixar todas as portas de seu poema turais ocasionalmente: a paixão que domina seu talento composi- abertas a deuses passados, presentes e futuros, locais e estrangei- tivo não é a sistematicidade mas a acumulação, que anda junto ros, ao Oriente, que para além da Grécia faz pressão sobre o mun- com as variações de perspectiva, as mudanças de ritmo. Por isso, do das fábulas, e à restauração augusta da romanidade, que pre- quando Mercúrio, para adormecer Argos, cujas cem pálpebras ja- me a atualidade político-intelectual. Mas não logrará convencer mais se abaixam todas juntas, começa a contar as metamorfoses o deus mais próximo e executivo, Augusto, que o transformará da ninfa Sírinx num tufo de caniços, sua narração é feita por ex- para sempre num exilado, num habitante da distância, ele que de- tenso e igualmente resumida numa única frase, pois a continua- sejava tornar tudo contemporâneo e próximo. ção do conto se torna implícita pelo emudecer do deus, tão logo vê que todos os olhos de Argos cederam ao sono. Do Oriente (\"de algum antepassado das Mil e uma noites\", diz Wilkinson) lhe vem a romântica novela de Píramo e Tisbe (que As Metamorfoses são o poema da rapidez, tudo deve seguir- uma das filhas de Mínias escolhe numa lista de outras com a mes- se em ritmo acelerado, impor-se à imaginação, cada imagem deve sobrepor-se a uma outra imagem, adquirir evidência, dissolver-se. ma origem misteriosa), com a parede que abre passagem às pala- É o princípio do cinematógrafo: cada verso como cada fotograma vras sussurradas mas não aos beijos, com a noite branca de lua deve ser pleno de estímulos visuais em movimento. O horror va- sob a branca amoreira, que mandará seus reflexos até o estimu- cui domina tanto o espaço quanto o tempo. Ao longo de páginas lante verão elisabetano. e mais páginas todos os verbos estão no presente, tudo acontece diante de nossos olhos, os fatos premem-se, toda distância é ne- Do Oriente, por meio do romance alexandrino, vem até Oví- gada. E, quando Ovídio sente a necessidade de mudar de ritmo, dio a técnica de multiplicação do espaço interior à obra mediante a primeira coisa que faz não é mudar o tempo dos verbos mas a os relatos encadeados uns nos outros, que aqui fazem aumentar pessoa, passar da terceira para a segunda, isto é, introduzir a per- a impressão de densidade, de aglomeração, de enredamento. Co- sonagem sobre a qual está para falar dirigindo-se a ela diretamen- mo a floresta em que uma caça ao javali envolve os destinos de te com o tu: \"Te quoque mutatum torvo, Neptune, iuvenco ... \". heróis ilustres (Livro VIII), não distante dos redemoinhos do Aque- O presente não se encontra só no tempo verbal mas é a própria lôo, que detêm os que retomam da caça. Estes são hospedados presença da personagem que é evocada. Mesmo quando os ver- na moradia do deus fluvial, que se apresenta como obstáculo e bos estão no passado, o vocativo provoca uma aproximação re- simultaneamente como refúgio, como pausa na ação, oportuni- pentina. Este procedimento é muitas vezes usado quando vários dade para narrar e refletir. Uma vez que entre os caçadores en- sujeitos executam ações paralelas, para evitar a monotonia na lis- contra-se Teseu, curioso em conhecer tudo aquilo que vê, e, além tagem. Se de fulano se falou na terceira pessoa, Tântalo e Sísifo dele, encontra-se também Pirítoo, descrente e insolente (\"deorum/ entram em ação por meio do tu e do vocativo. Também as plan- spretor erat mentisque ferox' '), o rio se sente encorajado a contar tas têm direito à segunda pessoa (\"Vos quoque, flexipedes hede- histórias maravilhosas de metamorfoses, imitado pelos hóspe- 37 36• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE... • rae, venistis ... \") e não há por que maravilhar-se, sobretudo quan- fas se divertem provocando a mesma transformação em outros do são as plantas que se movem como pessoas e acorrem ao S0ill pequenos ramos: assim nasce o coral que, mole sob a água, se pe- da cítara do viúvo Orfeu, agrupando-se num denso viveirc ie flo- trifica ao contato com o ar; assim Ovídio conclui a aventura fabu- ra mediterrânea (Livro IX). lar com chave de lenda etiológica, em seu gosto pelas formas bi- zarras da natureza. Existem também os momentos - e esse de que agora fala- mos é um deles - em que o relato deve ser menos célere, passar Uma lei de máxima economia interna domina esse poema apa- para um andamento mais calmo, fazer do transcorrer do tempo rentemente voltado para o dispêndio desenfreado. É a economia algo suspenso, uma distância velada. Nesses casos, o que faz Oví- própria das metamorfoses, que pretende que as novas formas re- dio? Convém esclarecer que a narração não tem pressa, detém-se cuperem tanto quanto possível os materiais das velhas. Após o di- para fixar os menores detalhes. Por exemplo, Filêmon e Báucis lúvio, no transformar das pedras em seres humanos (Livro I) \"se acolhem em sua humilde casa os visitantes desconhecidos, os deu- havia nelas uma parte úmida de algum suco ou terrosa, ela passou ses. \" ...Mensae sed erat pes tertius impar:! testa parem fecit; quae a funcionar como corpo; aquilo que era sólido, impossível de ser postquam subdita clivum/ sustulit, aequatam mentae tersere viren- dobrado, mudou-se em ossos; aquelas que eram veias, permane- tes ...\" ceram, com o mesmo nome\". Aqui a economia se estende ao no- me: \"quae modo vena fuit, sub eodem nomine mansit\". Dafne Masuma das três pernas da mesa é muito curta. Um pedaço de cerâ- (Livro I), que chama mais a atenção pelos cabelos desgrenhados mica serve para equilibrá-Ia;colocado embaixo elimina a pendência (tanto que o primeiro pensamento de Febo ao vê-Ia é: \"Imagine e o plano depois é limpo com folhas de hortelã verde. E por cima se os penteasse!\" \"Spectat inornatos collo pendere capillos/ et se dispõem azeitonas de duas cores, consagradas à singela Minerva, 'Quid, si comantur?' ait ... \", já está predisposta nas linhas flexíveis frutos de corniso outonal imersos em molho, chicória, rabanetes, de sua fuga na metamorfose vegetal: \" .. .in frondem crines, in ra- uma fôrma de leite coalhado e ovos delicadamente envoltos em cin- mos bracchia crescunt;/ pes modo tam velox pigris radicibus hae- zas não muito quentes: tudo com louça de terracota ... [LivroVIII] ret ... \". Ciane (Livro v) só faz levar ao extremo a consumação em lágrimas (\"lacrimisque absumitur omnis\") até dissolver-se no pe- Continuando a enriquecer o quadro é que Ovídio atinge um queno lago do qual era a ninfa. E os camponeses da Licia (Livro resultado de rarefação e pausa. Porque o gesto de Ovídio é sem- VI), que à errante Latona que deseja acalmar a sede de seus recém- pre o de acrescentar, sem jamais subtrair; o de descrever cada vez nascidos vociferam injúrias e turvam o lago mexendo na lama, já mais os detalhes, sem se perder no evanescente. Procedimento não eram muito diferentes das rãs em que se convertem por justo que gera efeitos diversos conforme a entoação, aqui submissa às castigo: basta que desapareça o pescoço, as costas se colem na ca- coisas miúdas e solidária com elas, mais adiante excitada e impa- beça, o dorso se torne verde e o ventre esbranquiçado. ciente por saturar o maravilhoso da fábula com a observação ob- jetiva dos fenômenos da realidade natural. Como no momento em Essa técnica da metamorfose foi estudada por Sceglov num que Perseu luta contra o monstro marinho de dorso incrustado ensaio muito claro e persuasivo. Diz ele: de conchas e pousa a cabeça hirta de serpentes da Medusa, rosto para baixo sobre um escolho, depois de ter estendido ali - para Todas essas transformações concernem justamente aos fatos distin- que não fosse molestada pelo contato da areia áspera - uma ca- tivos físico-espaciaisque Ovídio costuma isolar nos objetos também mada de algas e de ramos nascidos debaixo d'água. Ao ver as fron- fora da metamorfose (\"pedra dura\", \"corpo longo\", \"espinha en- des se transformarem em pedra ao contato com a Medusa, as nin- curvada\") ... Graças ao seu conhecimento das propriedades das coi- 38 39• POR QUE LER OS CLÁSSICOS OVÍDIO E A CONTIGÜIDADE ...• sas, O poeta faz com que a transformação percorra a via mais breve, cusa e foge, o motivo da perseguição nos bosques é recorrente; pois sabe antecipadamente o que o homem tem em comum com a metamorfose pode acontecer em momentos diversos, como dis- o delfim, o que lhe falta ou o que tem a mais em relação a ele. O farce do sedutor ou como salvação da vítima do assédio ou puni- fato essencial é que, graças à representação do mundo inteiro como ção da seduzida por parte de outra divindade enciumada. um sistema de propriedades elementares, o processo da transforma- ção - este fenômeno inverossímil e fantástico - se reduz a uma Comparados à pressão contínua dos desejos masculinos, os sucessão de processos bastante simples. O evento não é mais apre- casos de iniciativa amorosa feminina são mais raros; mas em com- sentado como uma fábula mas como uma soma de fatos habituais pensação se trata de amores mais complexos, não de caprichos e verossímeis (crescimento, diminuição, endurecimento, amoleci- extemporâneos mas de paixões, que comportam uma riqueza psi- mento, curvatura, retificação, conjunção, rarefação etc.). cológica maior (Vênus apaixonada por Adônis), implicam freqüen- temente um componente erótico mais suave (a ninfa Sálmacis que, A escritura de Ovídio, como Sceglov a define, conteria em no abraço com Hermafrodito, se funde numa criatura bissexual), si o modelo ou pelo menos o programa do Robbe-Grillet mais ri- e em alguns casos se trata de paixões ilícitas, incestuosas (como goroso e frio. É claro que uma tal definição não esgota o que po- as trágicas personagens de Mirra, de Bíblis; o modo como se reve- demos buscar em Ovídio. Mas o importante é que este modo de la a esta última a paixão pelo irmão, o sonho, as perturbações, é designar objetivamente os objetos (animados e inanimados) \"como uma das mais belas páginas de Ovídio psicólogo), ou homosse- diferentes combinações de um número relativamente pequeno de xuais (como Ífis), ou de ciúme desenfreado (como Medéia). As his- elementos fundamentais, simplicíssimos\" corresponde à única fi- tórias de ]asão e Medéia abrem no coração do poema (Livro VII) losofia segura das Metamorfoses: \"aquela da unidade e parentes- o espaço de um verdadeiro romance, em que se entrelaçam aven- co de tudo aquilo que existe no mundo, coisas e seres vivos\". tura e abismo passional e o grotesco \"negro\" da receita dos fil- tros enfeitiçados, que passará tal e qual para o Macbeth. Com o relato cosmogônico do Livro I e a profissão de fé de A transcorrência sem intervalos de uma história a outra é su- Pitágoras do último, Ovídio quis dar uma sistematização teórica a essa filosofia natural, talvez em sintonia com o bem distante Lu- blinhada pelo fato de que, como observa Wilkinson, crécio. Sobre o valor a ser atribuído a tais enunciações discutiu-se muito, mas talvez a única coisa que conte para nós seja a coerên- o final de uma história raramente coincide com o fim dos livros em cia poética no modo que Ovídio tem de representar e narrar o que se acha dividido o poema. Ovídio pode começar uma história seu mundo: esta efervescência e acúmulo de histórias tantas ve- nova quando lhe faltam poucos versos para o final do livro, e este é em parte o velho expediente do romancista de folhetim que agu- zes similares e sempre diferentes, em que se celebra a continuida- ça o apetite do leitor para o próximo capítulo, mas é também um de e a mobilidade do conjunto. sinal da continuidade da obra, que não teria sido dividida em livros se, devido ao tamanho, não tivesse necessitado de um certo núme- Nem bem terminou o capítulo das origens do mundo e das ro de rolos. Assimnos é transmitida a impressão de um mundo real catástrofes primordiais e já Ovídio começa a série dos amores dos e coerente em que se verifica uma interação entre eventos que, em deuses pelas ninfas ou pelas moças mortais. As histórias de amor geral, são considerados isoladamente. (que ocupam predominantemente a parte mais viva do poema, os primeiros onze livros) apresentam várias constantes: conforme As histórias podem ter semelhanças, mas jamais se repetem. mostra mais adiante Bernardini, trata-se de amores à primeira vis- Não é casual que a história mais tenebrosa (Livro m) seja a do in- ta, um apelo incitante, sem complicações psicológicas, que exige feliz amor da ninfa Eco, condenada à repetição dos sons, pelo jo- uma satisfação imediata. E, como a criatura desejada em geral re- 41 40• POR QUE LER OS CLÁSSICOS o CÉu, O HOMEM, O ELEFANTE vem Narciso, condenado à contemplação da própria imagem re- Para o prazer da leitura, na História natural de Plínio, o Ve- petida no espelho líquido. Ovídio atravessa correndo esta flores- ta de histórias amorosas todas parecidas e todas diferentes, perse- lho, aconselharia concentrar-se sobretudo em três livros: os dois guido pela voz de Eco que repercute entre as rochas: \"Coeamus!\" \"Coeamus!\" \"Coeamus!\" [Unamo-nos!]. que contêm os elementos de sua filosofia, isto é, o II (sobre a cos- 1979 mografia) e o VII (sobre o homem), e, como exemplo de suas an- danças entre erudição e fantasia, o VIII (sobre animais terrestres). 42 Naturalmente podem ser descobertas páginas extraordinárias por todos os lados: nos livros de geografia (rII-VI), de zoologia aquáti- ca, entomologia e anatomia comparada (IX-XI), de botânica, agro- nomia e farmacologia (XII-XX-XII), ou sobre os metais, as pedras pre- ciosas e as belas-artes (XXXIII-XXXVII). O uso que sempre se fez de Plínio, penso eu, foi o de consul- ta, tanto para saber o que os antigos conheciam ou acreditavam conhecer sobre determinado argumento quanto para compilar curiosidades e disparates. (Sob este último aspecto, não se pode negligenciar o Livro I, ou seja, o sumário da obra, cujas sugestões vêm de aproximações imprevistas: \"Peixes que têm uma pedri- nha na cabeça; peixes que se escondem no inverno; peixes que sentem a influência dos astros; preços extraordinários pagos por certos peixes\", ou então: \"A propósito da rosa: doze variedades, 32 remédios; três variedades de lírios: 21 remédios; Planta que nas- ce de uma lágrima; três variedades de narcisos; dezesseis remé- dios; Planta cuja semente é pintada para que nasçam flores co- 43• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O CÉU, O HOMEM, O ELEFANTE • loridas; O açafrão: vinte remédios; Onde dá as melhores flores; mo tempo de estrelas eternas como ele (as estrelas tecem o céu Que flores eram conhecidas no tempo da Guerra de Tróia; Rou- e simultaneamente acham-se inseridas no tecido celeste: \"aeterna pas que rivalizam com as flores\", ou ainda: \"Natureza dos metais; Do ouro; Da quantidade de ouro possuída pelos antigos; Da or- caelestibus est natura intexentibus mundum intextuque concre- dem eqüestre e do direito de usar anéis de ouro; Quantas vezes tis\", lI, 30), mas é também o ar (acima e abaixo da Lua) que pare- a ordem eqüestre mudou de nome?\".) Mas Plínio é também um ce vazio e difunde aqui embaixo o espírito vital e produz nuvens, autor que merece uma leitura ampla, no movimento calmo de sua granizo, trovões, raios, tempestades (lI, 102). prosa, animada pela admiração por tudo aquilo que existe e pelo respeito à infinita diversidade dos fenômenos. Quando falamos de Plínio, não sabemos nunca até que pon- to podemos atribuir a ele as idéias que exprime; de fato, ele faz Poderíamos distinguir um Plínio poeta e filósofo, com um sen- questão de colocar o menos possível de seu, limitando-se ao que timento seu do universo, um pathos próprio do conhecimento transmitem as fontes; e isso segundo uma idéia impessoal do sa- e do mistério, e um Plínio neurótico colecionador de dados, com- ber, que exclui a originalidade individual. Para tentar compreen- pilador obsessivo, que parece preocupado somente em não desper- der qual é realmente o seu sentido da natureza, que lugar ocupam diçar nenhuma anotação de seu fichário mastodôntico. (Na utiliza- nele a arcana majestade dos princípios e a materialidade dos ele- ção das fontes escritas era onívoro e eclético, mas não acrítico: mentos, devemos ate r-nos àquilo que é certamente seu, isto é, a existia o dado que considerava bom, outro que registrava enquanto substância expressiva da prosa. Observem-se, por exemplo, as pá- inventário e outros que refutava como evidente embuste: só que ginas sobre a Lua, onde o acento de comovida gratidão a este \"as- o critério de suas avaliações parece bastante oscilante e imprevi- tro último, o mais familiar para todos os que vivem sobre a Terra, sível.) Porém, uma vez admitida a existência destas duas faces, é remédio para as trevas\" (\"novissimum sidus, terris familiarissimum preciso reconhecer de imediato que Plínio é sempre uno, assim et in tenebrarum remedium ... \", lI, 41), e por tudo aquilo que ele como uno é o mundo que ele quer descrever na variedade de suas nos ensina com o movimento de suas fases e eclipses se une à fun- formas. Para atingir seu objetivo, não receia dar fundamento ao cionalidade ágil das frases para reproduzir esse mecanismo com número interminável das formas existentes, multiplicado pelo nú- mero interminável de informações existentes sobre todas estas for- nitidez cristalina. É nas páginas astronômicas do Livro II que Plí- mas, porque formas e informações têm para ele o mesmo direito de fazer parte da história natural e de ser interrogadas por quem nio demonstra poder ser algo mais que o compilador de gosto ima- busca nelas aquele signo de uma razão superior que está conven- ginativo que em geral se acredita, revelando-se um escritor que cido de que elas devam encerrar. possui aquilo que será a qualidade principal da grande prosa cien- tífica: transcrever com nítida evidência o raciocínio mais comple- O mundo é o céu eterno e não criado, cuja abóbada esférica xo, extraindo dele um sentido de harmonia e beleza. e giratória cobre todas as coisas terrenas (lI, 2), mas o mundo dificilmente pode distinguir-se de Deus que, para Plínio e para a E isso sem se inclinar jamais para a especulação abstrata. Plí- cultura estóica a que ele pertence, é um Deus único, não identifi- nio se atém sempre aos fatos (àqueles que ele considera fatos ou cável com algumas de suas porções ou aspectos, nem com a mul- que alguém julgou como tais): não aceita a infinidade dos mun- tidão de personagens do Olimpo (mas talvez sim com o Sol, alma dos porque a natureza já é bastante difícil de ser conhecida e a ou mente ou espírito do céu, lI, 13). Porém, o céu é feito ao mes- infinidade não simplificaria o problema (lI, 4); não acredita no som das esferas celestes, nem como fragor além do audível nem como 44 indizível harmonia, pois \"para nós, que estamos dentro dele, o mundo desliza noite e dia em silêncio\" (lI, 6). 45• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O CÉU, O HOMEM, O ELEFANTE • Depois de ter despido Deus das características antropomórfi- de vales que reproduzem os sopros de vento como sons de eco, cas que a mitologia atribui aos imortais do Olimpo, por força da uma gruta na Dalmácia onde basta lançar qualquer coisa, mesmo lógica Plínio tem de reaproximar Deus dos homens por causa dos leve, para desencadear uma tempestade marinha, uma rocha na limites impostos pela necessidade aos seus poderes (ao contrário, Cirenaica onde basta tocar com uma das mãos para provocar um num caso Deus é menos livre que os homens porque não poderia turbilhão de areia. Desses catálogos de fatos estranhos, não liga- matar-se nem que pretendesse): Deus não pode ressuscitar os de- dos entre si, Plínio nos oferece muitíssimos: aqueles sobre os efei- funtos nem fazer de modo que quem viveu não tenha vivido; não tos do raio sobre o homem, com seus estragos frios (dentre as plan- tem nenhum poder sobre o passado, sobre a irreversibilidade do tas o raio safa apenas o louro e dentre as aves, a águia, lI, 146), tempo (lI, 27). Como o Deus de Kant, não pode entrar em confli- aqueles sobre as chuvas extraordinárias (de leite, de sangue, de to com a autonomia da razão (não pode evitar que dez mais dez carne, de ferro ou esponjas de ferro, de lã, de tijolos cozidos, lI, somem vinte), mas defini-Io nestes termos nos afastaria do ima- 147). nentismo pânico de sua identificação com a força da natureza (\"per quae declaratur haut dubie naturae potentia idque esse quod deum Contudo, Plínio limpa o terreno sobre tantas histórias, como vocemus\", lI, 27). os presságios dos cometas (por exemplo, ele refuta a crença de que um cometa que surja entre as partes pudendas de uma cons- Os tons líricos ou lírico-filosóficos que dominam os primei- telação - o que os antigos não viam no céu! - anuncie uma época de relaxamento dos costumes: \"obscenis autem moribus in ve- ros capítulos do Livro II correspondem a uma visão de harmonia rendis partibus signorum\", lI, 93), mas todo prodígio se lhe apre- senta como um problema da natureza, enquanto é a outra face da universal que não tarda a romper-se; parte considerável do livro norma. Plínio se defende das superstições, mas nem sempre sabe é dedicada aos prodígios celestes. A ciência de Plínio oscila entre reconhecê-Ias, e isso é bem mais verdadeiro no Livro VII, onde a intenção de reconhecer uma ordem na natureza e o registro do fala da natureza humana: mesmo sobre fatos facilmente observá- extraordinário e do único: e o segundo aspecto acaba sempre ven- veis transcreve crenças das mais estapafúrdias. Típico é o capítu- cendo. A natureza é eterna, sagrada e harmoniosa, mas deixa uma lo sobre as menstruações (VII, 63-6), mas é preciso observar que larga margem ao aparecimento de fenômenos prodigiosos inex- as informações de Plínio situam-se no campo dos mais antigos ta- plicáveis. Que conclusão geral podemos extrair disso? Que se tra- bus religiosos concernentes ao sangue menstrual. Existe uma re- ta de uma ordem monstruosa, feita só de exceções à regra? Ou de de analogias e de valores tradicionais que não entra em choque que se trata de regras tão complexas que escapam ao nosso en- com a racionalidade de Plínio; como se esta também se enraizasse tendimento? Em ambos os casos, para cada fato deve existir uma no mesmo terreno. Assim, às vezes, ele se inclina a construir ex- explicação, mesmo que ainda seja desconhecida para nós: \"São plicações analógicas de tipo poético ou psicológico: \"Os cadáve- coisas de explicação incerta e oculta na majestade da natureza\" res dos homens flutuam de costas e os das mulheres de bruços, (lI, 101), e pouco mais adiante: \"Adeo causa non deest\" (lI, 115), como se a natureza quisesse respeitar o pudor das mulheres mor- não são as causas que faltam, uma causa pode sempre ser encon- tas\" (VII, 77). trada. O racionalismo de Plínio exalta a lógica das causas e dos efeitos, mas ao mesmo tempo a minimiza: quando também você Raramente Plínio registra fatos que sejam testemunhos de sua encontra a explicação dos fatos, nem por isso os fatos deixam de própria experiência direta: \"de noite, durante os turnos das senti- ser maravilhosos. nelas em frente às trincheiras, vi luzes brilhando em forma de es- trela sobre as lanças dos soldados\" (lI, 101); \"durante o principa- A máxima que citei por último conclui um capítulo sobre a origem misteriosa dos ventos; dobras de montanhas, cavidades 47 46• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O CÉU, O HOMEM, O ELEFANTE. do de Cláudio, vimos um centauro que ele trouxe do Egito, con- (chamados de filósofos gimnosofistas), ou que continuam a alimen- servado no mel\" (VII, 35); \"eu mesmo vi na África um cidadão de tar as crônicas misteriosas que lemos em nossos jornais (onde se Tisdro, transformado de mulher em homem no dia do casamen- fala de pés imensos, poderia tratar-se do yeti do Himalaia), ou len- das cuja tradição prolongar-se-á pelos séculos afora, como a dos to\" (VII, 36). poderes taumatúrgicos dos reis (o rei Pirro, que curava as doen- ças do baço com o toque do dedão). Mas para um pesquisador como ele, protomártir da ciência experimental, que devia morrer asfixiado pelas exalações do Ve- De tudo isso emerge uma idéia dramática da natureza huma- súvio em erupção, as observações diretas ocupam um espaço mí- na, como algo precário, inseguro: a forma e o destino do homem nimo em sua obra e não contam nem mais nem menos do que acham-se suspensos por um fio. Muitas páginas são dedicadas à as informações lidas nos livros, tendo maior autoridade quanto imprevisibilidade do parto, com os casos excepcionais, as dificul- mais antigas forem. No máximo, se resguarda, declarando: \"De dades e os perigos. Também esta é uma zona de fronteira: quem qualquer modo, quanto à maioria desses fatos, não compromete- existe poderia não existir ou ser diferente, e tudo é decidido aí ria minha palavra, prefiro dirigir-me às fontes, às quais remeto em mesmo. todos os casos dúbios, sem me cansar de acompanhar os gregos, que são os mais exatos na observação e igualmente os mais anti- Nas mulheres grávidas, qualquer coisa, por exemplo, o modo de ca- gos\" (VII, 8). minhar, influi no parto: se ingerem alimentos muito salgados, põem no mundo uma criança sem unhas; se não sabem prender a respira- Depois deste preâmbulo, Plínio se sente autorizado a lançar- ção, têm mais dificuldades para dar à luz; até um bocejo, durante se em sua famosa resenha das características \"prodigiosas e incrí- o parto, pode ser letal; bem como um espirro durante o coito pode veis\" de certos povos do além-mar, que terá tanto sucesso na Ida- provocar o aborto. Compaixão e vergonha dominam quem pensa de Média e também mais tarde, e transformará a geografia num no quanto é precária a origem do mais soberbo dos seres vivos: fre- circo de fenômenos vivos. (Os ecos serão prolongados também qüentemente, para abortar basta o cheiro de uma lâmpada que se nos relatos das viagens verdadeiras, como as de Marco Pala.) Que apagou. E dizer que de um início tão frágil pode nascer um tirano os territórios desconhecidos na fronteira da Terra alojem seres na ou um carrasco! Você que confia em sua força física, que aperta nos fronteira do humano não deve causar espanto: os arimaspos com braços os dons da fortuna e se considera não um pupilo mas um um olho só no meio da testa, que disputam as minas de ouro com filho dela, você que possui ânimo dominador, você a quem apenas os grifas; os habitantes das florestas de Abarimon, que correm ve- um êxito faz inchar o peito e já se acredita deus, imagine que tão lozmente com os pés virados ao contrário; os andróginos de Na- pouco poderia destruí-Io. [VII, 42-4] samona, que alternam os sexos quando se acasalam; os tibios, que num olho têm duas pupilas e no outro, a figura de um cavalo. Mas Que Plínio tenha tido sucesso na Idade Média cristã se com- o grande Barnum apresenta seus números mais espetaculares na preende: \"para pesar a vida numa balança justa, convém lembrar Índia, onde pode ser encontrada uma população de caçadores com sempre a fragilidade humana\". cabeça de cachorro; e uma outra de saltadores com uma perna só, que, para descansar na sombra, se deitam erguendo o único O gênero humano é um território dos seres vivos que deve pé como um chapéu de praia; e outra ainda de nômades com per- ser definido pela circunscrição das áreas fronteiriças: por isso, Plí- nas em forma de serpente; e os astomos sem boca, que vivem chei- nio anota os limites extremos alcançados pelo homem em todos rando perfumes. No meio de tudo isso, informações que agora sa- os campos e o Livro VII se torna algo não muito diferente daqui- bemos serem verídicas, como a descrição dos faquires indianos lo que é hoje o Guinness book of records. Sobretudo primazias quantitativas: de força no levantamento de pesos, de velocidade 48 49• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O CÉu, O HOMEM, O ELEFANTE • na corrida, de acuidade auditiva bem como de memória, e tam- nio partilha a opinião de que após a morte se inicie uma não- bém de extensão de territórios conquistados; e inclusive prima- existência equivalente e simétrica àquela que precede o nasci- dos puramente morais, de virtudes, de generosidade, de bonda- mento. de. Não faltam os recordes mais curiosos: Antônia, mulher de Dru- so, que jamais cuspia, o poeta Pompônio que nunca arrotava (VII, É por isso que a atenção de Plínio se projeta sobre as coisas 80); ou então o preço mais alto pago por um escravo (o gramático do mundo, corpos celestes e territórios do globo, animais, plan- Dafni custou 700 mil sestércios, VII, 128). tas e pedras. A alma, à qual toda sobrevivência é negada, se se do- bra sobre si mesma, só pode fruir a existência no presente. \"Ete- Só de um aspecto da vida humana Plínio não se sente em con- nim si dulce vivere est, cui potest esse vixisse? At quanto facilius dições de indicar primazias ou tentar mensurações e confrontos: certiusque sibi quem que credere, specimen securitas antegenitali a felicidade. Quem é ou não feliz está fora de julgamento, dado sumere experimento!\" (VII, 190). \"Modelar a própria tranqüilida- que depende de critérios subjetivos e opinativos. (\"Felicitas cui de sobre a experiência anterior ao nascimento\": ou seja, projetar- praecipua fuerit homini, non est humani iudicii, cum prosperita- se na própria essência, única realidade segura antes de virmos ao tem ipsam alius alio modo et suopte ingenio quis que determinet\", mundo e depois da qual estaremos mortos. Eis então a felicidade VII, 130.) Caso se pretenda olhar de frente a verdade sem ilusões, de reconhecer a infinita variedade do outro em nós próprios que nenhum homem pode ser considerado feliz: e aqui a casuística a Naturalís historia projeta diante de nossos olhos. antropológica de Plínio alinha exemplos de destinos ilustres (ex- traídos sobretudo da história romana), para demonstrar como os Se o homem é definido por seus limites, não poderia sê-Io homens mais favorecidos pela sorte foram obrigados a suportar também pelas magnitudes em que pode se superar? Plínio se sen- a infelicidade e a desventura. te na obrigação de incluir no Livro VII a glorificação das virtudes do homem, a celebração de seus triunfos: dirige-se à história ro- Na história natural do homem é impossível fazer entrar aque- mana como ao protocolo de todas as virtudes e é tentado a en- la variável que é o destino: este é o sentido das páginas que Plínio contrar uma conclusão pomposa dando muito espaço à literatura dedica às vicissitudes da fortuna, à imprevisibilidade da duração de louvação imperial que lhe permitiria assinalar a culminância da de cada vida, à inutilidade da astrologia, às doenças, à morte. A perfeição humana na figura de César Augusto. Mas eu diria que separação entre as duas formas de saber que a astrologia manti- não são estas as tônicas que caracterizam seu tratado: é a atitude nha unidas - a objetividade dos fenômenos calculáveis e previsí- titubeante, limitativa e amarga aquilo que mais se ajusta ao seu tem- veis, e o sentimento da existência individual com futuro incer- peramento. to -, esta separação que serve de pressuposto à ciência moderna, podemos dizer que já se apresenta nessas páginas mas como uma Poderíamos reconhecer aqui interrogações que acompanha- questão ainda não decidida definitivamente, em favor da qual ainda ram a constituição da antropologia como ciência. Uma antropo- é necessário reunir uma documentação exaustiva. Ao propor tais logia precisa evitar uma perspectiva \"humanista\" para alcançar a exemplos, Plínio parece um tanto atrapalhado: todo fato aconte- objetividade de uma ciência da natureza? Os homens do Livro VII cido, toda biografia, toda anedota podem servir para provar que contam quanto mais forem \"outros\", diferentes de nós, talvez não a vida, se considerada do ponto de vista de quem a vive, não su- mais ou ainda não homens? Mas será possível que o homem escape porta quantificações nem qualificações, não permite ser mensu- da própria subjetividade a ponto de considerar a si mesmo como rada ou comparada a outras vidas. Seu valor é intrínseco; tanto objeto de ciência? A moral que Plínio reforça convida à cautela mais que as esperanças e os medos de um além são ilusórios: Plí- e à reserva: nenhuma ciência pode iluminar-nos sobre afelícitas, sobre a fortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os 50 51• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O CÉu, O HOMEM, O ELEFANTE • valores da existência; todo indivíduo morre e carrega com ele o de importância que muitas vezes coincide com a ordem de gran- seu segredo. deza física); mas também e sobretudo porque, espiritualmente, é esse o animal \"mais próximo do homem\"! \"Maximum est elephas Com esta nota desconsolada Plínio poderia concluir seu tra- proximumque humanis sensibus\", assim começa o Livro VIII. De tado, mas prefere acrescentar uma lista de invenções e descober- fato, o elefante -logo depois é explicado - reconhece a lingua- tas, lendárias e históricas. Antecipando os antropólogos moder- gem da pátria, obedece aos mandamentos, conhece a paixão amo- nos que afirmam uma continuidade entre a evolução biológica e rosa e a ambição da glória, pratica virtudes \"raras inclusive entre a tecnológica, dos utensílios paleolíticos à eletrônica, Plínio ad- os homens\" como a probidade, a prudência, a eqüidade, e tribu- mite implicitamente que as contribuições do homem à natureza ta uma veneração religiosa às estrelas, ao Sol e à Lua. Plínio não passam também elas a fazer parte da natureza humana. Daí até es- gasta nem uma palavra (exceto aquele superlativo maximum) pa- tabelecer que a verdadeira natureza do homem é a cultura só existe ra descrever esse animal (aliás representado com fidelidade nos umpasso. Mas Plínio, que não conhece as generalizações, procu- mosaicos romanos da época), mas transcreve apenas as curiosida- ra o específico humano em invenções e costumes que possam ser des lendárias que encontrou nos livros: os ritos e os costumes da considerados universais. São três, segundo Plínio (ou conforme sociedade elefantina são apresentados com os de uma população suas fontes), os fatos culturais sobre os quais se estabeleceu um de cultura diferente da nossa mas digna de respeito e compreensão. acordo tácito entre os povos (\"gentium consensus tacitus\", VII, 210): a adoção do alfabeto (grego e latino); a raspagem do rosto Na Naturalis histaria, o homem, desgarrado em meio ao masculino pelo barbeiro; e o registro das horas do dia no relógio mundo multiforme, prisioneiro da própria imperfeição, tem por solar. um lado o consolo de saber que também Deus é limitado em seus poderes (\"Inperfectae vero in homine naturae praecipua solacia, A tríade não poderia ser mais bizarra, pela aproximação in- ne deum quidem posse omnia\", lI, 27) e, por outro, tem como congruente dos três termos: alfabeto, barbeiro, relógio, nem mais seu próximo imediato o elefante, que pode lhe servir de modelo discutível. De fato, não é verdade que todos os povos tenham sis- no plano espiritual. Contraído entre essas duas grandezas impo- temas de escritura afins, nem é verdade que todos cortem a bar- nentes e benignas, o homem certamente parece diminuído, mas ba, e, quanto às horas do dia, o próprio Plínio se ocupa em traçar não esmagado. uma breve história dos vários sistemas de subdivisão do tempo. Mas aqui não queremos sublinhar a perspectiva \"eurocêntrica\" Dos elefantes, a resenha dos animais terrestres passa - co- que não é privativa de Plínio nem de sua época, e sim a direção mo numa visita infantil ao zoológico - para os leões, as panteras, em que ele se move: a intenção de fixar os elementos que se repe- os tigres, os camelos, as girafas, os rinocerontes, os crocodilos. tem constantemente nas culturas mais diversas para definir aquilo Seguindo uma ordem decrescente de dimensões, passa-se para as que é especificamente humano tornar-se-á um princípio de méto- hienas, os camaleões, os porcos-espinhos, os animais que se en- do da etnologia moderna. E, fixado este ponto do \"gentium con- tocam, e também para as lesmas e lagartixas; os animais domésti- sensus tacitus\", Plínio pode encerrar seu tratado do gênero hu- cos são reunidos no final do livro. mano e passar \"ad reliqua animalia\", aos demais seres animados. A fonte principal é a Ristaria animalium de Aristóteles, mas O Livro VIII, que passa em revista os animais terrestres, co- Plínio recupera de autores mais crédulos ou mais fantasiosos as meça pelo elefante, ao qual é dedicado o capítulo mais longo. Por lendas que o estagirita descartava ou transcrevia somente para re- que tal prioridade para o elefante? Porque é o maior dos animais, futar. Isso ocorre tanto para as informações sobre os animais bem certamente (e o tratado de Plínio procede segundo uma ordem conhecidos quanto para a menção e descrição de animais fantás- 52 53• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS SETE PRINCESAS DE NEZAMI ticos, cuja listagem se mistura à dos primeiros: assim, falando dos Pertencer a uma civilização poligâmica ao invés de mono- elefantes, uma digressão nos informa sobre os dragões, seus ini- gâmica certamente muda muitas coisas. Pelo menos na estrutura migos naturais; e, a propósito dos lobos, Plínio registra (embora narrativa (único terreno em que me sinto à vontade para opinar) recriminando a credulidade dos gregos) as lendas dos lobisomens. abrem-se muitas possibilidades que o Ocidente ignora. É dessa zoologia que fazem parte a cobra-de-duas-cabeças, o basi- lisco, O catóblepas, os corocotes, os leucócrotes, os lentofontes, Por exemplo, um motivo muito difundido nas fábulas ociden- os manticores, que destas páginas passarão a povoar os bestiários tais, o herói que vê um retrato de uma bela mulher e se apaixona medievais. instantaneamente, vamos reencontrá-Io também no Oriente, po- rém multiplicado. Num poema persa do século XII, o rei Bahram A história natural do homem se prolonga na dos animais ao vê sete retratos de sete princesas e se enamora de todas elas de longo de todo o Livro VIII, e isso não só porque as noções regis- uma vez só. Cada uma é filha de um soberano de um dos sete con- tradas concernem em grande parte à criação dos animais domés- tinentes; Bahram pede em casamento uma por uma e as desposa. ticos e à caça dos selvagens, bem como à utilidade prática que o Depois manda erguer sete pavilhões, em cores diferentes e \"cons- homem obtém de uns e outros, mas porque aquilo em que Plínio truídos segundo a índole dos sete planetas\". A cada uma das prin- nos guia é também uma viagem pela fantasia humana. O animal, cesas dos sete continentes corresponderá um pavilhão, uma cor, seja verdadeiro ou falso, tem um lugar privilegiado na dimensão um planeta e um dia da semana; o rei fará uma visita semanal a do imaginário: assim que é nomeado se investe de um poder fan- cada uma das mulheres e delas ouvirá um conto. As roupas do rei tasmagórico; torna-se alegoria, símbolo, emblema. serão da cor do planeta daquele dia e as histórias narradas pelas esposas serão igualmente combinadas segundo a cor e as virtudes Por isso, recomendo ao leitor errante deter-se não só nos li- do respectivo planeta. vros mais \"filosóficos\", II e VII, mas também no VIII, como o mais representativo de uma idéia da natureza que se encontra expressa Esses sete relatos são fábulas cheias de maravilhas do tipo Mil difusamente ao longo de todos os 37 livros da obra: a natureza e uma noites, mas cada uma tem uma finalidade ética (embora nem como aquilo que é externo ao homem mas que não se distingue sempre reconhecível sob o manto simbólico) pela qual o ciclo se- daquilo que é mais intrínseco à sua mente, o alfabeto dos sonhos, a chave que decifra a imaginação, sem a qual não se produz razão 55 nem pensamento. 1982 54• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS SErE PRINCESAS DE NEZAMI • manal do rei-marido é um reconhecimento das virtudes morais Assim, temos a sorte rara de agregar à nossa estante de obras- primas da literatura universal um livro altamente fruitivo e subs- como correspondência humana das propriedades do cosmos. (Po- tancioso. Digo sorte rara porque tal ocasião é um privilégio para ligamia carnal e espiritual do único macho-rei sobre as muitas nós, italianos, dentre todos os leitores ocidentais, se é verdade o esposas-servas; na tradição, o papel de cada sexo é irreversível e que diz a bibliografia do volume: que a única tradução inglesa com- nesse ponto não se pode esperar nenhuma surpresa.) Por sua vez, pleta, de 1924, é inadequada, a alemã, uma adaptação livre par- as sete narrativas compreendem aventuras amorosas que se apre- cial, e que não existe nenhuma francesa. (Contudo, na bibliogra- sentam de forma multiplicada em relação aos modelos ocidentais. fia não se diz, mas é justo que se lembre, essa mesma tradução de Bausani já fora publicada anos antes pelas edições Leonardo Por exemplo, o esquema típico da fábula de iniciação preten- da Vinci de Bari, embora oferecendo um conjunto de notas me- de que o herói supere várias provas para merecer a mão da donze- nos rico.) Ia amada e um trono real. No Ocidente, este esquema exige que as núpcias sejam reservadas para o final, ou então, se ocorrerem no Nezami (1141-1204), que nasceu e morreu em Ganjé (no Azer- decurso do relato, precedem novas vicissitudes, perseguições e en- baijão, que veio a integrar a URSS; tendo vivido, portanto, num cantamentos, em que a esposa (ou o marido) primeiro é perdida e território em que se enraízam as estirpes iraniana, curda e turca), depois reencontrada. Ao contrário, aqui lemos uma fábula em que um muçulmano sunita (naquela época, os xiitas ainda não tinham o herói, a cada prova que supera, ganha uma nova mulher mais bem assumido a liderança no Irã), conta nas Sete princesas (Haft pei- situada na escala social que a precedente; e estas esposas sucessi- kar, literalmente \"as sete efígies\", que se pode datar por volta de vas não se excluem reciprocamente, mas se somam como os tesou- 1200, um dos cinco poemas escritos por ele) a história de um so- ros de experiência e sabedoria acumulados durante a vida. berano do século v, Bahram v, da dinastia sassânida. Assim, Ne- zami rememora em chave de mística islâmica o passado da Pérsia Estou falando de um clássico da literatura persa medieval, ho- zoroastriana; o seu poema celebra tanto a vontade divina à qual je acessível num pequeno volume da BUR, publicado com zelo elo- o homem deve entregar-se inteiramente quanto as várias poten- giável: Nezami, Le sette principesse [As sete princesas], introdução cialidades do mundo terrestre, com ressonâncias pagãs e gnósti- e tradução de Alessandro Bausani, notas de A. Bausani e Giovanna Calasso, Rizzoli. Acercar-nos das obras-primas da literatura orien- cas (e também cristãs; igualmente é louvado o grande taumaturgo tal para nós, profanos, permanece na maioria dos casos uma expe- riência aproximativa, porque já é muito se, através das traduções Isu, ou seja, Jesus). e das adaptações, chega até nós um perfume distante, e resulta sem- Antes e depois das sete fábulas narradas nos sete pavilhões, pre uma tarefa árdua situar uma obra num contexto que não conhe- cemos; este poema em particular é certamente um texto bastante o poema ilustra a vida do príncipe, a educação, as caçadas (ao leão, complexo no que concerne ao corte estilístico e implicações espi- ao onagro, ao dragão), suas guerras contra os chineses do Grande rituais. Mas a tradução de Bausani (que parece aderir minuciosamen- Khan, a construção do castelo, as festas e bebedeiras, os amores te ao denso tecido das metáforas e não recua nem mesmo diante que incluíam as servas. Assim, o poema é antes de mais nada um dos jogos de palavras, indicando entre parênteses os vocábulos per- sas), as notas copiosas, a introdução (e também o essencial conjunto retrato do soberano ideal, em que se fundem, como diz Bausani, de ilustrações) nos dão, penso eu, algo mais que a ilusão de enten- a antiga tradição iraniana do \"rei sagrado\" e a islâmica do sultão der o que seja este livro e de saborear seus encantos poéticos, ao piedoso, submetido à lei divina. menos naquilo que uma tradução em prosa pode transmitir. Um soberano ideal- pensamos nós - deveria ter um reino 56 próspero e súditos felizes. Longe disso! Trata-se é de preconceito de nossa mentalidade terra-a-terra. Que um rei seja um prodígio de 57• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS SETE PRINCESAS DE NEZAMI • todas as perfeições não exclui que seu reino seja oprimido pelas talhão malévolo e mesquinho; a moral que podemos daí extrair injustiças mais cruéis, sob as garras de ministros pérfidos e ávi- é que, mais do que a posição filosófica, o que conta é o modo dos. Mas, dado que o rei desfruta das graças do céu, chegará o de vida em harmonia com a própria verdade). momento em que a triste realidade de seu reino se revelará peran- te seus olhos. Então ele punirá o vizir infame e dará satisfações De qualquer modo, separar as várias tradições que conver- a quem venha lhe contar as injustiças sofridas: eis assim as \"histó- gem nas Sete princesas é impossível porque a vertiginosa lingua- rias dos ofendidos\", também elas em número de sete, mas sem gem figurada de Nezami termina por absorvê-Ias em seu molho dúvida menos atraentes que as anteriores. e estende sobre cada página uma lâmina dourada esmaltada de me- táforas que se encastram umas nas outras como pedras preciosas Restabelecida a justiça no reino, Bahram pode reorganizar o de um colar deslumbrante. Razão pela qual a unidade estilística exército e derrotar o Grande Khan da China. Cumprido assim o do livro parece uniforme e se estende também pelas partes intro- seu destino, só lhe resta desaparecer: de fato, some literalmente dutórias sapienciais e místicas. (Dentre estas últimas, relembrarei numa caverna, onde entrara a cavalo perseguindo o onagro que a visão de Maomé que sobe ao céu montado num cavalo-arcanjo, estava caçando. Em suma, o rei é, diz Bausani, \"o Homem por até o ponto em que as três dimensões desaparecem e \"o profeta excelência\": aquilo que conta é a harmonia cósmica que nele se vislumbrou Deus sem espaço, ouviu palavras sem lábios e sem encarna, harmonia que em certa medida também se refletirá so- som\" .) bre o reino e os súditos mas que reside sobretudo em sua pessoa. (Ainda hoje, de resto, há regimes que pretendem ser louváveis em Os acabamentos dessa tapeçaria verbal são tão luxuriantes que si e por si, independentemente do fato de que as pessoas vivam os nossos paralelos com as literaturas ocidentais, para além das muitíssimo mal.) analogias, das temáticas medievais e, atravessando a plenitude fantástica do Renascimento de Ariosto e de Shakespeare, desem- Em resumo, As sete princesas funde em si mesmo dois tipos bocam naturalmente no barroco mais carregado; contudo, até o de conto \"maravilhoso\" oriental: o épico-celebrativo do Livro dos Adone de Marino e o Pentamerone de Basile parecem de uma so- reis de Firdusi (o poeta persa do século x ao qual se filia Nezami) briedade lacônica, comparados com a proliferação de metáforas e o novelístico que, das antigas coletâneas indianas, conduzirá às que recobre densamente a narrativa de Nezami, desenvolvendo Mil e uma noites. Certamente o nosso prazer de leitores é mais um broto de relato em cada imagem. gratificado por este segundo filão (sugerimos portanto começar pelas sete fábulas e depois remontar à moldura), mas inclusive a Esse universo metafórico tem características e constantes mui- moldura é rica em encantos fantásticos e refinamentos eróticos to peculiares. O onagro, burro selvagem do altiplano iraniano- (muito apreciadas, por exemplo, as carícias com os pés: \"O pé do que, visto nas enciclopédias e, se bem me lembro, nos zoológi- rei nas cadeiras daquela ladra de corações se insinuava entre a se- cos, tem todo o jeito de um modesto burrinho -, nos versos de da e o brocado\"), assim como nas fábulas o sentimento cósmico- Nezami se reveste da dignidade dos mais nobres animais heráldi- religioso toca extremidades muito elevadas (como na história da cos, e podemos dizer que aparece em cada página. Nas caçadas viagem realizada por um homem que se submete à vontade de do príncipe Bahram, os onagros constituem a presa mais ambi- Deus e um homem que deseja explicar racionalmente todos os cionada e difícil, freqüentemente citados ao lado dos leões como fenômenos: a caracterização psicológica dos dois é tão persuasiva adversários contra os quais o caçador mede sua força e destreza. que é impossível não torcer pelo primeiro, o qual não perde de E nas metáforas o onagro é imagem de força, inclusive de força vista a complexidade do todo, ao passo que o segundo é um esper- sexualviril, mas igualmente de presa amorosa (o burro presa do leão) e de beleza feminina e em geral de juventude. E, Como possui 58 59• POR QUE LER OS CLÁSSICOS AS SETE PRINCESAS DE NEZAMI • também uma carne deliciosa, eis que \"donzelas com olhos de ona- Um jovem que entre os vários motivos de perfeição tem o de ser gro assavam no forno coxas de onagro\". casto vê o seu jardim invadido por moças belíssimas que dançam. Duas delas, após tê-Ia fustigado pensando tratar-se de um ladrão Outro elemento de metáfora polivalente é o cipreste: evoca- (um certo prazer masoquista não está excluído), reconhecem-no do para indicar robustez viril e naturalmente também símbolo fá- como patrão, beijam-lhe mãos e pés e convidam-no a escolher a que mais lhe agrada. Ele observa as moças enquanto tomam ba- lico, vamos encontrá-lo como modelo de beleza feminina (a esta- nho, faz sua escolha e (sempre com a ajuda das duas guardiãs ou tura é sempre muito apreciada) e associado às melenas femininas, \"polícias femininas\" que ao longo do relato lhe orientarão os mo- mas também às águas que correm e ao sol matinal. Quase todas vimentos) se encontra sozinho com a favorita. Mas nesse e nos as funções metafóricas do cipreste valem também para o círio aceso encontros seguintes sempre sucede algo no momento culminan- e muitas outras mais. Em suma, o delírio das similitudes é tama- te impedindo a conjunção: desaba o pavimento do quarto, ou um nho que qualquer coisa pode significar tudo. gato a ponto de agarrar um passarinho desmorona em cima dos dois amantes abraçados, ou então um rato rói o talo de uma abó- Como trechos de mestria feitos de metáfora uma depois da bora numa pérgula e o baque da abóbora que cai quebra a inspi- outra fazem pensar numa descrição do inverno, em que a uma sé- ração amorosa do jovem. E assim por diante até a conclusão edifi- rie de imagens gélidas (\" o ímpeto do frio fizera espada da água cante: o jovem compreende que antes deve casar com a moça, e água da espada\"; a nota explica: as espadas dos raios solares pois Alá não quer que ele cometa um pecado. tornam-se chuva e a chuva se transforma em espadas de relâmpa- gos; mesmo que a explicação não seja verdadeira, constitui sempre O amplexo que sofre várias interrupções é um motivo difun- uma bela imagem) se sucede uma apoteose do fogo e uma simé- dido também no conto popular ocidental, mas sempre em chave trica descrição da primavera, inteiramente de animação vegetal, grotesca: num cunto de Basile, os imprevistos que se sucedem do tipo \"a brisa entregou-se como penhor ao manjericão\". assemelham-se muito aos de Nezami, mas daí surge um quadro infernal de miséria humana, sexofobia e escatologia. O de Neza- Catalisadoras de metáforas são também as cores, que domi- mi, ao contrário, é um mundo visionário de tensão e trepidação nam nas sete fábulas. Como se faz para narrar uma história só de erótica simultaneamente sublimado e rico em nuances psicológi- uma cor? O sistema mais simples é vestir as personagens com aque- cas, onde o sonho poligâmico de um paraíso de buris se alterna la cor, como na fábula negra em que se fala de uma senhora que com a realidade íntima de um casal, e a licenciosidade desenfreada se vestia sempre de negro porque fora criada de um rei que traja- da linguagem figurada introduz às perturbações da inexperiência va sempre negro porque encontrara um estrangeiro vestido de ne- juvenil. gro que lhe contara sobre uma região da China cheia de gente ves- tida de negro ... 1982 Mais adiante, a ligação é apenas simbólica, baseada nos signi- 61 ficados atribuídos a cada cor: o amarelo é a cor do sol e portanto do rei; assim o conto amarelo falará de um rei e culminará numa sedução, comparável ao arrombamento de um escrínio que en- cerrasse ouro. O conto branco é inesperadamente o mais erótico de todos, imerso numa luz láctea em que vemos mover-se \"donzelas com seios de jacinto e pernas de prata\". Mas é também o conto da cas- tidade, como tratarei de explicar, embora no resumo tudo se perca. 60TlRANT LO BLANC TIRANT LO BLANC • o herói do primeiro romance de cavalaria ibérico, Tirant Assim, é possível compreender como o último depositário das virtudes cavaleirescas, Dom Quixote, será alguém que construiu 10 Blanc, entra em cena dormitando em cima de seu cavalo. O ca- a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos valo se detém para beber numa fonte, Tirant acorda e vê, sentado livros. Uma vez que Cura, Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado ao lado da água, um eremita de barba branca que está lendo um fogo à biblioteca, a cavalaria terminou: Dom Quixote permane- livro. Tirant manifesta ao eremita sua intenção de entrar para a cerá como o último exemplar de uma espécie sem sucessores. ordem da cavalaria. O eremita, que fora cavaleiro, se oferece para instruir o jovem nas regras da ordem. No auto-de-fé doméstico, o Padre salva os livros arquetípi- cos, Amadís de Gaula e Tirante el Elanca, bem como os poemas - Hijo mío - dijo el ermitano -, em versos de Boiardo e de Ariosto (no original italiano, não em toda Ia orden está escrita en ese tradução, em que perdem \"su natural valor\"). Em relação a tais li- libro, que algunas veces leo para vros, à diferença de outros aceitos porque considerados conformes recordar Ia gracia que Nuestro Senor à moral (como Palmerín de Inglaterra), parece que a indulgência me ha hecho en este mundo, puesto tem sobretudo motivações estéticas; mas quais? Constatamos que que honraba y mantenía Ia orden de as qualidades que valem' para Cervantes (mas até que ponto esta- caballería con todo mi poder. mos seguros de que as opiniões de Cervantes coincidem com as Desde suas primeiras páginas, o primeiro romance de cavala- do Padre e do Barbeiro, mais do que com as de Dom Quixote?) ria da Espanha parece querer nos advertir de que todo livro de são a originalidade literária (Amadís é definido como \"único en cavalaria pressupõe um livro de cavalaria precedente, necessário su arte\") e a verdade humana (Tirante el Blanca é elogiado por- para que o herói se torne cavaleiro. \"Tot l'ordre és en ~ques lli- que \"aquí comen Ias caballeros, y duermen y mueren en sus ca- bre escrit.\" Deste postulado podem ser extraídas muitas conclu- mas, y hacen testamento antes de su muerte, con otras cosas de sões: inclusive a de que talvez a cavalaria não tenha nunca existi- que Ias demás libros de este género carecen\"). Portanto, Cervan- do antes dos livros de cavalaria ou até que só existiu nos livros. tes (aquela parte de Cervantes que se identifica etc.) respeita os livros de cavalaria quanto mais se afastem das regras do gênero; 62 não é mais o mito da cavalaria que conta, mas o valor do livro enquanto livro. Um critério de juízo oposto ao de Dom Quixote (e do lado de Cervantes que se identifica com seu herói), o qual se recusa a distinguir entre os livros e a vida e quer encontrar o mito fora dos livros. Qual será a sorte do mundo romanesco da cavalaria, quando o espírito analítico intervém para estabelecer os limites entre o reino do maravilhoso, o reino dos valores morais, o reino da rea- lidade verossímil? A catástrofe repentina e grandiosa em que o mito da cavalaria se dissolve pelas desoladas estradas da Mancha é um evento de dimensão universal mas que não tem correspondência ( nas outras literaturas. Na Itália, e mais precisamente nas cortes da Itália setentrional, o mesmo processo ocorrera durante o século 63• POR QUE LER OS CLÁSSICOS TIRANT LO BLANC • precedente de forma menos dramática, como sublimação literá- A função do lendário Turpin, Cervantes irá atribuí-Ia a um mis- ria da tradição. O declínio da cavalaria fora celebrado por Pulei, terioso Cide Hamete Benengeli de cujo manuscrito árabe ele seria Boiardo, Ariosto num clima de festa renascentista, com matizes apenas o tradutor. Mas Cervantes age agora num mundo radical- burlescos mais ou menos marcados, porém com nostalgia pela in- mente diverso: a verdade para ele deve fazer as contas com a ex- gênua fabulação popular dos contadores de histórias; aos rudes periência cotidiana, com o senso comum e também com os pre- despojos do imaginário cavaleiresco ninguém atribuía nenhum va- ceitos da religião da Contra-Reforma. Para os poetas italianos do lor além de um repertório de motivos convencionais, mas o céu Quatrocentos e do Quinhentos (até Tasso, excluído, pois com ele da poesia se abria para acolher seu espírito. a questão se complica), a :verdade era ainda fidelidade ao mito, como para o Cavaleiro da Mancha. Pode ser interessante lembrar que, muitos anos antes de Cer- vantes, em 1526, já encontramos uma fogueira de livros de cava- Podemos verificar isso também num epígono como Folen- laria ou, mais precisamente, uma seleção dos livros a serem con- go, a meio caminho entre poesia popular e poesia culta: o espíri- denados ao fogo e daqueles a serem salvos. Falo de um texto to do mito, transmitido pela noite dos tempos, é simbolizado por decididamente menor e não muito conhecido: o Orlandino, poe- um livro, o de Turpin, que está na origem de todos os livros, li- ma breve em versos italianos de Teofilo Folengo (famoso com o vro hipotético, só aleançável pela magia (também Boiardo, diz Fo- nome de Merlin Cocai por causa de Baldus, poema em latim ma- lengo, era amigo das bruxas), livro mágico além de ser relato de carrônico misturado com o dialeto de Mântua). No primeiro can- magias. to do Orlandino, Folengo conta ter sido levado por uma bruxa, voando na garupa de um bode, para uma caverna dos Alpes onde Nos países de origem, França e Inglaterra, a tradição literária são conservadas as verdadeiras crônicas de Turpin, lendária ma- cavaleiresca se apagara antes (na Inglaterra, em 1470, recebendo triz de todo o ciclo carolíngio. Do confronto com as fontes, re- uma forma definitiva no romance de Thomas Malory, exceto se sultam verdadeiros os poemas de Boiardo, Ariosto, Pulei e do \"Ce- considerarmos uma nova encarnação com as fadas elisabetanas de go de Ferrara\", embora com acréscimos arbitrários. Spencer; na França, declinando lentamente após ter conhecido a consagração poética mais precoce no século XII com as obras- Mas Trebisunda, Aneroia, Spagna e Bovo primas de Chrétien de Troyes). O revival cavaleiresco do século Com todo o resto ao fogo sejam dadas, XVI envolve sobretudo Itália e Espanha. Quando Bernal Díaz del Apócrifas são todas e as reprovo Castillo, para exprimir a maravilha dos conquistadores perante as Como inimigas de quaisquer verdades; visões de um mundo inimaginável como o do México de Monte- Boiardo, Ariosto, Pulei e o Cego zuma, escreve: \"Decíamos que parecía a Ias cosas de encantamien- Autenticados são e eu junto sigo. to que cuentan en ellibro de Amadís\", temos a impressão de que compara a realidade mais nova com a tradição de textos antiquís- \"EI verdadero historiador Turpin\", também lembrado por simos. Mas, se observarmos as datas, vemos que Díaz del Castillo Cervantes, era um ponto de referência habitual no jogo dos poe- narra fatos ocorridos em 1519, quando Amadís ainda podia ser tas cavaleirescos italianos do Renascimento. Também Ariosto, considerado quase uma novidade editorial ... Compreendemos assim quando sente que conta casos muito exagerados, se protege com que a descoberta do Novo Mundo e a Conquista foram acompa- a autoridade de Turpin: \"O bom Turpin, que sabe dizer o vero, nhadas, no imaginário coletivo, por aquelas histórias de gigantes e vai deixar crer o que o homem ouve com agrado, conta admirá- e de encantamentos das quais o mercado de livros oferecia vasto veis coisas de Ruggiero, que, só de ouvir, de mentiroso sim seria sortimento, assim como a primeira difusão européia do ciclo chamado\" (O. F., XXVI, 23). 65 64• POR QUE LER OS CLÁSSICOS A ESTRUTURA DO \"ORLANDO\" francês acompanhara, alguns séculos antes, a mobilização publi- Orlando furioso é um poema que se recusa a começar e se citária para as Cruzadas. recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema, Orlando innamorato, de Mat- O milênio que está para se encerrar foi o milênio do roman- teo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa ce. Nos séculos XI, XII e XIII, os romances de cavalaria foram os a acabar porque Ariosto não pára nunca de trabalhar dentro de nós. primeiros livros profanos cuja difusão marcou profundamente a Após tê-Io publicado em sua primeira edição de 1516, em quaren- vida das pessoas comuns e não somente dos doutos. Dante é tes- ta cantos, procura fazê-Io crescer, inicialmente tentando dar-lhe temunho disso, falando-nos de Francesca, a primeira personagem uma seqüência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, pu- da literatura mundial que vê sua vida mudada pela leitura dos blicados postumamente), depois inserindo novos episódios nos romances, antes de Dom Quixote, antes de Emma Bovary. No ro- cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que mance francês Lancelot, o cavaleiro de Galehaut convence Gue- é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio tempo, houve nievre a beijar Lancelot; na Divina comédia, o livro Lancelot as- uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se consi- sume a função que Galehaut tivera no romance, convencendo derar o poema qefinitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da língua e da Francesca a deixar-se beijar por Paolo. Provocando uma identifi- versificação, que Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, pode- cação entre a personagem do livro enquanto age sobre as outras ríamos dizer, pois para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto personagens e o livro enquanto age sobre seus leitores (\"Galeot- havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar to foi o livro e quem o escreveu\"), Dante executa uma primeira a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a partir operação vertiginosa de metaliteratura. Nos versos de uma con- do interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando no- centração e sobriedade insuperáveis, acompanhamos Francesca vas simetrias e novos contrastes, me parece que explica bem o mé- e Paolo que \"sem nenhuma suspeita\" se deixam prender pelas todo de construção de Ariosto; e permanece para ele o verdadeiro emoções da leitura e, de vez em quando, se olham nos olhos, em- modo de alargar esse poema de estrutura policêntrica e sincrâni- palidecem, e quando chegam ao ponto em que Lancelot beija a ca, cujas vicissitudes se difundem em todas as direções e se bifur- boca de Guenievre (\"o desejado riso\") o desejo escrito no livro cam continuamente. torna explícito o desejo experimentado na vida e a vida toma a forma narrada no livro: \"a boca me beijou toda trêmula ... \". 67 1985 66• POR QUE LER OS CLÁSSICOS A ESTRUTURA DO \"ORLANDO\" • Para acompanhar as aventuras de tantas personagens princi- roração amorosa ou ainda de metáfora elaborada, antes de reto- pais e secundárias o poema precisa de uma \"montagem\" que per- mar a narrativa no ponto em que foi interrompida. E justamente mita abandonar uma personagem ou um teatro de operações e pas- na abertura dos cantos se situam as digressões sobre a atualidade sar para outro. Estas passagens às vezes ocorrem sem romper a con- italiana que são muitas sobretudo na última parte do poema. É co- tinuidade da narrativa, quando duas personagens se encontram e mo se por meio dessas conexões o tempo em que o autor vive a narrativa, que estava seguindo a primeira, se afasta para ir atrás e escreve irrompesse no tempo fabuloso da narrativa. da segunda; outras vezes, ao contrário, mediante cortes nítidos que interrompem a ação bem no meio de um canto. São em geral os Definir sinteticamente a forma do Orlando furioso é portanto dois últimos versos da oitava que informam sobre a suspensão e impossível, pois não estamos perante uma geometria rígida: po- descontinuidade no relato, duplas de versos rimados como es- deríamos recorrer à imagem de um campo de força, que gera con- tes: \"Segue Rinaldo, e d'ira si distrugge: ma seguitiamo Angelica che tinuamente em seu interior outros campos de força. O movimen- fugge\" [Segue Rinaldo e com ira se desfaz: sigamos Angelica que to é sempre centrífugo; no começo já nos encontramos em plena sombra se faz]; ou então: \"Lasciànlo andar, che farà buon camino, ação, e isso vale para o poema como para cada canto e episódio. e torniamo a Rinaldo paladino\" [Deixem-no ir, pois fará boa estra- da, e voltemos a Rinaldo, alerta espada]; ou ainda: \"Ma tempo e O defeito de todo preâmbulo ao Furioso é que se começa di- ormai di ritrovar Ruggiero che scorre il ciel su l'animalleggiero\" zendo: \"é um poema que serve de continuação a um outro, o qual [Mas já é tempo de encontrar Ruggiero que varre o céu no animal continua um ciclo de inúmeros poemas\"; o leitor logo se sente bem célere]. Enquanto estas cesuras da ação se situam no interior desencorajado: se antes de iniciar a leitura terá de conhecer todos dos cantos, pelo contrário, o fecho de cada canto promete que os precedentes, e os precedentes dos precedentes, quando é que o relato continuará no canto sucessivo; também aqui esta função conseguirá de fato começar o poema de Ariosto? Na realidade, to- didática é em geral atribuída ao par de versos rimados que con- do preâmbulo logo se revela supérfluo: o Furioso é um livro úni- cluem a oitava: \"Come a Parigi appropinquosse, e quanto Cado co em seu gênero e pode ser lido - quase diria: deve - sem fa- aiutà, vi dirà l'altro canto\" [Como de Paris aprochegou-se, e quanto zer referência a nenhum outro livro precedente ou consecutivo; Cado ajudou, dirá o outro canto). é um universo em si no qual se pode viajar em todos os quadran- tes, entrar, sair, perder-se. Freqüentemente, para fechar o canto, Ariosto finge de novo ser um aedo que recita seus versos numa noitada da corte: \"Non Que o autor faça passar a construção desse universo por uma piu, Signor, non piu di questo canto; ch'io son già rauco, e vo' continuação, um apêndice, um - como ele diz - \"acréscimo\" posarmi alquanto\" [Não mais, Senhor, não mais deste cantó; que a uma obra alheia pode ser interpretado como um indício da ex- já estou rouco, vou pousar um tanto]; ou então se nos mostra- traordinária discrição de Ariosto, um exemplo daquilo que os in- testemunho mais raro - no ato material de escrever: \"Poi che gleses chamam de understatement, isto é, o especial espírito de ironia contra si mesmo que leva a minimizar as coisas grandes e da tutti i lati ho pieno il foglio, finire il canto, e riposar mi voglio\" importantes; mas pode também ser visto como sinal de uma con- [Pois de todos os lados cheia folha já vejo, terminar o canto e cepção do tempo e do espaço que renega a configuração fechada recuperar-me desejo]. do cosmos ptolomaico e se abre ilimitada na direção do passado e do futuro, bem como no sentido de uma incalculável pluralida- Ao contrário, o início do canto subseqüente comporta quase de de mundos. sempre um alargamento do horizonte, um distanciamento da ur- gência da narração, sob a forma de introdução gnômica ou de pe- Desde o início o Furioso se anuncia como o poema do movi- mento, ou melhor, anuncia o tipo particular de movimento que o 68 69• POR QUE LER OS CLÁSSICOS . A ESTRUTURA DO \"ORLANDO\" • percorrerá de um extremo a outro, movimento de linhas quebra- O segredo da oitava ariostesca está em seguir o ritmo variado das, em ziguezague. Poderíamos traçar o desenho geral do poe- da linguagem falada, na abundância daqueles que De Sanctis defi- ma seguindo o contínuo cruzamento e divergência dessas linhas niu como os \"acessórios não essenciais da linguagem\", assim co- sobre um mapa da Europa e da África, mas já bastaria para defini- mo na desenvoltura da fala irônica; mas o registro coloquial é ape- 10 o primeiro canto, em que três cavaleiros perseguem Angelica nas um dos tantos que ele usa, que vão do lírico ao trágico e ao que foge pelo bosque, numa sarabanda cheia de extravios, encon- gnômico, e que podem coexistir na mesma estrofe. Ariosto pode tros fortuitos, descaminhos, mudanças de programa. ser de uma concisão memorável; muitos de seus versos se torna- É com esse ziguezague traçado pelos cavalos a galope e pelas ram proverbiais: \"Aí está o juízo humano que tanto erra!\", ou en- intermitências do coração humano que somos introduzidos no es- tão: \"Oh, grande bondade dos cavaleiros antigos!\". Mas não é só pírito do poema; o prazer da rapidez da ação se mistura logo a um com esses parênteses que ele pratica suas mudanças de velocidade. sentido de amplitude na disponibilidade do espaço e do tempo. O Convém frisar que a própria estrutura da oitava se baseia numa procedimento distraído não é só dos perseguidores de Angelica mas descontinuidade de ritmo: aos seis versos unidos por uma dupla também de Ariosto: dir-se-ia que o poeta, iniciando sua narrativa, de rimas alternadas seguem-se dois versos com rimas emparelha- não conhece ainda o esquema da trama que em seguida o guiará das, com um efeito que hoje definiríamos como anticlímax, de com pontual premeditação, mas uma coisa já tem perfeitamente cla- brusca mudança não só rítmica mas de clima psicológico e inte- ra: aquele impulso e ao mesmo tempo aquela facilidade em narrar, lectual, do culto ao popular, do evocativo ao cômico. ou seja, aquilo que poderíamos definir - com um termo denso de significados - o movimento \"errante\" da poesia de Ariosto. Naturalmente, com tais volteios da estrofe, Ariosto joga do modo que lhe é próprio, mas o jogo poderia tornar-se monótono, Tais características do \"espaço\" ariostesco, podemos identi- sem a agilidade do poeta ao movimentar a oitava, introduzindo ficá-Ias na escala do poema inteiro ou dos cantos singulares bem as pausas, os pontos fixos em posições diversas, adaptando diver- como numa escala menor, a da estrofe ou do verso. A oitava é sos andamentos sintáticos ao esquema métrico, alternando perío- a medida na qual melhor reconhecemos aquilo que Ariosto tem dos longos com breves, quebrando a estrofe e, em certos casos, de inconfundível: na estrofe de oito versos Ariosto se vira como encadeando-a numa outra, mudando continuamente os tempos da narrativa, saltando do pretérito perfeito para o imperfeito, pa- quer, está em casa, seu milagre é feito sobretudo de desenvoltura. ra o presente e para o futuro, criando enfim uma sucessão de pla- Principalmente por duas razões: uma intrínseca à oitava, isto nos, de perspectivas da narração. é, uma estrofe que se presta a discursos também longos e a alter- Essa liberdade, essa amplitude de movimentos que encontra- nar tons sublimes e líricos com tons prosaicos e jocosos; e uma mos na versificação dominam ainda mais no nível das estruturas intrínseca ao modo de poetar de Ariosto, que não se tolhe com narrativas, da composição do enredo. As tramas principais, vale limites de nenhum gênero, que não se propôs como Dante uma relembrar, são duas: a primeira conta como Orlando se torna, de repartição rígida da matéria, nem uma regra de simetria que o obri- apaixonado infeliz por Angelica, doido furioso, e como os exérci- gasse a um número de cantos preestabelecido e a um número de tos cristãos, pela ausência de seu campeão, arriscam-se a perder estrofes em cada canto. No Furioso, O canto mais breve tem 72 a França, e como a razão perdida do louco foi reencontrada por oitavas; o mais longo, 199. O poeta pode mover-se comodamen- Astolfo na Lua e devolvida ao legítimo proprietário, permitindo- te, se quiser, empregar mais estrofes para dizer algo que outros lhe retomar seu lugar na tropa. Paralela a esta se desenvolve a se- diriam num verso ou então concentrar num verso aquilo que po- gunda trama, a dos predestinados mas sempre adiados amores de deria ser matéria de um longo discurso. 71 70• POR QUE LER OS CLÁSSICOS A ESTRUTURA DO \"ORLANDO\" • Ruggiero, campeão do campo sarraceno, e da guerreira cristã Bra- , damante, e de todos os obstáculos que se interpõem ao destino nupcial deles, até que o guerreiro consegue mudar de lado, rece- De tudo o que foi dito, poderíamos acreditar que no assédio ber o batismo e arrebatar a robusta apaixonada. A trama Ruggiero- de Paris acabem por convergir os itinerários de todas as persona- Bradamante não é menos importante que a de Orlando-Angelica, gens principais. Mas isso não acontece: dessa epopéia coletiva es- pois Ariosto (como antes Boiardo) quer transformar aquele casal em tá ausente a maior parte dos campeões mais famosos; só a gigan- matriz da genealogia da família D'Este, isto é, não só justificar o tesca massa de Rodomonte sobressai na peleja. Onde se meteram poema aos olhos de seus comitentes, mas sobretudo ligar o tempo todos os outros? mítico da cavalaria às vivências contemporâneas, ao presente de Ferrara e da Itália. As duas tramas principais e suas numerosas ra- É preciso dizer que o espaço do poema tem também um ou- mificações vão adiante entrelaçadas, mas se prendem por seu lado tro centro de gravidade, um centro em negativo, uma arapuca, ao redor do tronco mais propriamente épico do poema, ou seja, uma espécie de turbilhão que engole uma a uma as principais per- o desenrolar da guerra entre o imperador Carlos Magno e o rei da sonagens: o palácio encantado do mago Atlas. A magia de Atlas África, Agramante. Esta epopéia se concentra sobretudo num blo- se deleita com arquiteturas ilusionistas: já no canto IV faz surgir, co de cantos que tratam o assédio de Paris visto pelos mouros, a entre as alturas dos Pireneus, um castelo inteiramente de aço e contra-ofensiva cristã, as discórdias do lado de Agramante. O assé- depois o dissolve no nada; entre o canto XII e o XXII vemos elevar- dio de Paris é como o centro de gravidade do poema, assim como se, não distante das costas da Mancha, um palácio que é um rede- a cidade de Paris se apresenta como seu umbigo geográfico: moinho de vazio, no qual se refratam todas as imagens do poema. Siede Parigi in uma gran pianura A Orlando em pessoa, enquanto está buscando Angelica, acon- ne I'ombilieo a Franeia, anzi nel core; tece ser vítima do encanto, conforme um procedimento que se gli passa Ia riviera entro le mura repete quase idêntico para cada um desses audazes cavaleiros: vê e corre et esce in altra parte fuore: sua bela ser raptada, persegue o raptor, entra num misterioso pa- ma fa un 'isola prima, e v'assicura lácio, roda e rodeia por vestíbulos e corredores desertos. Ou seja: de Ia città una parte, e Ia migliore; o palácio acha-se deserto daquilo que se busca e é freqüentado I'altre due (eh'in tre parti e Ia gran terra) apenas por quem procura algo. di fuor Ia fossa, e dentro il fiume serra. Alia città ehe malte miglia gira Estes que vagueiam pelos pórticos e pelos vãos sob as esca- da malte parti si puà dar battaglia; das, que remexem debaixo das tapeçarias e baldaquinos são os ma perché sol da un canto assalir mira, mais famosos cavaleiros cristãos e mouros: todos foram atraídos né volentier I'esercito sbarraglia, oltre il fiume Agramante si ritira para o paláeio pela visão de uma mulher amada, de um inimigo verso ponente, aceià ehe quindi assaglia; inalcançável, de um cavalo roubado, de um objeto perdido. E ago- perà che né cittade né eampagna ra não podem mais afastar-se daquelas paredes: se alguém tenta ha dietro (se non sua) fino alia Spagna * afastar-se, escuta um chamado, vira-se e a aparição inutilmente per- seguida está ali, a dama a ser salva encontra-se numa janela, implo- (XIV, 104 55.) mas faz uma ilha antes, e resguardado/ da cidade um trecho, em boa condição;/ (*) \"Centra-se Paris num grande descampado/ no umbigo da França, mais no os outros dois (em três se parte a terra)/ lá fora da fossa, e dentro o rio encerra.! coração;! passa-lhe o rio dentro do amuralhado/ e corre e sai em distante dispersão:/ À cidade que muitas milhas gira/ de muitos lados se pode dar batalha;/ mas porque só de um canto assaltar mira,! bem a contragosto o exército esfrangalha,! além do 72 rio o exército se retira/ rumo poente, negando combate à canalha;! contudo nem cidade nem área de campanha/ tem por trás (senão sua) até a Espanha.\" 73• POR QUE LER OS CLÁSSICOS A ESTRUTURA DO \"ORLANDO\" • rando socorro. Atlas deu forma ao reino da ilusão; se a vida é sem- A palavra jogo reapareceu várias vezes em nosso discurso. Mas pre variada, imprevista e cambiante, a ilusão é monótona, passa não devemos esquecer que os jogos, dos infantis aos dos adultos, e repassa sempre no mesmo ponto. O desejo é uma corrida rumo têm sempre um fundamento sério: são sobretudo técnicas para ao nada, o encantamento de Atlas concentra todas as paixões in- treinamento de faculdades e atitudes que serão necessárias na vi- satisfeitas no interior de um labirinto, mas não muda as regras que da. O de Ariosto é o jogo de uma sociedade que se sente produto- governam os movimentos dos homens no espaço aberto do poe- ra e depositária de uma visão do mundo, mas sente também o va- ma e do mundo. zio que se cria sob seus pés, entre ruídos de terremoto. Também Astolfo chega ao palácio, perseguindo - ou seja, O último canto, XLVI, se abre com a enumeração de uma ga- imaginando perseguir - um pobre camponês que lhe roubou o leria de personas que constituem o público em que Ariosto pen- cavalo Rabicano. Mas com Astolfo não há encanto que prevaleça. sava ao escrever seu poema. Esta é a verdadeira dedicatória do Ele possui um livro mágico onde se explica tudo sobre os palá- Furioso, mais do que a reverência obrigatória ao cardeal Ippolito cios daquele tipo. Astolfo vai direto até a laje de mármore do um- d'Este, a \"generosa hercúlea prole\" ao qual o poema é dedicado, bral: basta levantá-Ia para que todo o palácio se transforme em na abertura do primeiro canto. fumaça. Naquele momento é alcançado por um bando de cavalei- ros: quase todos são seus amigos, mas, em vez de dar-lhe boas- A nave do poema está chegando ao porto e, para recebê-Ia, vindas, colocam-se contra ele como se quisessem enfiar-lhe a es- encontra perfiladas no píer as damas mais belas e gentis das cida- pada. Que acontecera? O mago Atlas, vendo-se em maus lençóis, des italianas, cavaleiros, poetas e doutos. Trata-se de uma panorâ- recorrera a um último encanto: fazer com que Astolfo aparecesse mica de nomes e rápidos perfis de seus contemporâneos e amigos, aos vários prisioneiros do palácio como o adversário em cuja per- o que Ariosto desenha: é uma definição de seu público perfeito seguição todos eles ali haviam entrado. Porém, Astolfo só precisa e ao mesmo tempo uma imagem de sociedade ideal. Para uma es- soprar em seu berrante para dispersar mago, magia e vítimas da pécie de reviravolta estrutural, o poema sai de si mesmo e se ob- magia. O palácio, teia de sonhos, desejos e invejas, se desfaz: ou serva através dos olhos de seus leitores, se define através do cen- seja, deixa de ser um espaço exterior a nós, com paredes, escadas so de seus destinatários. E por sua vez é o poema que serve de e portas, para voltar a encerrar-se em nossas mentes, no labirinto definição ou de emblema para a sociedade dos leitores presentes dos pensamentos. Atlas devolve o livre curso pelas vias do poe- e futuros, para o conjunto de pessoas que participará de seu jogo, ma às personagens que seqüestrara. Atlas ou Ariosto? O palácio que nele se reconhecerá. encantado se revela um astuto estratagema estrutural do narrado r que, pela impossibilidade material de desenvolver simultaneamen- 1974 te um grande número de histórias paralelas, sente falta de retirar, durante alguns cantos, certas personagens da ação, pôr de lado 75 determinadas cartas para continuar seu jogo e usá-Ias no momen- to oportuno. O encantador que pretende retardar o cumprimen- to do destino e o poeta-estratego que ora aumenta ora reduz as fileiras das personagens em campo, reúne-as para depois dispersá- Ias, sobrepõem-se até identificar-se. 74PEQUENA ANTOLOGIA PEQUENA ANTOLOGIA DE OITAVAS. DE OITAlítS che di volere a lur venir ja segno; N o quinto centenário de Ariosto, me perguntam o que sig- né lascia poi ch 'arrivi a terra il legno. * nificou o Furioso para mim. Porém, indicar onde, como e quanto Um estudo que gostaria de ter feito e que, se não fizer, al- a minha predileção por esse poema deixou traços nas coisas que guém pode fazer em meu lugar concerne a esta situação: uma bei- escrevi me obriga a retomar sobre o trabalho já feito, enquanto ra de mar ou de rio, uma personagem parada e um barco a peque- o espírito ariostesco para mim sempre quis dizer impulso para dian- na distância, portador de uma notícia ou de um encontro do qual te, não olhar para trás. E, além disso, penso que tais traços de pre- nasce a nova aventura (em qualquer caso, o inverso: o herói está ferência são bastante evidentes para deixar que o leitor os encon- no barco e o encontro ocorre com uma personagem em terra). tre por conta própria. Prefiro aproveitar a ocasião para tornar a Uma resenha das passagens que narram situações semelhantes cul- folhear o poema, e, um pouco na linha da memória, .um pouco minaria com uma oitava de pura abstração verbal, quase um lime- me deixando levar pelo acaso, tentarei uma antologia pessoal de rick (xxx, 10): oitavas. Quindi partito, venne ad una terra, A quinta-essência do espírito ariostesco para mim se encon- Zizera detta, che siede alio stretto tra nos versos que antecipam uma nova aventura. Várias vezes es- di Zibeltarro, o vuoi Zibelterra, ta situação é marcada pelo aproximar-se de uma embarcação à mar- che I'uno o I'altra nome le vien detto; gem onde o herói se encontra por acaso (IX, 9): ove una barca che sciogliea da terra vide piena di gente da diletto Con gli occhi cerca or questo lato or quelio che solazzando ali 'aura matutina, lungo le ripe il paladin, se vede gia per Ia tranquillissima marina. * * (quando né pesce egli non e, né augelio) come abbia a por ne l'altra ripa il piede: Entro assim num outro tema de estudo que gostaria de fazer et ecco a sé venir vede un battelio, mas que provavelmente já foi feito: a toponomástica do Furioso, su le cui poppe una donzelia siede, que carrega sempre consigo uma brisa de nonsense. Em especial a toponomástica inglesa fornece a matéria verbal com que Arios- 76 to mais se diverte, qualificando-se como o primeiro anglômano da literatura italiana. Em particular, poder-se-ia pôr em evidência como os nomes com sonoridades extravagantes colocam em mo- (*) \"Com os olhos busca ora este ora aquele lado/ ao longo das margens o paladino, quer ver/ (já que peixe eie não é, tampouco ser alado)/ como há de na outra margem o pé descer:/ e eis que chega alguém embarcado,! sobre a popa uma donzela a languescer,! que deseja até ele vir matreira;/ nem deixa que beije a terra a madeira.\" (* *) \"Tendo partido, chegou a uma terra,! Gigira dita, que fica no estreito/ de Gibraltarro,! ou querendo, Gibralterra,! pois um ou outro nome lhe é perfei- to;/ onde um barco que se afasta da terra/ viu cheio de gente predileta/ que folgan- do pela aura matutina/ seguia na tranqüilíssima marina.\" 77• POR QUE LER OS CLÁSSICOS PEQUENA ANTOLOGIA DE OITAVAS • vimento um mecanismo de imagens extravagantes. Por exemplo, de um máximo de deslocações espaciais para definir um estado no quebra-cabeça heráldico do canto x, aparecem visões à Ray- de ânimo sentimental (XXXII, 21): mond Roussel (x, 81): Ma di che debbo lamentarmz; ahi lassa, Il falcon che sul nido i vanni inchina, fuor che del mio desire irrazionale? porta Raimondo, íl conte di Devonia. ch 'alto mi leva, e si nelt 'aria passa, Il gialto e íl negro ha quel di Vigorina; ch 'arriva in parte ove s 'abbrucia l 'ale; íl can quel d'Erba; un orso quel d'Osonia. poi non potendo sostener, mi lassa La croce che là vedi cristallína, dal ciel cader: né qui finisce il male; e del ricco prelato di Batton ia. che le rimette, e di nuovo arde: ond'io Vedi nel bigio una spezzata sedia: non ho mai fine al precipizio mio. * e del duca Ariman di Sormosedia. * Ainda não exemplifiquei a oitava erótica, porém os exemplos Como rimas insólitas, recordarei a estrofe 63 do canto XXXII em mais insignes são todos muito conhecidos; e pretendendo fazer que Bradamante se afasta de uma toponomástica africana para en- uma opção mais singular acabo por esbarrar em alguns versos um trar nas intempéries hibernais que envolvem o castelo da rainha tanto pesados. A verdade é que nos momentos sexualmente cul- da Islândia. Num poema em geral estável do ponto de vista climá- minantes Ariosto perde a mão e a tensão se esvai. Inclusive nos tico como o Furioso, este episódio - que se abre com a mais brus- episódios com efeitos eróticos mais sutis, como é o de Fiordispi- ca variação térmica que se possa encontrar no espaço de uma oi- na e Ricciardetto (canto xxv), o refinamento está mais no relato tava - destaca-se por sua atmosfera chuvosa: e na vibração geral que na estrofe isolada. No máximo posso citar uma multiplicação de artes emaranhadas do tipo estampa japone- Leva al fin gli occhi, e vede il sol che 'l tergo sa: \"Non con piu nodi i flessuosi; acanti/ le colonne circondano avea mostrato alte città di Bocco, e le travi,! di quelli con che noi legammo strettil e colli e fianchi e poi s 'era attuffato, come il mergo, e braccia e gambe e petti\" [Não com mais nós os flexíveis acan- in grembo alta nutrice oltr'a Marocco: tos/ as colunas circundam e as traves,! daqueles com quem nos e se disegna che la frasca albergo unimos estreitos/ e colos e flancos e braços e pernas e peitos]. le dia ne' campi, fa pensier di sciocco; che soffia un vento freddo, e l 'aria grieve O verdadeiro momento erótico para Ariosto não é o da reali- pioggia la notte le minaccia o nieve. * * zação mas o da espera, da trepidação inicial, dos preparativos. É então que atinge seus momentos mais altos. O desnudamento de Eu diria que a metáfora mais complicada pertence ao registro de Alcina é muito conhecido mas deixa sempre a respiração suspen- Petrarca, mas Ariosto introduz ali toda a sua necessidade de mo-, sa (VII, 28): vimento, e assim essa estrofe me parece atingir também o primado ben che né gonna né faldiglia avesse; (*) \"O falcão que sobre o ninho o vôo inclina,! leva Raimundo, o conde de che venne avolta in un leggier zendado Devônia.l O amarelo e o negro tem aquele de Vigorina;! o cão aquele d'Erba; um urso o de Osônia.l A cruz que lá você vê cristalina,! é do rico prelado de Batônia.l (*) \"Mas de que devo lamentar-me, ai cansaço,! além do meu desejo irracio- Vê no cinza uma quebrada cadeira:/ é do duque de Sormosedeira.\" nal?/ quão alto me leva, e sim no ar passa,! que chega até onde incendeia as asas;! depois não podendo sustentar, me deixa/ do céu cair: nem aqui acaba o mal;! que (* *) \"Ergue por fim os olhos, e vê o sol que as costas/ havia mostrado às cida- as refaz e de novo ardem: onde eu/ nunca mais ponho fim ao precipício meu.\" des de Bocco,! e depois se afundara, como o mergulhão,! no colo das nu trizes além de Marrocos:/ e se desenha que o ramo abrigo/ lhe dê nos campos, pensa feito bo- 79 bo;! que sopra um vento frio e o ar não levei chuva à noite o ameaça ou neve.\" 78• POR QUE LER OS CLÁSSICOS PEQUENA ANTOLOGIA DE OITAVAS. che sopra una camicia ella si messe, Quel gli urta il déstrier contra, ma Ruggiero bianca e suttil nel piit escellente grado. 10 cansa accortamente, e si ritira, Come Ruggiero abbraccià lei, gli cesse e nel passare, aI fren piglia il destriero il manto; e restà il vel suttile e rado, con Ia man manca, e intorno 10 raggira; che non copria dinanzi né di dietro, e con Ia destra intanto aI cavalliero ferire il fianco o il ventre o il petto mira; ipiit che le rase o gigli un chiaro vetro. \" e di due punte fe' sentirgli angoscia, o nu feminino que Ariosto privilegia não é renascentistamente l'una nel fianco, e l'altra ne Ia coscia. * abundante; poderia caber no gosto atual por corpos adolescen- Mas existe um outro tipo de precisão que não se deve negli- tes, com uma conotação de alvura-frieza. Diria que o movimento genciar: a do raciocínio, da argumentação que se resolve no fe- da oitava se aproxima do nu como uma lente de uma miniatura chamento da forma métrica, articulando-se no modo mais circuns- e depois se afasta, fazendo-o diluir-se no vazio. Para continuar entre tanciado e atento a todas as implicações. O máximo de agilidade os exemplos mais óbvios, na nudez-paisagem de Olimpia é a pai- que chamaria de causídica no argumentar está na defesa que Ri- sagem que acaba prevalecendo sobre o nu (XI, 68): naldo, como um hábil advogado, faz do crime passional imputa- do a Ginevra e do qual ele ainda não sabe se ela é culpada ou ino- Vinceano di candor le nievi intatte, cente (IV, 65): et eran piit ch 'avorio a toccar molli.· le poppe ritondette parean latte Non vo' già dir ch 'ella non l'abbia fatto; che fuor dei giunchi allora allora tolli. che nol sappendo, il falso dir potrei: Spazio fra lor tal discendea, qual fatte dirà ben che non de' per simil atto esser veggiàn fra piccolini colli punizi\"on cadere alcuna in lei; l'ombrose valli, in sua stagione amene, e dirà chefu ingiusto o che fu matto che 'I verno abbia di nieve allora piene. * * chi fece prima li statuti rei; e come iniqui rivocar si denno, Estes resultados na técnica do \"sfumato\" não nos podem fa- e nuova leggefar con miglior senno. * * zer olvidar que é a precisão um dos valores maiores que busca a versificação narrativa ariostesca. Para documentar quanta rique- Só me falta exemplificar a oitava truculenta, procurando aque- za de detalhes e precisão técnica pode conter uma oitava, basta la em que se concentram mais carnificinas. O único embaraço é escolher entre as cenas de duelos. Vou me limitar a esta estrofe, o da escolha: muitas vezes são as mesmas fórmulas, os mesmos no canto final (XLVI, 126): versos que são repetidos e arrumados diversamente. Num primeiro (*) \"embora nem saia nem aventallevasse;l que veio envolta num leve cen- (') ''Aquele lhe atira o ginete contra, mas Ruggiero/ o cansa sagazmente, e se re- dal/ que sobre uma blusa ela fez pousar-sei branca e sutil no mais excelso grau.! tira,! e ao passar, nas rédeas pega o ginete/ com a mão canhota, e ao redor o volteia;/ Quando Ruggiero abraçou-a, lhe cedeu/ o manto; e restou o véu sutil diáfano,! e com a direita entanto ao cavaleiro/ ferir o flanco ou o ventre ou o peito anseia;/ e que não cobria a frente nem o dorso,/ mais que rosas ou lírios, frágil escorço.\" com duas pontas lhe faz sentir aflição,! uma no flanco e outra na coxa lhe entram.\" (* *) \"Venciam de candura as neves intactas,/ e eram mais que marfim a tocar (* *) \"Não quero já dizer que ela o tenha feito;/ pois não sabendo, o falso moles: / as tetas redondetas pareciam lácteas/ que fora dos juncos então tirei. Vagueio dizer poderia:/ direi bem que não por esse ato/ punição nenhuma ela mereceria;/ entre elas tal descida, qual fadas/ seu ser vêem entre pequeninas colinas/ sombrea- e direi que foi injusto ou que foi insano quem fez primeiro as regras para os réus;/ dos vales, em sua estação amena,/ que o inverno tenha de neve então plena.\" e como iníquas deve revogá-Ias também,! e nova lei fazer como melhor convém.\" 80 81• POR QUE LER OS CLÁSSICOS GEROLAMO CARDANO reconhecimento sumário, diria que o primado na importância dos Qual é o livro que Hamlet está lendo quando entra em cena danos numa oitava se encontra nos Cinque canti, IV, 7. no segundo ato? Polônio, que lhe faz a pergunta, tem como res- Dui ne parti fra Ia cintura e I'anche: posta: \"palavras, ,palavras, palavras\", e nossa curiosidade perma- restâr le gambe in seUa e cadde il busto; nece insatisfeita, mas, se podemos encontrar um traço de leituras da Ia cima deI capo un divise anche recentes no monólogo do \"ser ou não ser\" que abre a entrada fin su I'arcion, ch 'andà in dui pezzi giusto; em cena do príncipe da Dinamarca, deveria ser um livro em que tre feri su le spaUe o destre o manche; se discute sobre a morte como se fosse sono, visitado ou não por e tre volte usei il colpo acre e robusto sonhos. sotto Ia poppa daI contrario lato: dieci passà da l'uno a l'altro lato. * Ora, numa passagem de De consolatione de Gerolamo Car- dano, livro traduzido em inglês, em 1573, numa edição dedicada Notamos logo que a fúria homicida provocou um dano im- ao conde de Oxford, portanto conhecido nos ambientes que previsto: a repetição da palavra lado em rima com significado idên- Shakespeare freqüentava, o tema é difusamente discutido. \"Cer- tico, evidentemente uma distração que o autor não teve tempo tamente o sono mais doce é aquele mais profundo\", ali se diz, de corrigir. Ou melhor, examinando bem, o último verso inteiro, entre outras coisas, \"quando estamos como mortos e não sonha- na lista de ferimentos que a estrofe passa em revista, resulta numa mos nada, ao passo que é muito incômodo o sono leve, inquieto, repetição, uma vez que a morte com aço de lança já fora exempli- interrompido por cochilos, atravessado por pesadelos e visões, ficada. A menos que não esteja subentendida esta distinção: ao pas- como sói acontecer com os doentes\". so que é claro que as três vítimas precedentes são atravessadas no sentido da espessura, as dez últimas poderiam apresentar uma pe- Para concluir que o livro lido por Hamlet é sem dúvida o de netração mais rara, lateral, de flanco a flanco. O uso de lado [lato] Cardano, como fazem alguns estudiosos das fontes shakespearia- me parece mais apropriado no último verso, no sentido de flanco nas, talvez isso seja muito pouco. E muito pouco representativo (fianco]. Enquanto no penúltimo verso lado poderia ter sido subs- da genialitas de Cardano é aquele pequeno tratado de filosofia tituído facilmente por outra palavra em ado, por exemplo, costado: moral para servir de pedestal a um encontro entre ele e William \"sob a mama a meio costado\", correção que Ariosto, penso, não teria deixado de fazer caso houvesse continuado a trabalhar na- 83 queles que permaneceram os Cinque canti. Com esta modesta e amigável participação ao seu trabalho irz progress, encerro minha homenagem ao poeta. 1975 (*) \"Dois lhe desfechou entre a cintura e as ancas:/ ficaram as pernas na sela e arriou o busto;/ lá de cima da cabeça outro dividiu também/ até o arção, que se abriu em dois pedaços justos;! três feriu nas costas mãos direitas ou esquerdas;! e três vezes saiu o golpe acre e robusto/ sob a mama do contrário lado:/ dez pas- sou de um para outro lado.\" 82• POR QUE LER OS CLÁSSICOS GEROLAMO CARDANO • Shakespeare. Porém, naquela página se fala de sonhos e não é ca- toda a sua obra em latim (acreditava ele que esta era a condição sualidade: sobre os sonhos, especialmente os seus próprios, Car- para atingir a imortalidade), o nosso Quinhentos literário teria tido dano insiste em vários lugares da própria obra e os descreve, co- não um clássico mas um autor bizarro a mais, tanto mais excêntri- menta e interpreta. Não só porque nele a observação factual do co quanto representativo de seu século. Em vez disso, perdido cientista e o raciocínio do matemático abrem espaço para uma vi- nas águas magnas da latinidade renascentista, permanece como vência dominada pelas premonições, pelos signos do destino as- uma leitura para eruditos: não porque seu latim seja desengonça- tral, pelos influxos mágicos, pelas intervenções dos demônios, mas do, como pretendiam seus de tratores (pelo contrário, quanto mais também porque a sua mente não exclui nenhum fenômeno da in- é elíptico e temperado de idiotismos, maior é o gosto de lê-Io), vestigação objetiva e menos ainda aqueles que afloram da subjeti- mas certamente porque o coloca como detrás de um vidro espes- vidade mais secreta. so. (Creio que a tradução mais recente é aquela publicada, em 1945, na \"Universale\" Einaudi.) É possível que algo dessa inquietude do homem Cardano te- nha reverberado através da tradução inglesa de seu latim pouco Escrevia não só enquanto cientista que deve comunicar suas cultivado: consideramos hoje bem significativo o fato de que a pesquisas, não só por ser polígrafo que tende à enciclopédia uni- fama européia que Cardano desfrutou como médico e que se re- versal, não só porque maníaco da escrita que insiste em encher fletirá na sorte de sua obra, transbordante em todos os campos uma folha depois da outra, mas também enquanto escritor que do saber, autorize a estabelecer um nexo Cardano-Shakespeare jus- persegue com as palavras algo que escapa à palavra. Eis uma pas- tamente às margens de sua ciência, no terreno vago que em se- sagem de memórias infantis que poderíamos incluir numa antologia guida será percorrido em todos os sentidos pelos exploradores ideal de precursores de Proust: a descrição de visões ou rêveries da psicologia, da introspecção, da angústia existencial e onde Car- de olhos abertos, fugas de imagens ou alucinações psicodélicas dano penetrou, numa época em que nada disso ainda tinha no- que - entre os quatro e os sete anos - o retinham de manhã me, nem sua investigação respondia a um propósito claro, mas enquanto espreguiçava na cama. Cardano tenta transmitir com a somente a uma contínua e obscura necessidade interior. máxima precisão o fenômeno inexplicável e simultaneamente o estado de ânimo de \"espetáculo divertido\" com o qual o viven- Este é o aspecto pelo qual nos sentimos próximos a Gerola- ciava. mo Cardano, no IV centenário de sua morte, sem em nada dimi- nuir a importância de suas descobertas, invenções e intuições que Via imagens aéreas que pareciam compostas de minúsculos anéis de lhe permitem figurar na história das ciências entre os pais funda- uma malha de ferro (\"loriga\"), embora eu jamais tivesse visto uma, dores de várias disciplinas, nem à sua fama de mago, de homem e que apareciam no canto direito ao pé da cama, subiam lentamente dotado de poderes misteriosos, que sempre carregou consigo'e traçando um semicírculo e desciam para o canto esquerdo onde de- que ele próprio cultivou amplamente, ora se vangloriando ora se sapareciam: castelos, casas, animais, cavalos com cavaleiros, ervas, mostrando surpreendido com isso. árvores, instrumentos musicais, teatros, homens vestidos de diferen- tes maneiras, sobretudo trombeteiros que tocavam seus instrumen- A autobiografia (De propria vita) que Cardano escreveu em tos, sem que se ouvisse som nem voz, e depois soldados, multidões, Roma pouco antes de morrer é o livro pelo qual ele vive para nós campos, formas nunca vistas anteriormente, selvas e bosques, uma como personagem e como escritor. Escritor falido, pelo menos quantidade de coisas que aconteciam sem confundir-se, porém meio para a literatura italiana, pois se tivesse tentado se exprimir em aos empurrões. Figuras diáfanas, mas não como formas vãs e inexis- língua vulgar (e certamente teria mostrado um italiano áspero e tentes, e sim ao mesmo tempo transparentes e opacas, figuras às acidentado no gênero do de Leonardo) em vez de teimar em redigir 85 84• POR QUE LER OS CLÁSSICOS GEROLAMO CARDANO • quais faltava só a cor para que se pudesse chamá-Ias de perfeitas e religião e as práticas devotas, as casas onde morou, a pobreza e que não eram produzidas só com ar. Divertia-me tanto apreciando os danos ao patrimônio, os perigos que correu e os acidentes, os esses milagres que certa vez minha tia me perguntou: \"O que está livros escritos, os diagnósticos e as terapias mais bem-sucedidas olhando?\", e eu silenciei, temendo que, se tivesse falado, a causa em sua carreira de médico etc. daquela pompa, fosse qual fosse, poderia degenerar e acabar com a festa. O relato cronológico de sua vida ocupa só um capítulo, bem pouco para uma vida tão movimentada. Mas muitos episódios são Esta passagem figura na autobiografia num capítulo concer- contados mais difusamente nos vários capítulos do livro, das aven- nente aos sonhos e às particularidades naturais fora do comum turas de jogador, na juventude (como logrou a golpes de espada que lhe couberam: ter nascido com cabelos compridos, o frio fugir da casa de um trapaceiro, patrício veneziano) e na idade ma- nas pernas durante a noite, os suores de manhã, o sonho repeti- dura (naquele tempo se jogava xadrez a dinheiro e ele era um en- do de um galo que parece a ponto de dizer algo terrível, ver xadrista imbatível a ponto de se ver tentado a deixar a medicina a lua a brilhar todas as vezes que ergue os olhos da página escri- para ganhar a vida jogando), à extraordinária viagem através da ta após ter resolvido um problema difícil, soltar cheiro de enxo- Europa para chegar à Escócia onde o arcebispo doente de asma fre e de incenso, não acontecer nunca, quando se acha numa esperava seus cuidados (após muitas tentativas, Cardano conse- briga, ser ferido ou ferir ou ainda ver feridas outras pessoas, tan- guiu obter melhorias proibindo ao religioso o travesseiro e o col- to que uma vez percebido esse seu dom (mas que conheceu chão de penas), à tragédia do filho decapitado por uxoricídio. vários desmentidos) se lança de coração leve em todas as bader- nas e tumultos. Cardano escreveu mais de duzentas obras de medicina, ma- temática, física, filosofia, religião, música. (Só não se avizinhou das Domina a autobiografia uma contínua preocupação por si mes- artes figurativas, como se a sombra de Leonardo, espírito seme- mo, pela unicidade da própria pessoa e pelo próprio destino, se- lhante ao seu sob tantos aspectos, bastasse para cobrir aquele cam- gundo a observância astrológica, razão pela qual o acúmulo de par- po.) Escreveu também um elogio de Nero, um estudo sobre a po- ticularidades díspares em que consiste o indivíduo encontra uma dagra, um tratado de ortografia, um tratado sobre os jogos de azar origem e uma razão na configuração do céu ao nascer. (De ludo aleae). Esta última obra também é importante como pri- meiro texto de teoria da probabilidade: como tal ele é estudado Delicado e doentio, Cardano exerce sobre a saúde uma trí- num livro norte-americano que, capítulos técnicos à parte, é mui- plice atenção: de médico, de astrólogo, de hipocondríaco ou, co- to rico em informações e agradável, e me parece o último estudo mo diríamos hoje, de psicossomático. E assim sua ficha clínica é publicado sobre ele até hoje (Oystein Ore, Cardano the gambling assaz minuciosa, das doenças que o mantêm muito tempo entre seholar, Princeton, 1953). a vida e a morte até minúsculas espinhas no rosto. \"The gambling scholar\", \"O douto jogador\": seria esse o se- Isso é matéria de um dos primeiros capítulos do De propria gredo dele? Certamente sua obra e sua vida parecem uma sucessão vita, que é uma autobiografia construída por temas: por exem- de partidas a serem jogadas uma por uma, para perder ou ganhar. plo, os pais (\"mater fuit iracunda, memoria et ingenio pollens, par- A ciência renascentista não parece mais ser para Cardano uma uni- vae staturae, pinguis, pia\"), o nascimento e seus astros, o retrato dade harmônica de macrocosmos e microcosmos, mas uma contí- físico (minucioso, impiedado e satisfeito numa espécie de narci- nua interação de \"acaso e necessidade\" que se reflete na infinita sismo ao contrário), a alimentação e os hábitos físicos, as virtudes variedade das coisas, na irredutível singularidade dos indivíduos e os vícios, as coisas que mais lhe dão prazer, a paixão dominante e dos fenômenos. Iniciou-se o novo caminho do saber humano, pelo jogo (dados, cartas, xadrez), a maneira de vestir, de andar, a 87 86• POR QUE LER OS CLAsSICOS o LIVRO DA NATUREZA destinado a desmontar o mundo parte por parte, 'mais do que EM CALILEU mantê-Io unido. A metáfora mais famosa na obra de Galileu - e que encerra \"Esta terna estrutura, a terra\", diz Hamlet, trazendo o livro na mão, \"me parece que se tornou uma estéril excrescência e a em si o nó da nova filosofia - é a do livro da Natureza escrito excelsa abóbada celeste, o firmamento solidamente suspenso so- em linguagem matemática. bre nós, majestoso teto marchetado de ouro flamejante, surge co- mo uma mistura explosiva de vapores perniciosos ... \" A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode 1976 entender se antes não se aprende a compreender a lingua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem 88 matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível para os homens entender suas palavras; sem eles é rodar em vão por um labirinto escuro. (Saggia- tore, 6) A imagem do livro do mundo já possuía uma longa história antes de Galileu, dos filósofos da Idade Média a Nicolas de Cues, a Montaigne, e era usada por contemporâneos de Galileu como Francis Bacon e Tommaso Campanella. Nas poesias de Campanella, publicadas um ano antes do Saggiatore, existe um soneto que co- meça com estas palavras: \"O mundo é o livro em que a inteligên- cia eterna escreve os próprios conceitos\". Já· na /storia e dimostrazioni intorno alle macchie solari (1613), ou seja, dez anos antes do Saggiatore, Galileu opunha a leitura direta (livro do mundo) à indireta (livros de Aristóteles). Essa passagem é muito interessante, pois Galileu aí descreve a 89• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O LIVRO DA NATUREZA EM GALILEU • pintura de Arcimboldo, com juízos críticos que valem para a pin- Tenho um pequeno livro muito menor que o de Aristóteles e de Oví- tura em geral (e testemunham suas ligações com artistas florenti- dio, no qual estão contidas todas as ciências, e com pouquíssimos nos como Ludovico Cigoli), e sobretudo com reflexões sobre a outros estudos se pode formar uma idéia bem perfeita: e isso é o análise combinatória que podem ser aproximadas daquelas que alfabeto; e não há dúvida de que aquele que souber combinar e or- serão lidas mais adiante. denar bem esta e aquela vogal com essas e aquelas outras consoan- tes obterá respostas muito verdadeiras para todas as dúvidas e daí Restam somente em contradição alguns severos defensores de cada extrairá os ensinamentos de todas as ciências e de todas as artes, jus- minúcia peripatética, os quais, daquilo que posso compreender, edu- tamente daquela maneira que o pintor partindo de simples cores di- cados e nutridos desde a primeira infância de seus estudos nesta opi- ferentes, separadamente colocadas sobre a tela, vai, com a mistura nião que o filosofar não seja, nem possa ser outra coisa senão fazer de um pouco desta com um pouco daquela e de outra mais, figuran- grande prática sobre os textos de Aristóteles, e assim prontamente do homens, plantas, fábricas, pássaros, peixes e, em suma, imitan- e em grande número possam acorrer de diferentes lugares e juntar- do todos os objetos visíveis, sem que na tela apareçam nem olhos se para examinar algum problema proposto, não querem mais saber nem penas nem escamas nem folhas nem seixos: antes é necessário de levantar os olhos daqueles papéis, como se esse grande livro do que nenhuma das coisas a serem imitadas ou certas partes delas es- mundo não fosse escrito pela natureza para ser lido por outros, a tejam atualmente entre as cores, querendo que com elas possam ser não ser por Aristóteles, e que seus olhos tivessem que ver por toda representadas todas as coisas, e que, se aí estivessem, por exemplo, a posteridade. Esses, que se sujeitam a leis tão estritas, me fazem lem- penas, estas só serviriam para pintar pássaros ou penachos. brar certas obrigações, às quais às vezes de brin,cadeira se restrin- gem os caprichosos pintores, em querer representar um rosto hu- Quando fala do alfabeto, Galileu pretende, portanto, um sis- mano ou outras figuras com a junção ora de instrumentos agrícolas tema combinatório em condições de dar conta de toda a multipli- ora somente de frutas ou de flores desta ou daquela estação, cujas cidade do universo. Também aqui vemos Galileu introduzir a com- bizarrices, embora propostas como divertimento, são belas e agra- paração com a pintura: a combinação das letras do alfabeto é o dáveis, e mostram maior perspicácia nesse artífice do que naquele, equivalente da combinação das cores na tela. Notar-se-á que se conforme ele tenha sabido mais adequadamente escolher e aplicar trata de uma combinação num nível diferente daquela da pintura isso ou aquilo à parte imitada; mas, se alguém, talvez por ter consu- de Arcimboldo na citação precedente: uma combinação de obje- mido todos os seus estudos em semelhante maneira de pintar, qui- tos já dotados de significado (quadro de Arcimboldo, col/age ou sesse depois universalmente concluir que qualquer outro modo de assemblage de penas, centenas de citações aristotélicas) não po- pintar seria imperfeito e criticável, certamente Cigoli e outros pin- de representar a totalidade do real; para chegar até aí é preciso tores ilustres ririam dele. recorrer a uma combinação de elementos mínimos, como as co- res simples ou as letras do alfabeto. A contribuição mais nova de Galileu à metáfora livro-mundo é a atenção ao seu alfabeto especial, aos \"caracteres nos quais es- Numa outra passagem do Diálogo (no final da primeira jor- tá escrito\". Pode-se então precisar que a verdadeira relação meta- nada) que faz o elogio das grandes invenções do espírito huma- fórica se estabelece, mais do que entre mundo e livro, entre mun- no, o lugar mais elevado toca ao alfabeto. Aqui de novo se fala do e alfabeto. Conforme esta passagem do Dialogo sopra i due de combinação e também de rapidez de comunicação: outro te- massimi sistemi dei mondo (segunda jornada), o alfabeto é que ma, o da rapidez, importantíssimo em Galileu. é o mundo: Mas sobre todas as invenções estupendas, que eminência de mente 90 foi aquela de quem imaginou encontrar modo de comunicar seus próprios pensamentos mais recônditos a qualquer outra pessoa, 91• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O LIVRO DA NATUREZA EM CALILEU • mesmo que distante por enorme intervalo de lugar e de tempo? fa- tentora universal, em grandeza supera tudo o mais, como regra e lar com aqueles que estão na Índia, falar com aqueles que ainda não manutenção de tudo deve também ser superior em nobreza. Porém, nasceram e só nascerão dentro de mil ou 10 mil anos? e com que se a ninguém jamais tocou em excesso diferenciar-se pelo intelecto facilidade? Com as várias junções de vinte pequenos caracteres num dos outros homens, Ptolomeu e Copérnico foram aqueles que tão pedaço de papel. Seja este o segredo de todas as admiráveis inven- elevadamente leram, se fixaram e filosofaram sobre a constituição ções humanas. do mundo. Se relermos a passagem do Saggiatore que citei no início à Um quesito que Galileu se coloca várias vezes para ironizar o luz do que acaba de ser transcrito, entenderemos melhor como velho modo de pensamento é o seguinte: as formas geométricas re- para Galileu a matemática e sobretudo a geometria têm uma fun- gulares devem ser consideradas mais nobres, mais perfeitas que as ção de alfabeto. Este ponto é explicitado numa carta de janeiro formas naturais empíricas, acidentadas etc. É sobretudo a propósi- de 1641 (um ano antes da morte) a Fortunio Liceti. to das irregularidades da Lua que a questão é discutida: existe uma carta de Galileu para Gallanzone Gallanzoni inteiramente dedica- Mas eu considero de fato que o livro da filosofia é aquele que está da ao tema; mas bastará citar a passagem do Saggiatore, 38: perpetuamente aberto diante de nossos olhos; mas, porque se en- contra escrito em caracteres diferentes daqueles do nosso alfabeto, E eu, quanto a mim, não tendo nunca lido as crônicas e as nobrezas não pode ser lido por todos: e são os caracteres de tal livro triângu- particulares das figuras, não sei quais delas são mais ou menos no- los, quadrados, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras bres, mais ou menos perfeitas; mas creio que todas sejam antigas e matemáticas, perfeitamente adequadas para tal leitura. nobres de algum modo ou, melhor dizendo, que quanto a elas pró- prias não são nem nobres nem perfeitas, nem ignóbeis e imperfei- Pode-se observar que, em sua enumeração das figuras, Gali- tas, senão enquanto para erguer paredes creio que as quadradas se- leu, mesmo tendo lido Kepler, não fala de elipses. Porque em sua jam mais perfeitas que as esféricas, mas para fazer rolar ou conduzir análise combinatória deve partir das formas mais simples? Ou por- carroças sejam mais indicadas as redondas que as triangulares. Mas, que sua batalha contra o modelo ptolomaico ainda se joga no in- voltando a Sarsi, ele diz que eu lhe ofereço inúmeros argumentos terior de uma idéia clássica de proporção e perfeição da qual o para provar a aspereza da superfície côncava do céu, porque eu pró- círculo e a esfera permanecem como as imagens soberanas? prio quero que a Lua e os outros planetas (corpos também eles ain- da celestes e bastante mais que o próprio céu nobres e perfeitos) O problema do alfabeto do livro da natureza está ligado ao sejam de superfície montanhosa, áspera e irregular; e, se isso é, por da \"nobreza\" das formas, como se vê nesta passagem da dedica- que não se deve dizer que tal desigualdade se encontra ainda na fi- tória do Dialogo sopra i due massimi sistemi ao grão-duque da gura celeste? Aqui pode o próprio Sarsi dar como resposta aquilo Toscana: que ele responderia a alguém que lhe quisesse provar que o mar de- Quem olha mais alto, se diferencia mais altamente; e voltar-se para veria estar cheio de espinhas e de escamas, pois assim são as baleias, o grande livro da natureza, que é o próprio objeto da filosofia, é os atuns e os outros peixes que o habitam. o modo para erguer os olhos: livro no qual, embora tudo aquilo que se lê, como obra do Artífice onipotente, seja por isso extremamente Enquanto partidário da geometria, Galileu deveria apoiar a proporcionado, aquele mesmo assim é mais expedito e mais digno, causa da superioridade das formas geométricas, mas enquanto ob- onde maior, em nossa opinião, parece a obra e o artifício. A consti- servador da natureza ele recusa a idéia de uma perfeição abstrata tuição do universo, dentre os naturais apreensíveis, no meu enten- e opõe a imagem da Lua \"montanhosa, áspera e desigual\" à pure- der, pode ser colocada em primeiro lugar: pois se aquela, como con- za dos céus da cosmologia aristotélico-ptolomaica. 92 93• POR QUE LER OS CLÁSSICOS O LIVRO DA NATUREZA EM GALILEU • Por que uma esfera (ou uma pirâmide) deveria ser mais per- Se associarmos o discurso sobre o alfabeto do livro da natu- feita que uma forma natural, por exemplo, a de um cavalo ou de reza a este elogio das pequenas alterações, mutações etc. vemos que a verdadeira oposição se situa entre imobilidade e mobilida- um gafanhoto? A questão é recorrente em todo o Dialogo sopra de, e é contra uma imagem de inalterabilidade da natureza que i due massimi sistemi. Nesta passagem da segunda jornada volta- Galileu toma partido, evocando a carranca de Medusa. (A mesma mos a encontrar a comparação com o trabalho do artista, aqui o imagem e argumento já se achavam presentes no primeiro livro escultor: \"Contudo, gostaria de saber se a mesma dificuldade se astronômico de Galileu, /storia e dimostrazioni intorno alle mac- chie solari.) O alfabeto geométrico ou matemático da natureza será encontra ao representar um sólido de qualquer outra figura, isto aquele que, baseando-se em sua capacidade de ser decomposto é, para explicar melhor, se maior dificuldade se encontra em que- em elementos mínimos e de representar todas as formas do mo- rer reduzir um pedaço de mármore à figura de uma esfera perfeita vimento e da mudança, cancela a oposição entre céus imutáveis do que a uma perfeita pirâmide ou a um perfeito cavalo ou então e elementos terrestres. a um perfeito gafanhoto\". A dimensão filosófica desta operação está bem ilustrada por Uma das páginas mais belas e importantes do Dialogo (pri- esta fala do Dialogo entre o ptolomaico Simplicio e Salviati, porta- meira jornada) é o elogio da Terra como objeto de alterações, mu- voz do autor, em que retorna o tema da \"nobreza\": tações, gerações. Galileu evoca com espanto a imagem de uma Ter- ra de jaspe, de uma Terra de cristal, de uma Terra incorruptível, SIMP.: Este modo de filosofar tende à subversão de toda a filosofia como petrificada pela Medusa. natural e a desordenar e arruinar o céu, a Terra e todo o universo. Mas acredito que os fundamentos dos peripatéticos sejam tais que Não posso sem grande admiração, e direi grande repugnância para não há perigo de que com a ruína eles possam construir novas meu intelecto, ouvir atribuições de grande nobreza e perfeição aos ciências. corpos celestes e integrantes do universo por serem impassíveis, imu- SALV.: Não se preocupe com o céu nem com a Terra, nem tema sua táveis, inalteráveis etc., e ao contrário considerar grande imperfeição subversão, como tampouco da filosofia; porque, quanto ao céu, é ser alterável, capaz de gerar, mutável etc.: julgo a Terra nobilíssima vão que temam aquilo que vocês mesmos consideram inalterável e e admirável pelas tantas e tão diversas alterações, mutações, gerações impassível; quanto à Terra, tratamos de nobilitá-Ia e aperfeiçoá-Ia, etc. que nela incessantemente ocorrem; e quando, sem estar sujeita enquanto procuramos fazê-Ia semelhante aos corpos celestes e de a nenhuma mutação, ela fosse toda uma vasta solidão de areia ou massa certo modo colocá-Ia quase no céu, de onde os seus filósofos a ex- de jaspe ou que, no tempo do dilúvio, congelando-se as águas que pulsaram. a cobriam se transformasse num globo imenso de cristal, onde não nascesse nem se alterasse ou mudasse coisa nenhuma, eu a conside- 1985 raria um corpanzil inútil no mundo, cheio de ócio e, para usar pou- cas palavras, supérfluo e como se não estivesse na natureza e não fa- 95 ria diferença entre estar viva Ou morta; e o mesmo digo sobre a Lua, Júpiter e todos os outros globos do mundo. (...] Esses que tanto exal- tam a incorruptibilidade, a inalterabilidade etc. creio que se reduzem a dizer tais coisas pelo grande desejo de viver muito e pelo terror que têm da morte; e não consideram que, quando os homens fossem imor- tais, não Ihes tocaria vir ao mundo. Estes mereceriam encontrar-se nu- ma cabeça de Medusa, que os transformasse em estátua de jaspe ou de diamante, para tornar-se mais perfeitos do que são. 94CYRANO NA LUA CYRANO NA LUA • Na época em que Galileu entrava em choque com o Santo Então aquele grande fogot tornando a fundir todos os corpos, irá lançá-Ias desordenadamente de todos os lados como antes e, tendo Ofício, um de seus partidários parisienses propunha um sugesti- se purificado pouco a pouco, começará a servir de Sol aos planetas vo modelo de sistema heliocêntrico: o universo é feito como uma que há de gerar, lançando-os fora de sua esfera. cebola, que \"conserva, protegida por cem películas que a envol- vem, o precioso broto do qual 10 milhões de outras cebolas irão Quanto ao movimento da Terra, são os raios do Sol que, \"vin- tirar sua essência ... O embrião, na cebola, é o pequeno Sol deste do a golpeá-Ia, com sua circulação fazem-na girar como fazemos pequeno mundo, que aquece e nutre o sal vegetativo de toda a girar um globo golpeando-o com a mão\", ou então são os vapo- massa\" . res da própria Terra aquecida pelo Sol que, \"batidos pelo frio das regiões polares, caem-lhe por cima e, só podendo atingi-Ia de la- Com aqueles milhões de cebolas, do sistema solar passamos do, fazem com que ela gire em círculo\". àquele dos infinitos mundos de Giordano Bruno; de fato, todos esses corpos celestes \"que se vêem ou não se vêem, suspensos Este imaginoso cosmógrafo é Savinien de Cyrano (1619-55), no azul do universo, não passam da espuma dos sóis que se depu- mais conhecido como Cyrano de Bergerac, e a obra aqui citada ram. Como poderiam subsistir esses grandes fogos, se não fossem é Histoire comique des états et empires de ta Lune. alimentados por alguma matéria que os nutre?\". Este processo es- pumígero afinal não é muito diferente de como hoje nos expli- Precursor da ficção científica, Cyrano nutre suas fantasias com cam a condensação dos planetas da nebulosa primordial e as mas- os conhecimentos científicos da época e com as tradições mági- sas estelares que se contraem e se expandem: cas renascentistas e, assim fazendo, produz antecipações que so- mente nós, mais de três séculos depois, podemos apreciar como Todo dia, o Sol descarrega e se purga dos restos da matéria que ali- tais: os movimentos do astronauta que se livrou da força da gravi- menta o seu fogo. Mas quando tiver consumido inteiramente a ma- dade (ele chega a isso mediante gotas de orvalho que são atraídas téria de que é composto, expandir-se-á de todos os lados para bus- pelo Sol), os foguetes em vários estágios, os \"livros sonoros\" car outro alimento e se propagará para todos os mundos que um (carrega-se o mecanismo, coloca-se uma agulha sobre o capítulo dia construíra e em particular aqueles que estiverem mais próximos. desejado, ouvem-se os sons que saem de uma espécie de boca). 96 Mas sua imaginação poética nasce de um verdadeiro senti- mento cósmico e o leva a imitar as comovidas evocações do atomismo lucreciano; assim ele celebra a unidade de todas as coisas, inanimadas ou vivas, e também os quatro elementos de Empédocles são um único, com os átomos ora mais rarefeitos ora mais densos. Vocês se maravilham de como esta matéria misturada confusamen- te, dependendo do acaso, pode ter constituído um homem, visto que havia tantas coisas necessárias para a construção de seu ser, mas não sabem que cem milhões de vezes essa matéria, quando estava a ponto de produzir um homem, se deteve para formar, ora uma pedra, ora chumbo, ora coral, ora uma flor, ora um cometa, para as excessivas ou muito poucas figuras que eram necessárias para pro- jetar um homem. <;7

• POR QUE LER OS CLÁSSICOS CYRANO NA LUA • Esta combinação de figuras elementares que determina a va- também tomam cuidados especiais em relação às hortaliças: só co- riedade das formas vivas liga a ciência epicuriana à genética do mem repolhos mortos de morte natural, pois decapitar um repo- lho é um assassinato para eles. De fato, nada nos garante que os DNA. homens, depois do pecado de Adão, sejam mais queridos por Deus que os repolhos nem que esses últimos sejam mais dotados de sen- OS sistemas para ir à Lua já oferecem uma amostragem da in- sibilidade e beleza e feitos mais à imagem e semelhança de Deus. ventividade cyranesca: o patriarca Enoch amarra sob as axilas dois \"Portanto. se nossa alma não é mais o Seu retrato, não nos pare- vasos cheios de fumaça de um sacrifício que deve subir ao céu; cemos mais com Ele por causa das mãos, da boca, da testa, das o profeta Elias realizou a mesma viagem instalando-se numa pe- orelhas que a planta por causa das folhas, das flores, do pedúnculo, quena embarcação de ferro e lançando para o ar uma bola iman- do talo e da cabeça do repolho.\" E quanto à inteligência, mesmo tada; quanto a ele, Cyrano, tendo untado com ungüento à base admitindo que os repolhos não tenham uma alma imortal, talvez de miolo de boi as amassaduras resultantes das tentativas prece- participem de uma inteligência universal e se de seus conhecimen- dentes, sentiu-se erguido na direção do satélite, porque a Lua cos- tos ocultos jamais se nos revelou nada talvez seja só porque não tuma sugar o miolo dos animais. estejamos à altura de receber as mensagens que nos mandam. A Lua abriga entre outras coisas o Paraíso impropriamente cha- Qualidade intelectual e qualidade poética convergem em Cyra- mado de terrestre, e Cyrano cai justamente sobre a Árvore da no e fazem dele um escritor extraordinário, no Seiscentos francês Vida, emplastando a cara com uma das famosas maçãs. Quanto e em termos absolutos. Intelectualmente é um \"libertino\", um po- à serpente, depois do pecado original, Deus a relegou ao corpo lemista envolvido na confusão que está mandando para os ares do homem: é o intestino, serpente enrolada sobre si mesma, ani- a velha concepção do mundo: é partidário do sensualismo de Gas- mal insaciável que domina o homem e o condiciona aos seus de- sendi e da astronomia de Copérnico, mas é nutrido sobretudo pela sejos e o dilacera com seus dentes invisíveis. \"filosofia natural\" do Quinhentos italiano: Cardano, Bruno, Cam- panella. (Quanto a Descartes, será em Histoire comique des états Esta explicação é dada pelo profeta Elias a Cyrano, que não et empires du Soleil, seguido do livro sobre a Lua, que Cyrano sabe conter uma salaz variação sobre o tema: a serpente é tam- o encontrará e fará com que seja acolhido naquele empíreo de bém aquela que sai do ventre do homem e se lança para a mulher Tommaso Campanella, que vai ao encontro dele e o abraça.) a fim de espirrar seu veneno nela, provocando um inchaço que dura nove meses. Mas Elias de fato não gosta dessas brincadeiras Literariamente, é um escritor barroco (suas \"cartas\" contêm de Cyrano e, diante de uma impertinência mais grave que as ante- trechos de virtuose, como a Descrição de um cipreste, em que riores, expulsa-o do Éden. O que demonstra que nesse livro todo se diria que o estilo e o objeto descrito se tornam a mesma coisa) jocoso há brincadeiras que podem ser consideradas verdades e e sobretudo é escritor até o fundo, que não quer tanto ilustrar uma outras que não são ditas a sério, embora não seja fácil distingui-Ias. teoria ou defender uma tese quanto pôr em movimento um car- rossel de invenções que equivalem, no plano da imaginação e da Cyrano expulso do Éden visita as cidades da Lua: algumas mó- linguagem, àquilo que a nova filosofia e a nova ciência estão co- veis, com casas sobre rodas que podem mudar de aparência em locando em movimento no plano do pensamento. Em seu His- cada estação; outras sedentárias, parafusadas no solo, onde podem toire ... Lune não é a coerência das idéias que conta, mas o diver- enterrar-se durante o inverno para proteger-se das intempéries. timento e a liberdade com que ele se vale de todos os estímulos Terá como guia uma personagem que esteve na Terra várias ve- zes em séculos diferentes: é o \"demônio de Sócrates\" do qual Plu- 99 tarco falou num pequeno livro seu. Esse sábio espírito explica por que os habitantes da Lua não só se abstêm de comer carne, mas 98