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Uploaded at 2021-09-24 14:04 This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button. 1 Nada vive isolado, todo mundo empresta a todo mundo: este grande esforço de simpatias é universal e constante. Philarète Chasles Prof. Dr. Ozíris Borges Filho (org.) 2 CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2004. 1 LITERATURA COMPARADA: OS PRIMÓRDIOS Na babel do comparativismo À primeira vista, a expressão “literatura comparada” não causa problemas de interpretação. Usada no singular mas geralmente compreendida no plural, ela designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas. No entanto, quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como “estudos literários comparados”, percebemos que essa denominação acaba por rotular investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto campo de atuação. Paralelamente a um denso bloco de trabalhos que examinam a migração de temas, motivos e mitos nas diversas literaturas, ou buscam referências de fontes e sinais de influências, encontramos outros que comparam obras pertencentes a um mesmo sistema literário ou investigam processos de estruturação das obras. A diversidade desses estudos acentua a complexidade da questão. Além disso, a dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura comparada, seus objetivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre o assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e de orientações metodológicas. Muitos fogem a essas questões. Outros dão conta das tendências tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Alguns tendem a uma conceituação generalizadora. E há ainda os que preferem restringir a determinados aspectos o alcance dos estudos literários comparados. Como se vê, não é fácil caminhar nessa “babel”. E o sentido da expressão “literatura comparada” complica-se ainda mais ao constatarmos que não existe apenas uma orientação a ser seguida, que, por vezes, é adotado um certo ecletismo metodológico. Em estudos mais recentes, vemos que o método (ou métodos) não antecede à análise, como algo previamente fabricado, mas dela decorre. Aos poucos torna-se mais claro que literatura comparada não pode ser entendida apenas como sinônimo de “comparação''. Antes de tudo, porque esse não é um recurso exclusivo do comparativista. Por outro lado, a comparação não é um método específico, mas um procedimento mental que 3 favorece a generalização ou a diferenciação. É um ato lógico-formal do pensar diferencial (processualmente indutivo) paralelo a uma atitude totalizadora (dedutiva). Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso, valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem corrente, onde o exemplo dos provérbios ilustra a freqüência de emprego do recurso. A crítica literária, por exemplo quando analisa uma obra, muitas vezes é levada a estabelecer confrontos com outras obras de outros autores, para elucidar e para fundamentar juízos de valor. Compara, então, não apenas com o objetivo de concluir sobre a natureza dos elementos confrontados mas, principalmente, para saber se são iguais ou diferentes. É bem verdade que, na crítica literária, usa-se a comparação de forma ocasional, pois nela comparar não é substantivo. No entanto, quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo-se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método — e começamos a pensar que tal investigação é um “estudo comparado”. Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim. Mas, embora ela não seja exclusiva da literatura comparada, não podendo, então, por si só defini-la, será seu emprego sistemático que irá caracterizar sua atuação. No entanto, ainda que já se esteja tentando abrir clareiras no emaranhado das definições, não convém adiantá-las. Espera-se que elas surjam naturalmente das considerações posteriores. Vamos, agora, retroagir na trajetória dos estudos comparados para que se possa compreender como a expressão “literatura comparada” começou a ser empregada, que significados foi adquirindo, até se difundir amplamente com as acepções que hoje lhe damos. Breve história O surgimento da literatura comparada esta vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante nas ciências naturais. 4 Entretanto, o adjetivo “comparado”, derivado do latim comparativus, já era empregado na Idade Média. Em 1598, Francis Meres utiliza-o no título de seu Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos, e vamos também encontrá-lo em designações de obras dos séculos XVII e XVIII. Em 1602, William Fulbecke publica Um discurso comparado das leis e, logo depois, surge a Anatomia comparada dos animais selvagens, da autoria de John Gregory. Mas é, sem dúvida, no século XIX que a difusão do termo realmente se dará, sob a inspiração das Lições de anatomia comparada, de Cuvier (1800), da História comparada dos sistemas de filosofia, de Degérand (1804), e da fisiologia comparada (1833), de Blainville. Freqüente, portanto, nos títulos de obras científicas e caracterizando-lhes a orientação, a comparação se transfere para os estudos literários por uma espécie de contágio. Na obra Da Alemanha (1800), de Mme. de Stäel, a inclinação ao estabelecimento de analogias não só norteará o espírito da investigação como estará presente no subtítulo: “Da literatura considerada em suas relações com as instituições sociais”. Em território francês Embora empregada amplamente na Europa para estudos de ciências e lingüística, é na França que mais rapidamente a expressão “literatura comparada” irá se firmar. Ali o emprego do termo “literatura” para designar um conjunto de obras era aceito sem discussão desde o seu aparecimento, com essa acepção, no Dictionnaire philosophique de Voltaire, enquanto na Inglaterra e na Alemanha a palavra “literatura” custou mais a ganhar esse conceito. Já em 1816, os autores Noël e Laplace publicam uma série de antologias de diversas literaturas, sob o rótulo geral de Curso de literatura comparada. Apesar do título, trata-se apenas de uma coletânea de trechos escolhidos, sem nenhuma preocupação em confrontá-los. Parece ter sido Abel-François Villemain quem se encarregou de divulgar a expressão, usando-a nos cursos sobre literatura do século XVIII que ministrou na Sorbonne em 1828-1829. Em sua obra Panorama da literatura francesa do século XVIII, emprega varias vezes não só a combinação “literatura comparada” como ainda “panoramas comparados”, “estudos comparados” e “história comparada”. Também J.-J. Ampère, em seu Discurso sobre a História da poesia (1830), refere-se à “história 5 comparativa das artes e da literatura” e reemprega o termo no título da obra de 1841, História da literatura francesa na Idade Média comparada às literaturas estrangeiras. É graças a Ampère que a expressão ingressa na órbita da crítica literária, via Sainte-Beuve, que faz o elogio fúnebre desse autor na Revue des Deux Mondes, considerando-o o fundador da “história literária comparada”. No entanto, para que se complete a descrição do contexto francês, no qual se consolida em definitivo a inclinação comparativista aplicada à literatura, há que acrescentar a esses dois nomes o de Philarète Chasles, que, em 1835, se encarrega de formular alguns princípios básicos do que considerava ser uma “história literária comparada”. Diz ele: Nada vive isolado, todo mundo empresta a todo mundo: este grande esforço de simpatias é universal e constante1. Parte daí para propor uma visão conjunta da história da literatura, da filosofia e da política nos cursos ministrados por ele no Collège de France (1841). Estão aí já esboçadas as noções tanto de vinculação entre literatura comparada e historiografia literária quanto de empréstimo, que, como veremos, caracterizarão os estudos comparados considerados clássicos. Não é de surpreender, então, que a primeira cátedra de literatura comparada surja na França, em Lyon, em 1887, seguida pela criação de outra, na Sorbonne, em 1910. Nesses dois locais atuaram grandes comparativistas, como Joseph Texte, Fernand Baldensperger e J.-M. Carré. O rápido desenvolvimento do comparativismo literário na França foi favorecido pela ruptura com as concepções estáticas e com os juízos formulados em nome de valores reputados intemporais e intocáveis, preconizada pelo historicismo dominante. A difusão da literatura comparada coincide, portanto, com o abandono do predomínio do chamado “gosto clássico”, que cede diante da noção de relatividade, já estimulada, desde o século XVII, pela “Querelle des anciens et des modernes”. Nesse contexto, as noções de evolução, continuidade e derivação integram-se com facilidade aos ideais “cosmopolitas” vigentes, sendo animadas, ainda, pela visão romântica, que, na sua busca de exotismo, alimentou o interesse por literaturas diferentes. Em outros países Na Alemanha, parece ter sido Moriz Carrière quem adota, pela primeira vez, a 1 Transcrito de BRUNEL, P.; PICHOIS, C.; ROUSSEAU, A.-M. Qu’est-ce que la littérature comparée? Paris : Armand Colin, 1983. p. 19. 6 expressão “vergleichende Literaturgeschichte” (história comparativa da literatura), depois difundida como “vergleichende Literaturwissenschaft” (ciência comparativa da literatura). A intenção de Carrière, que se ocupou da evolução da poesia, era de integrar a literatura comparada à História Geral da Civilização. É ainda em Berlim que surge o primeiro periódico da disciplina comparativista, o Zeitschrift der vergleichenden Literaturgeschichte (1887-1910), editado por Max Koch. Na Inglaterra, cabe a Hutcheson Macaulay Posnett a primazia do uso da expressão, em 1886, num livro teórico, intitulado Comparative Literature. Na Itália, De Sanctis lecionará literatura comparada em Nápoles a partir de 1863. Já os Estados Unidos esperarão a virada do século para verem surgir os estudos comparados, sendo criados Departamentos de Literatura Comparada nas universidades de Columbia (1899) e Harvard (1904). Tendo adotado inicialmente as orientações francesas, o comparativismo norte-americano será marcado depois pelos estudos de Irving Babbitt. Em Portugal há que referir, depois do “precursor” Teófilo Braga, o estudo “Literatura comparada e crítica de fontes’’ de Fidelino de Figueiredo, inserido em seu livro A crítica literária como ciência (1912), como trabalho pioneiro no enfoque da questão metodológica”. Literatura comparada e literatura geral Indiferente aos locais onde se expandiu, a literatura comparada preservou a denominação com que os franceses a divulgaram, mesmo sendo imprecisa e ambígua. Por isso, muitas vezes sofre a competição da expressão “literatura geral”, também de uso corrente em francês e em inglês, com a qual é freqüentemente associada. Estão ambas, por exemplo, nas denominações de associações de comparativistas (veja-se a ''Société Française de Littérature Générale et Comparée”) ou de publicações especializadas, como Cahiers de Littérature Générale et Comparée, caracterizando uma atuação conjunta de estudiosos das duas disciplinas. A distinção entre as duas expressões tem constituído ponto de discussão permanente. Alguns autores consideram a literatura geral como um campo mais amplo, que abarcaria o dos estudos comparados. Outros, como René Wellek e o francês Etiemble2, não estabelecem diferença entre elas. À denominação “literatura geral” também é associada a de “literatura mundial”, mais conhecida pelo termo Weltliteratur, cunhado por Goethe em 1827. Embora se tenha 2 ETIEMBLE. Ensayos de literatura (verdaderamente) general. Madrid: taurus, 1977. (Essais de littérature (vraiment) générale. Paris : Gallimard, 1974.) 7 prestado a várias interpretações, esse termo foi utilizado por Goethe em oposição à expressão “literaturas nacionais”, para ilustrar sua concepção de uma literatura de “fundo comum”, composta pela totalidade das grandes obras, espécie de biblioteca de obrasprimas. Mas, além desse significado, podemos entender ainda o termo, de acordo com o pensamento de Goethe, como a possibilidade de interação das literaturas entre si, corrigindo-se umas às outras. Como já se disse, o emprego da palavra por Goethe ganhou inúmeras interpretações, mas importa aqui acentuar que a aproximação entre as expressões “literatura comparada” e “literatura geral” deixa transparecer ainda o espírito de cosmopolitismo literário que favoreceu o surgimento de ambas no século XIX. As propostas clássicas É nos primeiros decênios deste século que a literatura comparada ganha estatura de disciplina reconhecida, tornando-se objeto de ensino regular nas grandes universidades européias e norte-americanas e dotando-se de bibliografia específica e publicações especializadas. Se remontarmos aos estudos considerados clássicos neste campo e a propostas como a que está expressa no primeiro número da Revue de Littérature Comparée, criada em 1921 por Fernand Baldensperger e Paul Hazard, veremos que, na época, os estudos comparados seguiam duas orientações básicas e complementares. A primeira era a de que a validade das comparações literárias dependia da existência de um contato real e comprovado entre autores e obras ou entre autores e países. A identificação de tais contatos abria caminho para os estudos de fontes e de influências; com isso, as investigações que se ocupavam em estabelecer filiações e em determinar imitações ou empréstimos recebiam grande impulso. Ao mesmo tempo, crescia o interesse pelo acompanhamento do destino das obras, a “fortuna crítica” delas fora do país de origem. Multiplicavam-se as publicações do tipo “Goethe na França”, “Taine e a Inglaterra”. A segunda orientação determinava a definitiva vinculação dos estudos literários comparados com a perspectiva histórica. Nesse contexto, a literatura comparada passa a ser vista como um ramo da história literária. Tal vinculação se deve ao fato de a nova disciplina ter atraído de pronto a atenção de historiadores literários, como Ferdinand Brunetière. Este, ao ministrar um curso de literatura comparada em 1890-1891, lança os pressupostos de uma história dos grandes movimentos literários no mundo ocidental com base na comparação entre eles. Outro conhecido historiador literário francês, Gustave Lanson, investiga, na mesma época, a influência da literatura espanhola nas letras 8 clássicas francesas e Emile Faguet, ao dirigir a Revue Latine, de 1902 a 1908, adotará, como subtítulo da publicação, “journal de Littérature Comparée”. As grandes “escolas” As duas orientações referidas estão na base do corpo de doutrina do comparativismo clássico francês. A maioria dos manuais adota a denominação “escola francesa” para designar um grupo representativo de estudos onde predominam as relações “causais” entre obras ou entre autores, mantendo uma estreita vinculação com a historiografia literária. Assim, a designação indica menos uma restrição geográfica do que a adoção de determinados princípios, que assumiram também caráter doutrinário em vários países, pois o comparativismo literário foi dominado por personalidades francesas durante muito tempo. A denominação “escolas” começou justamente a ser empregada quando René Wellek se opôs ao historicismo dominante nos estudos comparados dos mestres franceses, sugerindo uma cisão entre a suposta “escola” francesa e outra, norteamericana. O emprego do termo, portanto, sugere a formação de dois blocos radicalmente diferentes. No entanto, a incompatibilidade entre eles não é tão grande quanto se poderia supor, pois entre os comparativistas norte-americanos há muitos de orientação historicista e, por outro lado, a mais recente publicação sobre a produção comparativista na França, o volume intitulado La recherche en littérature générale et comparée en France (Aspects et problèmes)3 (1983) atesta a multiplicidade de orientações seguidas e os variados campos de atuação dos estudiosos franceses. Paralelamente a trabalhos que perpetuam as feições mais convencionais, há os que renovam as orientações clássicas, sobretudo no domínio da mitopoética. Por isso, ao utilizar o termo “escolas” é preciso ter em conta esses aspectos e que a intenção classificatória só tem sentido com relação a uma feição “clássica” dos estudos literários comparados. Ao lado da orientação francesa, também se costuma designar como “escolas” a norte-americana e a soviética. A primeira, despojada de inflexões nacionalistas, distingue-se da francesa por seu maior ecletismo, absorvendo com facilidade noções teóricas, em particular os princípios que regeram o new criticism — movimento crítico que se desenvolveu a partir dos anos 30 nos Estados Unidos. Além de privilegiar a análise do texto literário em detrimento das relações entre 3 PAGEAUX, Daniel-Henri. (org.). Paris: S.F.L.G.C., 1983. 9 autores ou obras, os comparativistas norte-americanos aceitam os estudos comparados dentro das fronteiras de uma única literatura, atuação recusada pela doutrina clássica francesa. Sem ter um programa (ou doutrina) estabelecido, os comparativistas norteamericanos têm em René Wellek seu porta-voz mais expressivo. As reflexões de Wellek adquiriram, muitas vezes, caráter polêmico e foram responsáveis pela cisão mencionada entre as duas orientações básicas, fortalecendo as divergências entre elas. Os comparativistas soviéticos, que têm em Victor Zhirmunsky uma de suas figuras exponenciais, adotam, como princípio básico, a compreensão da literatura como produto da sociedade. Preocupam-se, sobretudo, em distinguir entre analogias tipológicas e importações culturais (outra forma de designar as “influências”), que correspondem sempre a situações similares na evolução social. Entre eles, destaca-se o tcheco Dionýz Durisin, herdeiro do estruturalismo de Praga, cuja contribuição detalharemos mais adiante. Cabe ainda referir aqui que a investigação comparativista na Alemanha, dominada sobretudo por um critério de unidade, na tradição legada por Goethe e por todo o romantismo alemão, orientou-se inicialmente para os estudos de temas, motivos e personagens literários que circulam na literatura de vários séculos ou de vários países. Atualmente, volta-se para estudos de imagologia, de casos fronteiriços e de relações literárias, tendo, entre outros centros, desenvolvido esses estudos nos setores comparatistas de Aachen e Bayreuth. Façamos, agora, a leitura de alguns manuais para que as referências esboçadas fiquem claras através das obras de caráter didático que sintetizam as diferentes orientações. 10 2 AS CONTRIBUIÇÕES DIDÁTICAS Os manuais franceses O caráter normativo da orientação francesa decorre da existência de grande número de livros sobre literatura comparada, responsáveis pela difusão de suas propostas em vários países. A inclinação para a ordenação de dados e a fixação de noções norteadoras já caracterizam, por exemplo, a obra clássica de Paul Van Tieghem, publicada em 1931.4 O autor define o objeto da literatura comparada como o estudo das diversas literaturas em suas relações recíprocas. Van Tieghem distingue literatura comparada de literatura geral, considerando a primeira mais analítica e responsável por estudos binários. A literatura geral corresponderia a uma visão mais sintética, podendo abarcar o estudo de várias literaturas. Na proposta de Van Tieghem, a literatura comparada passa a ser uma análise preparatória aos trabalhos de literatura geral. Na verdade, a intenção do autor era elaborar uma História Literária Internacional, que se organizaria em três etapas: a história das literaturas nacionais, a literatura comparada (que se ocuparia com a investigação de afinidades) e, finalmente, a literatura geral, que sintetizaria os dados antes colhidos. Essa proposta manifesta um interesse humanístico ao desejar esclarecer “os laços espirituais que unem tantos homens de uma mesma geração”. Van Tieghem via na literatura geral uma dupla vantagem: antes de tudo permite, melhor ainda que a Literatura Comparada, ao historiador literário de uma nação compreender mais plenamente um escritor, uma obra, ao observá-lo mergulhado no meio literário internacional ao qual ele pertence; em seguida, é por si mesma uma disciplina histórica das mais penetrantes e eficazes (p. 175). Essa rápida transcrição já permite que se veja que o autor confere à literatura comparada um caráter complementar, tornando-a subsidiária da historiografia literária e da literatura geral. A atuação do comparativista, desse modo, ficaria restrita à pesquisa de “fatos comuns a duas literaturas parecidas”. Não é outra a orientação que irá predominar entre vários comparativistas franceses, sendo adotada, por exemplo, por Simon Jeune5 e Jean-Marie Carré. Este último assim se expressa: 4 5 La littérature comparée. Paris: Armand Colin, [1931] 1946. Littérature générale et littérature comparée. Paris : Minard, 1968. 11 A literatura comparada é um ramo da história literária: é o estudo das relações espirituais entre as nações, relações de fato que existiram entre Byron e Puchkin, Goethe e Carlyle, Walter Scott e Vigny, entre as obras, as inspirações, até entre as vidas de escritores pertencentes a várias literaturas.6 Como se vê, J.-M. Carré prolonga as orientações de Van Tieghem, reforçando a inclinação historicista nos estudos comparados em detrimento de uma perspectiva de crítica textual. Assim dirá Carré que a literatura comparada não considera essencialmente as obras no seu valor original, mas dedicase principalmente às transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos. Mesmo que já não professe o binarismo nos estudos comparados, defendido por Van Tieghem, Carré adere aos princípios básicos que seu antecessor advoga. Contudo, não foi só na França que a bíblia de Van Tieghem teve seguidores. No Brasil, seu discípulo mais fiel foi Tasso da Silveira, que é autor de um manual brasileiro. Interessa ver, portanto, logo a seguir, em que aspectos Tasso da Silveira segue as lições do “mestre”. O manual brasileiro Tasso da Silveira, em seu livro Literatura comparada7, sintetiza sua atuação como professor da “nova” disciplina na então Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette (depois Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade da Guanabara). Sua adesão a Van Tieghem é integral, sendo que a obra de 1931 lhe fornece os dados fundamentais de suas propostas comparativistas. Portanto, o que se vinha mencionando como orientação clássica francesa encontra no Brasil um de seus mais fervorosos seguidores. Na esteira de Van Tieghem, F. Baldensperger, Fr. Loliée e A. Dupouy. Tasso da Silveira insistirá na busca de fontes e de influências, ocupando-se com casos de imitações ou empréstimos. Para ele, em literatura comparada procedem-se a comparações de caráter especial e com finalidade positiva. Com a finalidade, extremamente fecunda para a história do espírito, de verificar a filiação de uma obra ou de um autor a obras e autores estrangeiros, ou de um momento literário ou da literatura interna de um país a momentos literários ou a literaturas de outros países (p. 15). Em todas as importações passivas, as idéias são aceitas sem contestação. O livro de Tasso da Silveira não foge à regra: absorve integralmente as sugestões de seus mestres franceses, cuja receita era pesquisar influências, buscar identidades, ou diferenças, restringindo o alcance da literatura comparada ao terreno das aproximações 6 CARRÉ, J.-M. Prefácio. In: GUYARD, M.-F. A literatura comparada. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1956. p. 7. 7 Rio de Janeiro: GRD, 1964. 12 binárias e à constituição de “famílias literárias”. A terminologia que adota corresponde aos objetivos traçados: refere-se a “indícios reveladores”, “filiação”, “importação”, “reações provocadas”, ''fontes”. Dentro dessa mesma orientação e para poder dar conta dela, traça o perfil do comparativista como um super-homem da erudição, o qual detém não só o conhecimento amplo de várias línguas como o das respectivas literaturas, acrescidos de conhecimentos sobre relações políticas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas, artísticas e literárias, abrangendo as traduções e os dados de recepção da obra em um público dado (p. 37). A esse estudioso de saber enciclopédico não deveria faltar a freqüência das obras menores, daqueles autores que a história literária apenas refere. A formação, portanto, do comparativista se dá mais em termos de bagagem, de erudição do que de adestramento em técnicas de análise. Sua tarefa é, sobretudo, a da caça de indícios. Não é difícil entender, então, por que qualifica o comparativista de crítico sui generis a quem diretamente não incumbe a análise da obra literária em sua estruturação intrínseca, nem a exegese dos sentidos múltiplos dessa obra (p. 35). E acrescenta: Sua específica tarefa é apenas uma: estabelecer filiações entre obras e autores de um país e obras e autores de outro ou de outros países (p. 36). Como se vê, um vôo ainda muito restrito. Surpreende, na adesão de Tasso da Silveira aos autores franceses mencionados, o não aproveitamento das contribuições que alguns intelectuais brasileiros dispersavam em seus trabalhos de crítica literária, com forte inclinação comparativista. Se as tivesse considerado, é possível que, já na época, o manual brasileiro pudesse conter sugestões renovadoras, colhidas aqui mesmo, e não se tivesse deixado levar tanto pelo vezo sistematizador das orientações que acolheu. Passemos os olhos por algumas dessas contribuições. Os pioneiros Há que salientar a vinculação, no Brasil, da perspectiva comparada com os estudos filológicos das primeiras décadas deste século. Por isso interessa examinarmos a inclinação em João Ribeiro, que, já em Páginas de estética (1905)8, dedica um capítulo à literatura comparada. É um artigo curto, que não deixa de ter idéias interessantes. Vale a pena 8 2ª. Ed. Rio de Janeiro: São José, 1963. p. 133-6. 13 transcrever uma delas: Refiro-me à literatura comparada: mas não a essa em que se cotejam e se confrontam escritores de várias raças e estirpes. Pouco importam (à luz em que estou agora) os influxos recíprocos entre os homens de gênio, o quanto influiu Petrarca em Camões, Cervantes em Heine, Plauto em Molière. Refiro-me, diversamente, a um aspecto essencial da crítica histórica que há mister fundar e desenvolver (p. 133). Ora, é compreensível que João Ribeiro adote, na época, uma perspectiva histórica. Daí sua intenção de entender a literatura comparada como “crítica histórica”. No entanto, é curioso como não se interessa pelo jogo dos confrontos, característico da feição clássica da disciplina, prevendo para ela uma atuação “crítica”, mesmo sem desvinculá-la da história. Também é compreensível que alie os interesses lingüísticos aos literários, pois é uma implícita noção de língua como sistema que o leva a considerar a existência de uma literatura orgânica, popular, espontânea, que fluiria paralelamente á literatura oficial. É justamente essa literatura não regulada por normas que João Ribeiro gostaria de ver confrontada com a outra, a impressa. Diz ele: Quisera eu que lhe traçassem as fronteiras e me dissessem em que proporção dela se afasta essa outra literatura nossa, erudita, refletida, artificial, tardiamente criada, sobreposta e dobrada sobre a grande arte popular (p. 135) A observação é tanto mais curiosa se lembrarmos que, na esteira de Baldensperger, P. Van Tieghem chega a excluir do âmbito da literatura comparada os contos populares e as lendas devido ao anonimato de seus produtos. Dizia ele: Isto é folclore, não é história literária, pois esta é a história do pensamento humano visto através da arte de escrever (p 89). Daí o ostracismo da literatura antiga e medieval nos cursos ministrados na Sorbonne, na época de Van Tieghem. João Ribeiro seguia, ao contrário, a orientação germânica, na qual a Stoffgeschichte explorava a literatura popular na análise de temas e mitos, enquanto já advogava a tese da inter-relação entre literatura escrita e literatura oral, defendida, bem mais tarde, por críticos como R. Wellek e A. Warren em sua Teoria da literatura (1948)9. Ao nome de João Ribeiro se poderia com segurança anexar o de Otto Maria Carpeaux, o de Eugênio Gomes e o de Augusto Meyer. Mesmo bastante diferentes entre si, esses autores teriam em comum a inclinação para o comparativismo, que se manifesta em suas obras não de maneira apenas ocasional, mas reiteradamente. O. M. Carpeaux adota a comparação como um dos princípios para os estudos que desenvolve em sua História da literatura ocidental e em vários ensaios dispersos na obra 9 Lisboa: Europa-América, 1955. p.58-9. 14 de crítica. Freqüentemente envereda pelo rastreio de fontes ou por problemas de tradução, convertendo-se, também, em exemplar “intermediário”, difusor entre nós de autores europeus pouco conhecidos. Kafka, por exemplo, foi um dos escritores que Carpeaux encarregou-se de divulgar para a intelectualidade brasileira.10 Também Eugênio Gomes manifesta em vários trabalhos na imprensa a tendência comparativista que cristaliza, definitivamente, em Machado de Assis - Influências inglesas (1939)11, onde trata de identificar essas fontes na obra do autor de Brás Cubas, acrescentando-lhes ainda a sugestão de Victor Hugo. E. Gomes as registra com precisão, em pesquisa exaustiva e criteriosa, tornando seu livro, que não é uma investigação acabada ao nível interpretativo, valioso material para uma análise comparada em Machado de Assis. Igualmente interessante é a “Introdução”, onde E. Gomes rebate as críticas de Sílvio Romero, que acusara Machado de “macaquear Sterne”. Depois de reconhecer influxos do humour anglo-saxão na obra de Machado de Assis, diz E. Gomes: Seria irrisório indagar, com o crítico de Minhas contradições, se Machado era como Swift ou como Sterne. [. . .] Não tivesse a intuição do humour e, certamente, não bastava, para o exercer tão finamente, uma simples assimilação do processo de tal ou qual humorista estrangeiro. [...] Mas frisemos, em abono dele, que nem só os humoristas anglo-saxões incidiram no mesmo inconveniente, como foram, por sua vez, tributários de outros, não havendo nenhum absolutamente original (p. 10). Sem dúvida, Eugênio Gomes, seguindo uma tendência de época, adota uma explicação psicologizante (o humour como “espírito de temperamento”), mas astutamente refuta as acusações de mera imitação feitas a Machado, inserindo-o numa “família de humoristas” que remonta a Rabelais, e, ao fazê-lo, converte a todos da linhagem em “geniais plagiadores”. Não deixa também Eugênio Gomes de insinuar sua intuição do processo criador de Machado, ao observar que, em Quincas Borba, é pela fala da personagem que o autor do romance deixa transparecer seu apego a Pascal. Daí o comentário no qual acentua a maneira como a cultura, absorvida e assimilada pelo escritor brasileiro, se incorporava à sua economia criadora (P. 12). As “fontes” em questão As “fontes” machadianas foram um constante estímulo para os críticos do autor. Augusto Meyer ocupou-se com elas num ensaio sobre o capítulo do “delírio” de Brás 10 O comparativista Wolfgang Bader desenvolve projeto de investigação sobre o papel dos “intermediários” brasileiros. 11 1ª. Ed. Bahia, 1939; 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Pallas/INL, 1976. Leia-se também, do mesmo autor, Espelho contra espelho. Rio de Janeiro: Ipê, 1948. 15 Cubas. Ao perseguir a figura da Natureza ou Pandora até as suas prováveis fontes remotas, completa o estudo evocando a imagem machadiana da cabeça como “um bucho de ruminante” para dizer que ali é onde todas as sugestões, depois de misturadas e trituradas, preparam-se para nova mastigação, complicado quimismo em que já não é possível distinguir o organismo assimilador das matérias assimiladas... .12 Machado, portanto, fornece ao crítico a metáfora “alimentar” do processo criador, que não está longe da visão “antropofágica” de Oswald de Andrade. Mas não é só com relação à obra de Machado de Assis que Augusto Meyer exercitou suas pesquisas de fontes, na permanente sugestão de Ernst Robert Curtius, de quem promoveu a tradução da obra Literatura européia e Idade Média latina (1948), pelo Instituto Nacional do Livro. Bons exemplos de rastreamento de “tópicas” são os ensaios inseridos em Camões o Bruxo e outros estudos (1958). Além desses, é preciso destacar o estudo sobre o poema de Rimbaud, Le bateau ivre — Análise e interpretação (1955), onde a metodologia escolhida bem se esclarece. Elaborado para um curso de Teoria da Literatura que o autor ministrou na então Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Brasil, nos anos 50, caracteriza o estudo seu tom didático e a preocupação em definir conceitos e elucidar pontos de vista. Inicia Meyer por uma discussão sobre “temas e fontes”, minimizando o valor da investigação das tópicas para a análise críticointerpretativa do poema. Como diz, por mais que um Curtius renovasse e ampliasse a velha Stoffgeschichte, a monótona história de temas, de motivos e influências literárias, a validade relativa de aplicação do método, conforme os casos tratados, continua a pesar como fator preponderante nas tentativas de exegese (p. 19). Para ele, trata-se de um salto inicial, pois, reconhecida a filiação de Rimbaud e seu parentesco poético mais próximo, ainda resta mostrar que ele é o contrário de um epígono e, por conseguinte, sublinhar aquilo em que diverge de seus modelos; não o lado coincidente ou passivo, de cera mole, em que se refletem as influências, mas a forte marca singular da sua personalidade (p. 22). Mesmo provocada por uma tendência de crítica psicológica a valorização das “divergências” é o dado fundamental na observação de Meyer, que as vê surgir da análise textual rigorosa, como acentua na seqüência: Quem quiser evitar os riscos mais graves que a todo momento ameaçam a viabilidade do estudo das fontes, considere sempre, com a maior cautela, os seguintes aspectos da questão: a) o perigo de supor que a cada trecho de uma obra deve necessariamente corresponder uma fonte específica, ou “trecho paralelo”; b) o “hipnotismo da fonte única”, na expressão do professor Morize; c) a confusão entre simples semelhança e dependência 12 MEYER, Augusto. O delírio de Brás Cubas. In: _____ . Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro: São José, 1958. p. 196. 16 direta. Além disso, na grande maioria dos casos, a aproximação de textos, de acordo com a técnica das “passagens paralelas”, vem desacompanhada de uma análise estilística e carece portanto de valor concludente. Nunca será possível em tais casos definir a natureza da influência, ou mesmo comprovar se houve de fato influência, e traçar devidamente os limites entre imitação, adaptação, assimilação e originalidade (p. 22-3). A orientação estilística é dominante nas análises textuais empreendidas por Meyer e caracteriza o estudo sobre Rimbaud; mas interessa aqui ressaltar a justeza da desconfiança que demonstra em relação às pesquisas de influências e, principalmente, como se retrai diante dos paralelismos binários sem caráter interpretativo tão freqüentes nos estudos tradicionais de crenologia. De João Ribeiro a Augusto Meyer, portanto, e nos dois outros autores referidos, há uma postura diversa da de Tasso da Silveira, pois neles se expressa a perspectiva crítica que impede a absorção passiva das noções estrangeiras. Ao contrário, já as fazem passar pela peneira das restrições. A simples amostragem nos comprova que, se tivermos de escrever a história do comparativismo no Brasil, teremos de recorrer aos estudos pontuais, dispersos em jornais e livros de crítica literária, pois aí estão, sem dúvida, as mais criativas contribuições. De volta aos franceses A visão obliterada que se tem da literatura comparada como um estudo restrito a exaustivos levantamentos, verdadeiros exercícios de erudição que, muitas vezes, impressionam mais pelo esforço da pesquisa do que pela agilidade das interpretações resultantes, decorre, em geral, das propostas que conhecemos através de manuais que sobrecarregam o aparato da investigação sem suscitar as atitudes críticas. É o caso, por exemplo, da obra de Marius-François Guyard, A literatura comparada13, traduzida em 1956 e bastante conhecida. Não se pode dizer que o autor não estivesse movido por boas intenções: ele quer dirimir dúvidas sobre a natureza dos estudos comparados, tentando dar à disciplina uma definição objetiva. Já na introdução dirá que o inevitável paralelo, de 1820 a 1830, entre Shakespeare e Racine, pertence à crítica ou à eloqüência; pesquisar o que o dramaturgo inglês conheceu sobre Montaigne e o que dele transportou para seus dramas, é literatura comparada (p. 9). Mas as boas intenções do autor valem pouco: Guyard insiste na distinção entre crítica e comparativismo, prejudicando a compreensão de ambas as atividades, pois se à primeira destina o paralelismo, à segunda cabe apenas o levantamento de dados sobre o 13 São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1956. 17 que um autor leu de outro. Para ele, a literatura comparada é a história das relações literárias internacionais. O comparativista se coloca nas fronteiras, lingüísticas ou nacionais, controla as trocas de temas, idéias, livros ou sentimentos entre duas ou várias literaturas (p. 15). De acordo com o que propõe, o comparativista é uma espécie de fiscal do “trânsito” ou intercâmbio intelectual. Assim, na sua concepção o termo relação se converte em palavra-chave, pois se não existir contato real, seja de um homem com um texto, de uma obra com um público, de um viajante com um país, encerra-se o domínio da literatura comparada e começa o “da pura história das idéias, quando não da retórica”. Os bons propósitos de Guyard não atingem os objetivos a que se propunham: ao definir, restringe. Exigindo a comprovação dos contatos ou relações, deixa de considerar relações mais gerais, decorrentes de afinidades naturais ou movidas por condicionamentos de época ou de gênero, que também podem existir e interessam ao comparativista. Além disso, qualquer proposição metodológica que intenta fazer em seu livro se dissolve em conselhos práticos a quem se dedica aos estudos literários comparados. Indica “caminhos” e esses se reduzem à investigação de fontes e de influências comprovadas, ao acompanhamento do destino das obras fora do país de origem ou do movimento das idéias, à interpretação de um país pela imagem que dele se faz no estrangeiro ou, ainda, à análise dos “intermediários”, elementos que favorecem a difusão de um texto ou de um autor. Limita o alcance da literatura comparada a um “pano de fundo” da literatura, ao estudo de dados que estão “ao redor” do literário, ao abstrair toda a análise crítica dos textos. Por isso, hoje, o interesse do livro de Guyard é muito menor do que seu sucesso inicial anunciava. Ao definir a literatura comparada como “história das relações literárias internacionais”, compreende-as como simples comércio internacional da cultura e propõe a investigação dessas relações apenas em seus aspectos mais superficiais. Na expectativa de superar seu antecessor, Claude Pichois e André-Michel Rousseau elaboram outro manual, de igual título: La littérature comparée (1968)14. O livro de Pichois e Rousseau é realmente mais rico e atualizado em suas informações, como também mais abrangente nos conceitos e nas propostas. No entanto, desenvolve plano idêntico ao de Guyard, acabando por tratar sobretudo de “trocas literárias internacionais” e ocupando-se, como aquele, com a caracterização dos elementos que intermediam esses processos. A aceitação que ganhou esse manual (a segunda edição, de 1971, esgotou-se com rapidez) estimulou o surgimento de uma terceira versão, com título novo 14 Paris: Armand Colin, 1968. 15 — Qu'est-ce que Ia littérature comparée? (1983) 18 — e colaboração de um terceiro co- autor, Pierre Brunel. Na verdade, a nova formulação ganha em interesse por seu caráter mais dialético e pela discussão em torno das contribuições teóricas recentes. Os conceitos não estão tão rigidamente propostos, de acordo com o espírito do livro, cujo título interrogativo evoca a instigação de Sartre no célebre ensaio “Qu'est-ce que Ia littérature?”, de 1949. Para ilustrar, basta transcrever o que dizem os autores sobre a distinção entre literatura comparada e literatura geral: A literatura geral é o estudo das coincidências, das analogias; a literatura comparada (no sentido estrito do termo) é o estudo das influências, mas a literatura geral é ainda literatura comparada. E mesmo se compreendemos sob esse último termo apenas os estudos de relações de fato, percebemos que não existe solução de continuidade (p. 103). Mas, apesar da aparência nova, os resultados não se alteram. Se já não estabelecem a subserviência da literatura comparada à literatura geral, pois querem acentuar a complementariedade entre elas, ainda insistem em “coincidências, analogias e influências” como o interesse central do comparativista. É com a intenção de caracterizarlhe a atuação que irão afirmar: Estudar a invenção da tragédia na Grécia, seu transplante para Roma, sua ressurreição no século XVI, sua difusão em toda a Europa, o interesse que suscita na atualidade, é obra de comparativista. Meditar sobre a noção do trágico, como Nietzsche no Nascimento da tragédia ou, mais recentemente, George Steiner em A morte da tragédia, é ser filósofo literário (p. 105). A passagem transcrita deixa à mostra a fragilidade da distinção efetuada, porque quem se dispõe a estudar o surgimento da tragédia não pode evitar a reflexão sobre o trágico. Mesmo que a nova versão dessa obra tenha uma feição mais “moderna” e conceitos teóricos melhor explicitados, os princípios firmados nas duas edições anteriores permanecem em vigor. Dito de outro modo, as considerações teóricas acolhidas não chegam a atuar sobre as formulações precedentes, modificando-as. Assim, o capítulo final (“Vers une définition”) acaba reproduzindo integralmente os textos das edições precedentes, como reafirmação do conceito de literatura comparada antes adotado: A literatura comparada é a arte metódica, pela pesquisa de laços de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura de outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre eles, distantes ou não no tempo e no espaço, contanto que pertençam a várias línguas ou várias culturas, façam parte de uma mesma tradição, a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los (p. 150). Ora, tal definição privilegia o estudo de semelhanças (analogias e parentescos, na 15 Paris: Armand Colin, 1983. 19 perspectiva até aqui rastreada), sem se ocupar com as eventuais diferenças. Isso não só limita a natureza da investigação como também cerceia o seu alcance. Ao aproximar elementos parecidos ou idênticos e só lidando com eles, o comparativista perde de vista a determinação da peculiaridade de cada autor ou texto e os procedimentos criativos que caracterizam a interação entre eles. Enfim, deixa de lado o que interessa. Paralelamente, ao preconizar a idéia de “filiação”, a definição se ampara num conceito de tradição no qual a cronologia (ou antecipação) se converte em critério dominante e expressão de excelência, como prova de originalidade. E, na formulação, apenas interessa aproximar elementos que pertençam à “mesma tradição”, aqui sinônimo de linhagem, como reforço à afirmação de identidades. Além disso, a definição de literatura comparada como “arte metódica” nada diz sobre sua atuação metodológica e a imprecisão terminológica inicial ocorre ainda na expressão “apreciá-los”, que conclui o trecho citado. Assim, o livro dos autores Pichois, Rousseau e Brunel apesar das modificações introduzidas nas duas primeiras edições, parece regredir quando se dispõe a conceituar os procedimentos comparativistas e reafirma as propostas clássicas da “doutrina” francesa, sem integrar as sugestões teóricas que refere. Etiemble: um caso à parte O trajeto, embora rápido, pelos manuais mais conhecidos, revisa a bibliografia existente com a finalidade de destacar os aspectos essenciais de cada proposta para que seja possível contrastá-las. Assim, esse vôo panorâmico em território francês, longe de ser exaustivo, ocupouse apenas com os textos que são melhor divulgados no Brasil. Deixou de lado, por exemplo, uma contribuição fundamental, a de Etiemble, sucessor de Carré na Sorbonne. Na verdade, o fez intencionalmente, pois esse autor mereceria um capítulo especial pela singularidade de suas reflexões. Em Comparaison n'est pas raison (1963)16 ou em Essais de littérature (vraiment) générale (1974), Etiemble se encarrega de rebater a distinção entre literatura comparada e literatura geral e sustenta um interesse que ignora divisões políticas e limites geográficos, pois, para ele, as literaturas asiáticas tem a mesma importância que as européias. É, enfim, um humanista na acepção exata do termo. Suas afirmações levam muitos a situá-lo mais próximo da “escola” norte-americana do que da francesa, pelo questionamento constante a que submeteu o comparativismo tradicional. Sua posição é, por exemplo, frontalmente contrária à de Guyard, no qual critica a 16 Comparaison n’est pás raison (La crise de la littérature comparée). Paris: Gallimard, 1963. 20 extremada perspectiva nacionalista. Opõe-se Etiemble a qualquer postura chauvinista e a todo provincialismo, prevendo para o comparativista a tarefa de reconhecer que a civilização dos homens, onde os valores se trocam desde milênios, não pode ser compreendida, apreciada, sem referência constante a essas trocas, cuja complexidade impede seja a quem for de organizar nossa disciplina com relação a uma língua ou a um país, privilegiados entre todos (p. 15). Etiemble compreende uma “interdependência universal das nações”, expressão de Karl Marx para quem as obras de uma nação se tornam propriedade comum de todas as nações. Etiemble propõe o estudo de obras parecidas sem ter em conta seus possíveis contatos ou derivações; interessa-lhe determinar o que denomina de “invariantes literárias”, isto é, a unidade de fundo da literatura como totalidade. Neste sentido, postula uma poética comparada. A singularidade da postura de Etiemble advém de sua posição no contexto clássico francês. Divergindo de J.-M. Carré, a quem sucede na cátedra da Sorbonne, Etiemble dilata o interesse comparativista para contextos não-europeus no mesmo tempo que se dedica a estudar longamente O mito de Rimbaud. Por outro lado, recusa o estudo de problemas marginais à literatura, que esquecem os textos em si mesmos. Por isso, em Comparação não é razão (A crise da literatura comparada) julga duramente os métodos e concepções convencionais que insistem em investigar somente questões periféricas. Daí propor a combinação de dois métodos que eram considerados tradicionalmente incompatíveis, o da investigação histórica e o da reflexão crítica. 21 3 Novas orientações comparativistas O comparativismo em crise Por longo tempo, a literatura comparada parecia constituir terreno exclusivo de estudiosos franceses, cuja doutrina predominava sobre as demais orientações. Mas as propostas clássicas que acompanhamos através de alguns manuais sofrem seu primeiro grande abalo em 1958, no 2.° Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC/IACL), em Chapel Hill, quando René Wellek pronuncia uma conferência de impacto, publicada como artigo — “A crise da literatura comparada”17 — na qual considera o comparativismo como “uma represa estagnada”. Nesse texto, Wellek investe contra as fragilidades teóricas da disciplina e sua incapacidade de estabelecer um objeto de estudo distinto e uma metodologia específica, até aquela época. Sua crítica se dirige contra os pronunciamentos de F. Baldensperger, P. Van Tieghem, J.-M. Carré e M.-F. Guyard, autores que, segundo ele, sobrecarregaram a literatura comparada com uma metodologia obsoleta e sobre ela deitaram a mão mortal do factualismo, do cientismo e do relativismo histórico do século XIX (p. 244). Opõe-se à distinção entre literatura comparada e literatura geral, julgando-a insustentável e desnecessária. E pergunta: Por que deveríamos distinguir entre um estudo da influência de Byron sobre Heine e o estudo do byronismo na França? (p. 245). Tal limitação, para Wellek, faz com que a literatura comparada se reduza à análise de fragmentos, sem ter a possibilidade de integrá-los em uma síntese mais global e significativa. Por outro lado, essa limitação obriga o comparativista a enveredar apenas pelos clássicos estudos de fontes e influências, causas e efeitos, sem jamais chegar à análise da obra em sua totalidade ou de uma questão em sua generalidade. Além disso, continua Wellek, a investigação do “comércio exterior” entre duas literaturas conduz o estudioso a se ocupar apenas com dados extraliterários. Todas essas restrições levam o crítico a considerar que as propostas que até então caracterizavam a disciplina acabaram por desprestigiá-la, transformando-a, como se viu, em uma “subdisciplina” de atuação restrita. Mesmo as intenções de Carré e de Guyard de dilatarem essa atuação para a investigação da imagologia serão condenadas por Wellek, que as entende como o ressurgimento da velha Stoffgeschichte18 alemã, que julga mais 17 18 In: ___________ . Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix, s.d. Estudos de temas literários em sua circulação por diferentes literaturas. 22 adequada à psicologia social e à história cultural. Além dessas críticas, Wellek dá o golpe de misericórdia nas orientações em vigor, criticando o princípio causalista que rege os estudos clássicos de fontes e influências, manifestando-se contrário aos estéreis paralelismos, resultados de caça às semelhanças que, apenas raramente, investigam o que estas relações devem indicar, a não ser que um escritor conheceu e leu outro (p. 246). Não é difícil perceber que na base das argumentações de Wellek estão o formalismo russo, que o formou, e a fenomenologia, a que aderiu depois. A formação de Wellek sofreu, ainda, o contato com o new criticism e amalgamou os princípios em que essas três correntes teórico-críticas preconizam a análise imanente do texto literário. São, sem dúvida, tais orientações que o levam a compreender as obras literárias não como somas de possíveis sugestões mas como conjuntos em que a matéria-prima provinda de qualquer parte deixa de ser matéria inerte e é assimilada numa nova estrutura (p. 246). A partir dessa afirmação, transcrita do artigo referido, torna-se mais fácil entender que Wellek se rebele contra o determinismo causal, que trata a questão de fontes e influências como dados separados do todo da obra, sem atentar sequer para as formas de sua absorção nem para o funcionamento desses elementos “estranhos” na organização nova. A incompatibilidade de R. Wellek com os mestres franceses está fundada em diferentes conceituações do literário. Desde o clássico Teoria da literatura (1949), elaborado em colaboração com Austin Warren, as noções que embasam a argumentação empregada no artigo já estavam claras. No capítulo V, intitulado “Literatura geral, literatura comparada e literatura nacional”, os autores se mostravam insatisfeitos com os rumos tomados pelos estudos comparados, que ora se limitavam à investigação da migração de temas da literatura oral para a escrita, ora estavam confinados ao exame das relações entre duas ou mais literaturas, recaindo sobre os dados externos a preocupação maior. Já na obra teórica, Wellek defende o estudo da literatura sem distinções artificiais, dada a dificuldade em definir os tópicos e traçar limites para a investigação. Para ele, melhor seria falar apenas de “literatura”, pois literatura “comparada” e “geral” se fundem inevitavelmente. No prefácio à primeira edição, os autores se referem à erudição literária (expressão que parecem adotar para literatura comparada em várias passagens) como sinônimo de investigação compatível com o criticismo. Também se recusam a distinguir entre literatura 23 contemporânea e literatura do passado, repelindo o evolucionismo mecânico de Brunetière, que acentuava o paralelismo entre evolução literária e evolução biológica. Tais conceitos explicam por que René Wellek criticará, mais tarde, a separação entre crítica literária e estudos literários comparados. Um retorno à perspectiva crítica lhe aparece como a solução possível de evitar o factualismo exterior e o atomismo que, a seu ver, entravavam a literatura comparada. Sua proposta conclui pelo abandono dos estudos de fontes e influências em favor de uma análise centrada no texto e não em dados exteriores. Em suma, quer substituir o que considera “passatempo de antiquário” ou “cálculo de créditos e débitos nacionais” ou ainda “mapeamento de rede de relações” por uma modalidade de análise sinônima de crítica e, talvez, a partir daí, pela realização de um “estudo comparativo da literatura”, expressão que lhe parece mais adequada que a de literatura comparada. René Wellek tinha razão? René Wellek não se deteve no artigo referido. Em vários outros textos, onde tentou amenizar o impacto causado por sua conferência no Congresso de 1958, reitera a argumentação empregada e a desenvolve. Quem quiser seguir-lhe a trilha, poderá ler, por exemplo, o seu estudo “Nome e natureza da literatura comparada” ou o discurso que, como presidente da Associação Americana de Literatura Comparada, profere em Cambridge, Mass., em abril de 1965, sob o título “A literatura comparada hoje”19. Seus constantes alertas, não obstante as restrições que lhes possam ser feitas, constituem um sinal vermelho ao comparativismo tradicional e podem ser considerados como uma das contribuições mais significativas para que ele seja repensado e necessariamente, reformulado. Wellek, sem dúvida, atinge os pontos fracos das propostas clássicas: o exagerado determinismo causal das relações, a ênfase em fatores não-literários, a análise dos contatos sem atentar para os textos em si mesmos, o binarismo reducionista. No entanto, cabe dizer que muitas vezes suas observações, ao desnudarem o comparativismo tradicional, não lhe davam roupa nova para cobri-lo. O que substantivamente propõe é a introdução da reflexão crítica nos estudos comparados (nisso Etiemble dele se aproxima), mas não define a atuação comparativista, arriscando fazê-la perder sua especificidade. O caráter combativo das argumentações de Wellek parece levá-lo a arregimentar maior número de restrições do que de saídas aos impasses 19 Os dois textos podem ser encontrados in: WELLEK, R. Discriminations: further concepts of criticism. Yale, Yale University Press, 1970. 24 caracterizadores da “crise” da literatura comparada. Por isso foi interpretado de formas tão variadas e determinou, com a postura anti-historicista e a aceitação de estudos comparados no interior de uma só literatura, a cisão entre uma suposta orientação norteamericana e a francesa clássica. Ao recusar frontalmente os estudos de imagologia20, Wellek não previu que eles poderiam ser feitos com ênfase nos aspectos especificamente literários. Um bom exemplo de estudo dessa natureza é O “brasileiro” e o avesso de um personagem tipo, de Guilhermino César21, no qual a análise, na ficção portuguesa, da imagem do português que enriqueceu no Brasil e volta para sua terra, articula dados das culturas aproximadas com elementos literários. A recorrência à História, refutada por Wellek, utilizada adequadamente, torna-se importante no exame do literário do ponto de vista da sociologia literária. É exemplo recente o livro Carcamanos e comendadores — Os italianos de São Paulo: da realidade à ficção (1919-1930) de Mário Carelli22. Tais trabalhos comprovam que a articulação da perspectiva crítica à literatura comparada é não só indispensável (como queria Wellek) mas capaz de revitalizá-la sem que perca suas características essenciais, que a singularizam em relação à crítica tout court. A literatura comparada, sendo uma atividade crítica, não necessita excluir o histórico (sem cair no historicismo), mas ao lidar amplamente com dados literários e extraliterários ela fornece à crítica literária, à historiografia literária e à teoria literária uma base fundamental. Todas essas disciplinas concorrem em conjunto para o estudo do literário, resguardada a especificidade de cada uma. Devem conviver sem se confundirem (como acontece às vezes na reflexão de Wellek). No entanto, isso não lhe tira o mérito dos alertas e da saudável revitalização que estimulou sobre o comparativismo literário, encaminhando-o a compatibilizar a perspectiva crítica com atuações tradicionais, dilatando as análises para além do simples levantamento de dados e identificação de fontes, influências e relações. O “modelo” estruturalista Se René Wellek não fez propostas específicas para a literatura comparada, além de convocá-la a assumir uma perspectiva de crítica literária, o tcheco Dionýs Durisin23, apoiado nos princípios do estruturalismo de Praga, formulou uma proposição metodológica que muitos consideraram como um “modelo” inovador. 20 Estudos das imagens/miragens = que significam a verdadeira ou falsa idéia que uma nação tem da literatura de outra nação. 21 Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1969. 22 São Paulo: Ática, 1985. 23 Vergleichende Literaturforschung. Berlim: Akademie Verlag, 1972; À-propos de l’histoire et de la théorie de la littérature comparée. Bratislava, 1970. 25 24 Pierre Swiggers , por exemplo, classifica essa contribuição como “novo paradigma” nos estudos comparados, em oposição às propostas mais tradicionais. Vejamos do que se trata. Durisin preocupa-se em estabelecer classificações tipológicas através dos estudos comparados e, nesse sentido, é pioneiro no oferecimento de uma tipologia sistemática das relações literárias. Com a finalidade de organizar essas relações, Durisin distingue entre contatos genéticos e relações de solidariedade tipológica. O estudo dos primeiros está subdividido em análise de contatos externos (ou primários), como, por exemplo, o sucesso literário, e em contatos internos (os casos de influências). Esses contatos em seu aspecto material, podem ser diretos ou indiretos. Por outro lado, as relações de solidariedade tipológica são diferenciadas de acordo com o pano de fundo social, literário ou psicológico, que freqüentemente tem uma função normativa. As distinções entre essas relações são feitas por condições impostas pelas escolas ou correntes literárias, pelos gêneros ou pelo modelo de um trabalho literário. O mérito maior da tipologia de Durisin é a eliminação do conceito de influência no sentido clássico, pois o substitui pelo conceito operacional de tipo (ou estratégia) de influência. Ao fazer isso, o autor tcheco distingue entre estratégias integradoras — que seriam a imitação, a adaptação, o empréstimo ou decalque — e estratégias diferenciadoras (a paródia, a sátira, a caricatura). A proposta de Durisin quer prover explicações estruturais para os fenômenos literários, quando estudados de um ponto de vista comparativo. Mas o que interessa em sua reflexão é que, através de um modelo hipotético dedutivo, ele investiga as relações que são estabelecidas não apenas entre autores e obras mas entre sistemas e subsistemas literários, governados por certas normas e tendências (estéticas, sociais e políticas). A finalidade do autor, além de descrever essas relações, é também de explicá-las por uma teoria elaborada, usando uma terminologia específica. Como vimos, nas orientações mais tradicionais as relações entre autores e obras eram estabelecidas de maneira causal e mecânica com vistas ao exame de exportações e importações literárias. Na teoria estruturalista de Durisin, o objeto da investigação são as relações entre os textos, isto é, preocupa-se com as transformações dos textos no interior dos sistemas literários, sob a influência, sobretudo, das normas impostas pelos próprios sistemas e pela tradição. Há, sem duvida, uma nítida evolução teórica na base da 24 Methodological Innovation in the comparative study of literature. Canadian review of comparative literature/RCLC, mar. 1982. p. 19-25. 26 proposição do autor tcheco, pois deixa de lado os conteúdos (a relação entre autores) para ocupar-se com aspectos formais (a relação entre textos). Isso reflete uma mudança substantiva no conceito de literatura comparada, abrindo para a disciplina novos campos de atuação e orientando-a para pensar a articulação entre sistemas e subsistemas literários. Mas é preciso dizer que a proposta de Durisin, em sua formulação inicial (1970), não previa a articulação entre sistemas literários e não-literários, correndo o risco do fechamento nos primeiros. Além disso, como todo estudo tipológico, tendia a favorecer uma excessiva simplificação que privilegiava os fatos análogos em detrimento das diferenças entre os textos. Ao perceber as fragilidades do “modelo” que propunha, o autor começou a desenvolvê-lo no sentido de combinar a análise do processo literário com o contexto da literatura nacional, já com vistas ao estabelecimento de categorias da literatura mundial, meta de suas pesquisas25. As inovações metodológicas Antes de nos determos em questões específicas, reflitamos de maneira geral sobre as modificações introduzidas nos modos de atuação do comparativista. Vimos que René Wellek insiste na concepção de literatura comparada como uma atividade crítica, considerando-a mesmo como sinônimo de crítica literária e opondo-se, frontalmente, àqueles que estabeleciam limites entre as duas, distinguindo investigação de fontes da análise crítico-interpretativa dessas mesmas fontes. Vimos também que Wellek se diferencia de seus colegas comparativistas por refletir amparado em diversa noção do literário, que afina com orientações teóricas para as quais o texto é o objeto central das preocupações. As perspectivas ditas “clássicas” em literatura comparada se moldaram, sem dúvida, de acordo com os princípios vigentes no século XIX: historicismo e transferência de métodos de outras ciências para o estudo da literatura. O chamado positivismo literário vira o século e adentra os primeiros decênios deste, perpetuando na crítica literária como no comparativismo a inclinação historicista e a atenção voltada para a figura do autor. Pode-se, então, entender a substituição do biografismo do século XIX por um psicologismo vigoroso nas primeiras décadas do século XX. Mas é neste século que os estudos sobre a natureza e o funcionamento dos textos literários ganham grande impulso e fazem avançar, como reflexão organizada em busca de caráter mais científico, a teoria literária. 25 Veja-se, nesse sentido, o seu recente estudo “Aspects ontologiques du processus littéraire”, traduzido de Literánovedný Ústav. Slovenská Akadémia Vied: Bratislava, 1984. 27 26 O formalismo russo , surgido de estudos realizados por investigadores do Círculo Lingüístico de Moscou (1914-1915) e de estudiosos que fundaram, em 1917, a Associação para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ), caracterizou-se justamente por uma recusa do historicismo vigente no século anterior. Opunha-se, também, às interpretações extraliterárias da obra: sua análise não deveria partir da sociologia, nem da psicologia ou da filosofia, mas antes centrar-se no texto, no estudo do literário em si mesmo. Se evocarmos a lição de Antonio Candido — a literatura como um sistema no qual interagem autores (produtores literários), obras e público (conjunto de receptores) — perceberemos que houve, na proposta formalista, uma mudança de enfoque, do primeiro para o segundo desses elementos. E poderíamos dizer ainda que a teoria literária se tem caracterizado por deslocar a sua atenção de um desses três pólos para outro. A reflexão que move a chamada “estética da recepção'', por exemplo, preocupa-se, sobretudo, com as operações receptivas, ou seja, com os procedimentos efetuados pelo leitor no contato com a obra e suas conseqüências na conformação do público (a receptividade da obra em sentido amplo). Os estudos comparados mais recentes incorporam os princípios desenvolvidos pela teoria literária, modificando suas formas de atuação. É o que veremos a seguir. 26 Para uma compreensão ampla do formalismo russo e de sua articulação com o estruturalismo tcheco, leia-se SCHNAIDERMAN, Boris. Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. 28 4 O reforço teórico Teoria literária e comparativismo As reflexões sobre a natureza e o funcionamento dos textos, sobre as funções que exercem no sistema que integram e sobre as relações que a literatura mantém com outros sistemas semióticos (legado formalista que os estruturalistas do Círculo de Praga se encarregaram de levar adiante) abriram caminho para a reformulação de alguns conceitos básicos da literatura comparada tradicional. Entre as diferentes contribuições, foram utilíssimas as noções de luri Tynianov27 sobre a evolução literária, de Jan Mukarovsk sobre a função estética e sobre a arte como fato semiológico28 e de M. Bakhtin sobre o dialogismo no discurso literário29. I. Tynianov pertenceu ao Círculo Lingüístico de Moscou, constituindo com B. Eichenbaum, V. Chklovski, R. Jakobson, O. Brik, B. Tomachevski e outros do grupo que, por um recurso didático, reunimos sob a mesma etiqueta de “formalistas russos”, ainda que alguns tenham orientações teóricas bem diversas. Esses estudiosos, como foi referido, romperam com a análise concebida em termos de causalidade mecânica, de larga difusão no século anterior, que fazia intervir na investigação do literário o biografismo, o psicologismo, a história literária e a sociologia. Amparavam seus estudos sobre a poética na teoria lingüística de Ferdinand de Saussure, tentando definir a língua poética por oposição à língua prática, a função expressiva da linguagem por oposição à função comunicativa. Foram eles que estabeleceram a noção geral da linguagem poética como um sistema, isto é, um conjunto de relações entre o todo e suas partes. Ao rejeitarem o estudo da gênese, que se apoiava na sociologia e na biografia, postularam o princípio da imanência da obra: esta é um produto que deve ser estudado em si mesmo e do qual é necessário analisar a construção. Consideravam o texto um sistema fechado, de que cabia efetuar a análise interna. Privilegiando a imanência, os formalistas não evitaram o risco de uma análise estática, que favorecia o conhecimento e a conseqüente descrição do texto literário, mas deixava de examinar as relações que ele estabelecia com elementos extratextuais, limitando o alcance interpretativo dos estudos. 27 TYNIANOV, Iuri. Da evolução literária. In: ___, et al. Teoria da literatura (formalistas russos). Porto Alegre: Globo, 1971. 28 MUKAROVSKY, Jan. La funzione, la norma e il valore estético como fatti sociali (semiologia e sociologia dell’arte). Torino: G. Einaudi, 1971. 29 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiéviski. Rio de Janeiro: Forense, 1981. 29 Contra o fechamento que os estruturalistas iriam acentuar se insurgem dois representantes do grupo formalista: R. Jakobson e I. Tynianov. Ambos propõem o abandono do “formalismo” escolástico que privilegia a catalogação dos fenômenos em detrimento da análise dos mesmos. No ensaio “Da evolução literária”, Tynianov questiona: É possível o estudo chamado “imanente” da obra enquanto sistema, ignorando suas correlações com o sistema literário? [...] Entretanto, mesmo a literatura contemporânea não pode ser estudada isoladamente. A existência de um fato como fato literário depende de sua qualidade diferencial (isto é, de sua correlação seja com a série literária, seja com uma série extraliterária), em outros termos, de sua função (p. 109). Tynianov alerta que “um mesmo elemento tem funções diferentes em sistemas diferentes”, o que nos leva a pensar que um elemento, retirado de seu contexto original para integrar outro contexto, já não pode ser considerado idêntico. A sua inserção em novo sistema altera sua própria natureza, pois aí exerce outra função. Tal constatação muda a compreensão do comparativista que persegue um tema, uma imagem ou mesmo um simples verso ao longo de diferentes textos. Ela o faz considerar não mais apenas o elemento em si, mas a função que ele exerce em cada contexto. Enfim, graças a isso, o elemento rastreado é o mesmo, sendo já outro por força da nova função que lhe é atribuída. Com Tynianov também fica claro que a obra literária se constrói como uma rede de “relações diferenciais” firmadas com os textos literários que a antecedem, ou são simultâneos, e mesmo com sistemas não-literários. Nessa linha de reflexão, Tynianov irá contestar o uso do termo “epígono”30 como um valor constituído e argüir a idéia de “tradição” tal como era concebida na historiografia tradicional. Para ele, a tradição não se desenha como uma linha reta, numa evolução linear e contínua, mas se constitui um processo bastante conflituado, de idas e voltas. Não é difícil perceber que a alteração do conceito também ocasiona mudanças na visão comparativista, sobretudo do estudioso ocupado com o estabelecimento de “famílias” ou “linhagens”. Mais adiante se voltará a insistir nesse ponto. Entre os formalistas é possivelmente Tynianov quem fornece os dados básicos para a reflexão levada a cabo por Jan Mukarovsk, estruturalista tcheco pertencente ao Círculo de Praga. Mukarovsk aproveita dele as noções de “função” e de “dominante” para enfatizar que a obra literária não está isolada, mas faz parte de um grande sistema de correlações. Por isso o estudioso tcheco não limitará o estudo da obra literária às relações internas dos elementos de sua estrutura, mas integrará essa estrutura a outras e estudará suas relações recíprocas. Similar é o procedimento adotado por M. Bakhtin, que, como Tynianov, foge às 30 Discípulo ou continuador de uma escola artística de geração anterior. 30 concepções “fechadas no texto” dos formalistas mais ortodoxos e resgata suas ligações com a história. Por isso, o objetivo de sua investigação ao analisar a poética de Dostoievski, por exemplo, não é elucidar “como é feita a obra”, mas situá-la “no interior de uma tipologia dos sistemas significantes na história”. Resgata Bakhtin a perspectiva diacrônica, relegada pelos primeiros formalistas, que eram anti-historicistas, reatando com a história. Desse modo, identifica os traços fundamentais da organização do romance em Dostoievski (1929), não só interpretando-o como uma construção polifônica, onde várias vozes se cruzam e se neutralizam, num jogo dialógico, mas também interpretando essa polifonia romanesca como um cruzamento de várias ideologias. O texto escuta as “vozes” da história e não mais as representa como uma unidade, mas como jogo de confrontações. A compreensão de Bakhtin do texto literário como um “mosaico”, construção caleidoscópica e polifônica, estimulou a reflexão sobre a produção do texto, como ele se constrói, como absorve o que escuta. Levou-nos, enfim, a novas maneiras de ler o texto literário, como detalharemos depois. Por enquanto, as sumárias referências a essas contribuições nos ajudam a perceber alguns pontos básicos que agiram sobre a atuação comparativista, minando em suas bases as visões mecanicistas do processo de evolução literária e da conformação dos sistemas literários. Já ao preconizarem as correlações entre a série literária e as nãoliterárias, esses estudiosos acenam para um tratamento intersemiótico que revitaliza, por exemplo, o tratamento habitual do que Étienne Souriau denomina de “a correspondência das artes”, em obra de mesmo título, onde examina elementos de Estética Comparada31. As relações entre a literatura e as outras artes encontram no campo dos estudos semiológicos, nas relações que os sistemas sígnicos travam entre eles, novas possibilidades de compreensão para essas correspondências. Embora os comparativistas tradicionais não incluam no campo de atuação da literatura comparada a relação entre literatura e outras artes, situando-a no âmbito geral da história da cultura, os comparativistas americanos a incorporam às suas preocupações. Ulrich Weisstein, por exemplo, em sua difundida Introducción a Ia literatura comparada32, dedica a essa questão um capítulo intitulado “Iluminação recíproca das artes”, e, mais recentemente, Franz Schmitt-Von Mühlenfels assina o capítulo “La literatura y otras artes” do livro de Manfred Schmeling, Teoría y praxis de Ia literatura comparada (1984)33, que se constitui numa boa síntese do estado atual dessa relação. Tais contribuições alteram os pressupostos básicos dos estudos comparados em 31 São Paulo: Cultrix/Edusp, s.d. Barcelona: Planeta, 1975. 33 Barcelona: Alfa, 1984. 32 31 sua formulação mais convencional. Interessa, por isso, salientar que autores como Tynianov, Mukarovsk e Bakhtin comprovam o inverso do que, em geral, se pensava: que os formalistas russos e os estruturalistas do Círculo de Praga não tivessem contribuído para a renovação do comparativismo, dada a sua postura (generalizada, mas não da totalidade de seus estudiosos) anti-historicista. Isso ficará ainda mais claro a seguir. O diálogo (difícil) dos textos Foi justamente na esteira de Tynianov e de Bakhtin que Julia Kristeva chegou à noção de “intertextualidade”, termo por ela cunhado em 1969, para designar o processo de produtividade do texto literário. Essa produtividade existe porque, como diz Kristeva, todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla.34 O processo de escrita é visto, então, como resultante também do processo de leitura de um corpus literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou vários outros). A análise dessa produtividade leva ao exame das reações que os textos tramam entre eles para verificar, como quer Gérard Genette35, a presença efetiva de um texto em outro, através dos procedimentos de imitação, cópia literal, apropriação parafrástica, paródia, etc. As contribuições de Tynianov e Bakhtin também se fizeram sentir nesse campo, aliando-se às deles as noções que Victor Chklovski, outro formalista, desenvolve em Sobre a teoria da prosa. Embora Julia Kristeva tenha querido desvincular a questão da intertextualidade do estudo de fontes, na verdade o conceito contribuiu para que ele fosse renovado. Principalmente porque ele abala a velha concepção de influência, desloca o sentido de dívida antes tão enfatizado, obrigando a um tratamento diferente do problema. Como adverte Laurent Jenny em seu ensaio “A estratégia da forma”, a intertextualidade36 designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido (p. 14). Diante disso, o que era entendido como uma relação de dependência, a dívida que um texto adquiria com seu antecessor, passa a ser compreendido como um procedimento 34 Sèméiôtikè(Recherches pour une sémanalyse). Paris: Seuil, 1969. p. 146. (Em português : Ensaios de semiologia. Trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Eldorado, 1971 e Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. 35 Palimpsestes (La littérature au seconde degré). Paris: Seuil, 1982. 36 Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979. 32 natural e contínuo de reescrita dos textos. A compreensão do texto literário nessa perspectiva conduz à análise dos procedimentos que caracterizam as relações entre eles. Essa é uma atitude de crítica textual que passa a ser incorporada pelo comparativista, fazendo com que não estacione na simples identificação de relações mas que as analise em profundidade, chegando às interpretações dos motivos que geraram essas relações. Dito de outro modo, o comparativista não se ocuparia a constatar que um texto resgata outro texto anterior, apropriando-se dele de alguma forma (passiva ou corrosivamente, prolongando-o ou destruindo-o), mas examinaria essas formas, caracterizando os procedimentos efetuados. Vai ainda mais além, ao perguntar por que determinado texto (ou vários) é resgatado em dado momento por outra obra. Quais as razões que levaram o autor do texto mais recente a reler textos anteriores? Se o autor decidiu reescrevê-los, copiá-los, enfim, relançá-los no seu tempo, que novo sentido lhes atribui com esse deslocamento? Como se vê, as perguntas se podem multiplicar: elas nascem da relação estabelecida e são justamente essas indagações que podem ampliar o binarismo a que tendiam os habituais paralelos nos estudos de fontes e influências. Elas são como um tertius37, um novo objeto de indagação que desloca para um campo mais amplo de interesses as análises que se restringiam ao confronto de dois elementos. Nesse contexto, os conceitos de “paráfrase”, “estilização”, “paródia” e “apropriação” são importantes. Recentemente, Affonso Romano de Sant’Anna, em Paródia, paráfrase & cia., examinou com argúcia essas questões, prolongando as considerações iniciais de Tynianov e de Bakhtin. O crítico brasileiro percebe que, ao trabalharem apenas com os conceitos de paródia e estilização, os dois estudiosos formalistas tinham deixado a questão em estado embrionário, e Romano de Sant'Anna decide estudá-las juntamente com as noções de paráfrase e apropriação. Foge, então, à dicotomia antes estabelecida, sugerindo três modelos capazes de redefinir os dois primeiros termos, neutralizando o rigor da oposição entre eles. Trabalhando com os conceitos de “efeito”, “desvio”, e “aproximação”, Romano de Sant’Anna colabora para que se entenda melhor os tipos de apropriação efetuados nos textos literários. Dessa forma, é possível compreender que o “diálogo” entre os textos não é um processo tranqüilo nem pacífico, pois, sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas textuais e extratextuais, eles são um local de conflito, que cabe aos estudos comparados investigar numa perspectiva sistemática de leitura intertextual. 37 O terceiro (numa disputa que inicialmente era travada entre dois). 33 Imitação X invenção A noção de intertextualidade abre um campo novo e sugere modos de atuação diferentes ao comparativista. Do “velho” estudo de fontes para as análises intertextuais é só um passo. Mas essa é uma travessia que significa para o comparativista engavetar os antigos conceitos (e preconceitos) e adotar uma postura crítico-analítica que seus colegas tradicionais evitavam. Principalmente, as novas noções sobre a produtividade dos textos literários comprometem a também “velha” concepção de originalidade. Além disso, a tradição já não pode mais ser vista como um fluir natural e linear (a terminologia básica do estudo clássico de fontes dava a entender tal noção ao empregar as expressões “imagens aquáticas e fluidas, correntes, vertentes”). Ao contrário, a tradição se desenha menos sobre as continuidades (a reprodução do “mesmo”) do que sobre as rupturas, os desvios das diferenças. Modernamente o conceito de imitação ou cópia perde seu caráter pejorativo, diluindo a noção de dívida antes firmada na identificação de influências. Além disso, sabemos que a repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto, etc.) nunca é inocente. Nem a colagem nem a alusão e, muito menos, a paródia. Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inventa. Toda apropriação é, em suma, uma “prática dissolvente”. Tomo a expressão de empréstimo a Davi Arrigucci Júnior que, em Achados e perdidos (1979)38, imita o procedimento de “pastiche” empregado por Manuel Bandeira e faz o mesmo com a obra do poeta. O recurso não é novo, utilizou-o Marcel Proust e muitos outros autores. A imitação é um procedimento de criação literária. Sabiam-no os clássicos, que estimulavam a imitação como prática necessária, tanto que a converteram em norma. Isso comprova que a invenção não está vinculada à idéia do “novo”. E mais, que as idéias e as formas não são elementos fixos e invariáveis. Ao contrário, elas se cruzam continuamente e, como observou Machado de Assis, em Esaú e Jacó, as próprias idéias nem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas.39 Um exemplo de intertextualidade: Drummond As noções que examinamos até aqui modificam, sem dúvida, nossa atitude de 38 39 São Paulo: Polis, 1979. p. 170. São Paulo: W. M. Jackson, 1957. p. 145-6. 34 leitor diante dos textos literários. Sabemos que sua legibilidade será maior se os articularmos com os textos esparsos ou fragmentos perdidos que eles recuperam para consumo próprio. O conhecimento do que chamaríamos seus “arquétipos”, portanto, amplia os significados que lhes possamos atribuir. Desse modo, ao lermos um texto, estamos lendo, através dele, o gênero a que pertence e, sobretudo, os textos que ele leu (aí não exclusivamente literários). Para exemplificar vejamos como procedeu Carlos Drummond de Andrade com Gonçalves Dias, em “Nova canção do exílio”, e com Camões, no poema “História, coração, linguagem”. Sabemos que o poema de Gonçalves Dias é possivelmente uma das “fontes” de inspiração mais constantes na literatura brasileira. Affonso Romano de Sant'Anna, no livro antes referido, comenta a apropriação de “Canção do exílio” por Cassiano Ricardo, por Oswald de Andrade e pelo próprio Drummond, em “Europa, França e Bahia”. A lista não pararia aí: há Murilo Mendes, Mário Quintana e ainda outros, inclusive um prosador que se aventura na métrica e compõe sua “Canção do exílio”, Dalton Trevisan, em Carnaval de sangue. Mas a intenção não é aqui de rastreio. É de leitura intertextual. Vemos que um poema lê outro e queremos saber como e por quê. Interessa chamar a atenção para o fato de que, em nenhuma das duas situações (com Gonçalves Dias ou com Camões), Drummond oculta o que lê. No primeiro caso, indica o procedimento de leitura no próprio título. No segundo, como se verá, no próprio poema. Ao confrontarmos o poema de Gonçalves Dias com o de Drummond, percebemos o paralelismo logrado no segundo texto: os dois poemas têm o mesmo número de estrofes, e estas, o mesmo número de versos. Também os elementos básicos e indicativos do “lá” (sabiá, palmeira) estão reproduzidos fielmente no poema de Drummond. Mas esse paralelismo diagramático é traiçoeiro. O leitor que pensasse numa reprodução fiel, diria do poema que é um exercício de reescrita. Porém, identificadas todas as muitas correspondências que existem do segundo para o primeiro texto, a análise delas começa a ser reveladora. Verificamos que a montagem realizada, o deslocamento sutil dos elementos nas estrofes, a desmitificação deles (não é mais “O Sabiá”, mas “um sabiá”), tudo indica a perspectiva crítica, o olho agudo do observador que transporta o jogo do “cá” e do “lá” para a realidade brasileira dos anos quarenta (o poema está em A rosa do povo, de 1945), caracterizando o exílio no próprio país. O território mágico do “lá” não é mais visto de Portugal (Gonçalves Dias escreve o poema 35 em Coimbra, 1843); cem anos depois, o “lá” é uma situação perdida no próprio país (por isso, na última estrofe, o pássaro emblemático volta a ser definido: “o sabiá”). Essa situação se configura como o “longe”, a ser resgatado. Mesmo que não se possa, aqui, detalhar a análise textual, já se pode perceber o que faz Drummond com o poema de seu antecessor: ele o atualiza, o reescreve no seu momento histórico. Recria não a saudade nostálgica do primeiro, mas a sensação de exílio no próprio país. O poema de Drummond “dialoga” com o texto anterior, dizendo-lhe de sua impossibilidade. Se ao refazer um poema, pertencente ao mesmo sistema literário, Drummond firma as origens e fortalece a relevância do texto inaugural, também o converte num texto datado. Por isso, os recursos formais são outros, como igualmente outros são os significados que expressa. Cabe perguntar por que escolheu esse poema entre tantos? Seguramente é possível prever que talvez nenhum outro texto desse a Drummond (nem ao leitor) a possibilidade de reler o Brasil, um século depois. Já não há aqui a paráfrase que Romano de Sant’Anna constata em “Europa, França e Bahia”; haveria, é certo, um procedimento que está a meio caminho entre a estilização (do sentido) e a paródia (formal), e é graças a esse segundo recurso que ocorre o “distanciamento” absoluto, capaz de trazer o texto para o momento drummondiano, para os conflitos sociais e políticos que o marcam, o domínio da experiência do autor, a história. A mesma visão crítica dos acontecimentos históricos orienta o poema “História, coração, linguagem”, de A paixão medida (1983). Os versos iniciais dão a tonalidade básica do poema: Dos heróis que cantaste, que restou senão a melodia do teu canto? As armas em ferrugem se desfazem os barões nos jazigos dizem nada (p. 89). No diálogo travado com Camões, o poeta brasileiro relê a história e sua falência. Há aqui um cruzamento de idéias que se concretiza no cruzamento de vozes. O poeta brasileiro traz para o seu poema os versos camonianos e os reemprega num processo autocorrosivo: são eles que se desdizem, não na estrutura formal mas no sentido. Portanto, há uma inversão do processo antes utilizado: agora a própria tonalidade é camoniana (e essa adesão se espalha em todo o volume, sob várias formas), mas o que é alterado, substancialmente, é o sentido. E nessa alteração está a qualidade histórica do poema, que instiga mais do que o simples confronto de semelhanças ou diferenças entre os textos. Essas duas sugestões de leitura intertextual, nas quais não houve a busca 36 obsessiva dos “trechos paralelos”, querem ilustrar mesmo de maneira muito incompleta, que o binarismo, entendido como vaivém entre dois pólos, pode ser ampliado para uma indagação que formule a relação entre os textos e a interprete. Trata-se de explorar criticamente os dois textos, ver como eles se misturam e, a partir daí, como, repetindo-o, o segundo texto “inventa” o primeiro. Dessa forma ele o redescobre, dando-lhe outros significados já não possíveis nele mesmo. Após a pausa, voltemos à teoria. Édipo e Laio na encruzilhada As interferências de um texto em outro, numa perspectiva também intertextual, servem de base para as reflexões de Harold Bloom no livro The Anxiety of Influence.40 O autor quer estabelecer uma teoria da poesia através da descrição das influências poéticas e se propõe atingir dois objetivos que classifica como “corretivos”: 1.°) desmitificar os procedimentos pelos quais um poeta ajuda a formar outro poeta; 2.°) esboçar uma poética (teoria) que colabore para uma mais adequada prática crítica. Bloom não distingue entre história da poesia e influências poéticas, pois, para ele, os grandes poetas fizeram essa história deslendo outros, de maneira a criar espaço imaginativo para si próprios. Para o autor, a relação dos grandes poetas entre si é conflituada: trava-se entre eles uma verdadeira luta de Édipo e Laio, entre filho e pai, num processo continuado de apropriações. O sistema de filiações traçado por Bloom ganha uma interpretação psicologizante, pois cada apropriação, segundo ele, provoca uma grande ansiedade de dívidas. Todo poeta, portanto, sofre da “angústia da influência” — espécie de complexo de Édipo do criador, que o moveria a transformar os modelos que absorve de diferentes maneiras. O autor designa com termos clássicos esses procedimentos, classificando-os em seis tipos. O primeiro — “clinamen” — indicaria uma correção dissidente, isto é, o poeta desvia-se de seu precursor, corrigindo o poema que lê e orientando-o para um ponto além dele mesmo, onde deveria ter chegado e não conseguiu. O segundo, “tessera”, é o que dá acabamento, ou seja, um poeta antitético “completa” seu precursor. Já “kenosis” é um movimento de esvaziamento do poema-pai, no sentido de uma ruptura com este, enquanto “daemonization”, o quarto tipo, é uma abertura do poema anterior de conseqüências insuspeitadas, pois o poeta mais recente se inspiraria não no próprio 40 New York: Oxford University Press, 1973. 37 poema, mas em algo que está por detrás dele e que o anima. O quinto tipo, “askesis”, indicaria uma autopurgação. Nesse caso, o poeta mais recente não realiza, como em “kenosis”, um esvaziamento do poema precursor, mas sim uma mutilação ou corte. A ruptura, portanto, é ainda mais radical. Ao romper com o pai, o poema novo atinge um estado de solidão, fechando-se a qualquer outra influência e punindo a si mesmo. Finalmente, o sexto tipo, denominado “apophrades”, expressa um retorno ao ponto de origem, ao proto-sentido perdido, de maneira que o poema novo pareça ser o trabalho precursor e não sua conseqüência. Embora aqui sintetizada muito rapidamente, a proposta de H. Bloom é instigante, e agrada a fluência metafórica com que a apresenta. Como se viu, a realização do poema corresponde, em sua proposta, à desvirtuação de poemas paternos a que a obra recente se filia, ansiosamente. Para ele, o poema não é uma vitória sobre a ansiedade, é a própria ansiedade. Por isso, cada poema é a disputa entre Édipo e Laio, a cristalização de um atrito. É preciso deixar claro que Bloom caracteriza as influências como males benéficos, pois são elas que dinamizam o processo de evolução literária. E a influência, nesse contexto, deixa de ser negativa, porque não ameaça a originalidade. Assim, dirá que não é a influência que faz um poeta menos original: “às vezes o faz mais original, embora não necessariamente melhor” (p. 7). A teoria de Bloom tem seu fascínio. Apesar das restrições que se lhe possam fazer por sua natureza psicologizante e sua terminologia excessivamente marcada por essa orientação, ela se alinha entre as propostas que ajudam a repensar os problemas que interessam ao comparativista. É certo que sua proposição se autolimita ao montar-se apenas com relação a grandes poetas. Além disso, não examina a possibilidade de que, na construção do poema, coexistam influências de outra natureza que não a poética. Ocupa-se apenas com os caminhos escondidos que vão de poema a poema, analisando somente “the poet in a poet”. Os aspectos formais dos poemas ficam, nessa perspectiva, relegados. Para ele, tudo se reduz a um conflito de gerações e a uma série de mecanismos de defesa que, acionados, regem as relações intrapoéticas. Apesar disso, contribui para a reflexão sobre a literatura comparada, porque obriga a que se contraponha a sua teoria à da intertextualidade, tal como J. Kristeva a formulou. Nesta, há uma espécie de despersonalização do processo criador: a ênfase recai no texto. H. Bloom se coloca no outro extremo: a obra como representação de um conflito do processo criador, intimamente relacionado com o autor. Sua “desleitura poética” ou “violação”, como a chama, é o estudo do ciclo vital do poeta como poeta. Várias 38 afirmações que faz e procedimentos textuais que expõe recolocam a questão das relações entre os textos de forma bastante instigante e nos levam a reconsiderar de um ângulo inusitado o conceito de tradição literária, que nos ocupará nas páginas seguintes. A tradição segundo T. S. Eliot Se a teoria de Harold Bloom nos obriga a refletir sobre a forma convencional de buscar fontes e influências, colocando sob novos parâmetros os conceitos de tradição e de originalidade, sem dúvida foi T. S. Eliot quem primeiro nos encaminhou para essa reflexão e, logo a seguir, Jorge Luís Borges. Eliot, em 1917, no conhecido ensaio “A tradição e o talento individual”41, no qual discute o fazer poético, a crítica e a poesia, sustentou noções que são básicas para uma renovação dos estudos literários comparados. Ao comentar a inclinação natural do leitor de buscar a peculiaridade de um poeta, sempre que o aprecia em relação a outros, Eliot observa: Insistimos com satisfação na diferença do poeta em relação a seus predecessores, especialmente a seus predecessores imediatos; nós nos empenhamos em achar algo que possa ser isolado para fins de apreciação (p. 37-8). Mas, segundo o autor, ao nos aproximarmos de um poeta com tal preocupação, surpreendemo-nos pois freqüentemente acharemos que não apenas o melhor mas também a parte mais individual de seu trabalho pode ser justamente aquela com a qual seus antecessores garantiram a imortalidade (p. 38). Como se constata, na reflexão de Eliot, o dado de diferenciação, buscado inicialmente, acaba sendo o elemento que associa o grande autor a outros grandes que o antecederam, pois é justamente a singularidade que os peculiariza. Para Eliot, não é a semelhança, portanto, que define uma tradição, pois, se a única forma de tradição fosse seguir o comportamento da geração imediatamente anterior, a tradição deveria ser desencorajada. Tradição, para Eliot, tem um sentido bem mais amplo, é algo não herdado, mas obtido com muito esforço, envolvendo, antes de tudo, um senso do histórico. Este “historical sense” de que nos fala consiste numa percepção não só do passado, mas de sua atualidade no presente. É ele que compele o escritor a escrever não apenas como os de sua geração, mas com um sentimento de que a totalidade da literatura tem existência simultânea e compõe uma ordem geral. Eliot vai ainda mais longe. Afirma que 41 Selected prose of T. S. Eliot. London: Faber & Faber, [1917] 1975. Existe tradução brasileira: ELIOT, T.S. Tradição e talento individual. In: –––. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1985. 39 nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem valor isolado. Seu significado, sua apreciação é feita em relação a seus antecessores. Não é possível valorizá-lo sozinho, mas é preciso situá-lo, por contraste ou comparação, entre os mortos (p. 38). Suas considerações são ainda mais importantes quando se refere ao surgimento de uma obra nova que rompe com o que a antecedera. Diz, então, que a nova obra modifica a ordem existente ao alterar a nossa compreensão; assim, o que acontece quando uma nova obra de arte é criada ocorre simultaneamente com todos os trabalhos de arte que a precederam. Desse modo, o passado pode ser alterado pelo presente tanto quanto este é dirigido pelo passado. É justamente essa interação entre passado e presente que permitirá esclarecer a diferença entre os dois. Como diz, a diferença entre o presente e o passado é que o presente consciente corresponde a um entendimento do passado de uma maneira e numa escala que a consciência que esse passado tem de si mesmo não pode mostrar (p. 39). A síntese dos pressupostos eliotianos foi necessária para que se veja como eles abalam a noção convencional de modelo, pois se distanciam da idéia de reprodução para se ampliarem num significado maior, de atitude crítica que a nova obra adota em relação àquelas que a antecederam. Nessa perspectiva, cada obra lê a tradição literária, prolonga-a ou rompe com ela de acordo com seu próprio alcance. A noção de originalidade, vista como sinônimo de “geração espontânea”, criação desligada de qualquer vínculo com obras anteriores, cai por terra. Na verdade, os conceitos de originalidade e individualidade estão intimamente vinculados à idéia de subversão da ordem anterior, pois o texto inovador é aquele que possibilita uma leitura diferente dos que o precederam e, desse modo, é capaz de revitalizar a tradição instaurada. Essa capacidade de inverter o estabelecido, de instigar uma releitura, se dá graças à interação dialética e permanente que o presente mantém com o passado, renovando-o. Assim, a cada passo a tradição pode ser virada do avesso e lida de trás para diante. É justamente essa a lição de J. L. Borges, que examinamos a seguir. J. L. Borges e a função dos “precursores” Paul Valéry, quando trata da composição de seu célebre poema “O cemitério marinho”, menciona, em certo trecho, o gosto perverso da retomada indefinida e a tolerância pelo estado reversível das obras.42 42 Au sujet du cimetière marin. In : VALÉRY, Paul. Variété. Oeuvres I. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1957. p. 1503. 40 Quando tomamos contato com o mundo labiríntico de Jorge Luis Borges e com as múltiplas referências sobre a criação literária dispersas em sua vasta obra, este pensamento de Valéry parece explicar o sentimento que move muitas vezes o escritor argentino, sempre pronto a baralhar os dados, a desfazer o já feito e a ver os fatos sob um ângulo inovador. No ensaio intitulado “Kafka e seus precursores”43, Borges age justamente assim, colocando em questão noções clássicas como os conceitos de originalidade, filiação e hierarquia cronológica na produção literária. Ao iniciar o ensaio, Borges parece empreender uma investigação de fontes (ou precursores), no sentido bem tradicional, e as registra em ordem cronológica. Cita, inicialmente, o paradoxo de Zenon contra o movimento, depois refere um apólogo de Han Yu, prosista do século IX, segue pelos escritos de Kierkegaard, passa pelo poema “Fears and Scruples” de Browning (1876), para chegar até dois contos: um de León Bloy e outro, intitulado “Carcassonne”, de Lord Dunsany. No entanto, ao retraçar esse caminho, Borges não adota critérios de gênero, como os comparativistas tradicionais o fazem na maioria dos casos. Sem a obsessão de trecho paralelo nem da “fonte segura de contato direto e comprovável”, antes exigida, basta-lhe uma simples afinidade de forma, às vezes apenas de tom. Mas o mais interessante são seus comentários finais, onde diz que os textos heterogêneos que selecionou se parecem aos de Kafka embora não se pareçam entre si. Contudo, em cada um desses textos está a idiossincrasia de Kafka, em grau maior ou menor, mas se Kafka não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria. E ainda acrescenta: O poema “Fears and Scruples” de R. Browning profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina e desvia sensivelmente nossa leitura do poema. Pois, como dirá, Browning não o lia como agora nós o lemos (p. 711). Como se vê, para Borges, é o texto de Kafka que faz realçar o texto anterior e lhe dá sentido. Ele o revaloriza ao convertê-lo em um de seus precursores. Desse modo, se dívida há, é do texto anterior com aquele que provoca sua redescoberta e não, como queria Harold Bloom, deste para com aqueles que suposta ou realmente os influenciaram. Assim, Borges desloca o ângulo de observação, reverte a cronologia, quebra com o sistema hierárquico que nela se apoiava. Ao fazê-lo, abala não só a noção de “dívida” como também permite que a interação entre os textos seja entendida sob outro prisma. O pensamento de Borges se sintetiza ao dizer que 43 In: BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Obras completas.Buenos Aires: EMECE, 1974. 41 o fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção de passado como há de modificar o futuro (p. 712). Portanto, o texto novo, o que subverte a ordem estabelecida, o que impulsiona a tradição e obriga a uma releitura desta, é o que se converte em ponto de referência obrigatório e fundamental, não importando a localização em que se encontra no sistema literário. É fácil perceber que não estamos longe das noções de T. S. Eliot, quando este caracteriza a subversão ocorrida na tradição firmada sempre que o talento individual se manifesta. Nessa perspectiva entendemos, então, como o conhecimento do teatro do absurdo favoreceu a redescoberta de um autor como Qorpo Santo e as vanguardas literárias dos anos 60 promoveram uma reavaliação de autores como Gregório de Matos e Sousândrade. O processo dialético que se estabelece entre os textos, como um infindável jogo de espelhos (tão ao gosto de Borges) faz com que uns iluminem e resgatem outros. Mas Borges ainda leva a reflexão a outros limites quando diz que nesta correlação nenhuma importância tem a identidade ou a pluralidade dos homens. O primeiro Kafka de Betrachtung é menos precursor do Kafka dos mitos sombrios e das instituições atrozes que Browning ou Lord Dunsany (p. 712). Ao tocar nos escaninhos da produção literária, Borges abre uma brecha nas também firmadas noções de autoria e originalidade, que não deixará de questionar como adiante se verá. Ainda Borges: as noções de autoria e originalidade No conto “Pierre Menard, autor do Quixote”44, de Jorge Luís Borges, o narrador está às voltas com a produção literária deixada pelo personagem que intitula a narrativa. Na listagem bibliográfica das obras de Menard, ele procura em vão uma referência ao projeto de reescrever o Dom Quixote, tal como seu amigo lhe revelara em carta antes de sua morte. Não encontrando rastro dessa elaboração na produção legada por Menard, o narrador se encarrega de relatar ele mesmo o que considera uma tarefa subterrânea, a interminavelmente heróica, a ímpar. Essa obra, talvez a mais significativa de nosso tempo, consta dos capítulos nove e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois (p. 446). Na verdade, Pierre Menard não pensara fazer uma transcrição mecânica do original espanhol, pois sua admirável ambição era produzir umas páginas que coincidissem — palavra por palavra e linha por linha — com as de Miguel de Cervantes (p. 44 In: BORGES, J. L. Ficciones. Obras completas. Buenos Aires, EMECE, 1974. Leia-se a análise desse conto feita por SANTIAGO, Silviano. Eça, autor de Madame Bovary. In: ________ . Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. 42 446). Assim, o texto que Menard produzira era idêntico ao do autor espanhol. Mas ao confrontar dois fragmentos perfeitamente iguais, o narrador borgiano os considera totalmente diferentes. E nessa confrontação, aparentemente absurda, tudo começa a ganhar sentido: os textos são na aparência iguais, mas a face invisível deles, a que se revela pelo deslocamento temporal efetuado (o texto de Cervantes reaparece idêntico três séculos depois), modifica integralmente o significado. A reprodução de Menard logra outros sentidos interpretativos, graças ao novo contexto em que ela é relançada. O deslocamento no tempo e no espaço resulta, portanto, benéfico. Ao copiar o Dom Quixote, Menard o reconstrói. Sob a pena de um autor deste século, as idéias de Cervantes surgem com nova roupagem; ganham interpretações renovadoras, que somente um leitor do século XX lhes poderia dar. Cobre as palavras, agora, uma capa de ambigüidades, de duplos sentidos, que as enriquecem. Também o estilo cervantino ganha realce: natural e espontâneo em seu tempo, tem, no nosso, um sabor arcaizante. O anacronismo deliberadamente implantado no conto ilustra, como diz o narrador ao final, uma possibilidade de inversão de cronologia que a história literária nos moldes habituais não considera. Assim, a partir da reescrita do Quixote por P. Menard, podemos recorrer à Odisséia como se fora posterior à Eneida e ao livro O jardim do centauro de Mme. Henri de Bachelier como se fora de Madame Henri de Bachelier (p. 450). Ao neutralizar os direitos de autoria (Pierre Menard é também autor do Quixote), convertendo em ficção a própria condição de autor (sob a máscara de Menard está Cervantes), o conto propõe uma livre circulação dos textos, que nos permitiria, como diz Borges, “atribuir a Louis-Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo” (p. 450). Nesse conto, portanto, Borges não só coloca em questão o conceito de originalidade na sua acepção convencional como também aspectos da vinculação de uma obra com seu autor. Observe-se que o narrador irá considerar a produção de Menard originalíssima, mais original que seu modelo. Por outro lado, o Dom Quixote de Cervantes passa a ser também obra de um desconhecido que, ao reproduzi-la sem alterações, assume sua autoria no século XX. A capacidade de invenção desse suposto autor não atua diretamente nos dados formais do texto mas na interpretação que ele recebe quando as coordenadas de tempo e de espaço lhe alteram o sentido. Diante das considerações de Borges, o estudo clássico de fontes sofre grande abalo, já que nele as noções de autoria e de precedência cronológicas eram os dados básicos de afirmação de originalidade. Além disso, todo o conto pode ser compreendido 43 como metáfora do próprio ato de ler, enquanto processo produtivo de novos significados. E este Pierre Menard, anônimo, converte-se no leitor que, por sua atuação, relança o texto no tempo que é o seu e no contexto a que pertence. Torna-se, assim, uma espécie de co-autor se entendermos a leitura também como uma forma de reescrita interminável. A recepção produtiva O conto de J. L. Borges enfatiza, como se viu, a figura do leitor-criador e sua atuação no processo de criação literária. Tais reflexões sobre os procedimentos de produção textual e sobre o destino dos textos colaboram para a reformulação de alguns conceitos básicos sobre o literário e interessam, portanto, ao comparativista, levando-o a modificar sua atuação. Também os estudos teóricos sobre os processos de recepção dos textos literários contribuem diretamente para essa modificação. Ao final dos anos 60, surge a chamada “teoria da recepção”, também conhecida como “estética da recepção”, que desloca o foco de interesse da crítica moderna para a figura do leitor. Terá sido essa, talvez, a reação mais forte contra a posição de leitura “imanente” proposta pelos formalistas e seguida, depois, pelos estruturalistas mais ortodoxos. Hans Robert Jauss45, um dos representantes mais conhecidos da Escola de Constanza, onde surge esse movimento, tenta recuperar a dimensão histórica para a interpretação literária, seguindo os passos do filósofo Hans Georg Gadamer, cuja teoria hermenêutica previa a intervenção do leitor, e de Jan Mukarovsk, que distinguia entre o texto e o significado que ele ganha na consciência leitora. Jauss pretende que, reconstruindo o “horizonte de expectativa” dos receptores (ou seja, seu sistema de referências: gênero, forma, tema), se possa determinar a situação histórica de cada obra literária. Para ele, as reações do público e as opiniões da crítica podem-se tornar um critério de análise histórica. Não é difícil de entender por que Jauss irá questionar a concepção tradicional de história literária e seu critério cronológico. Sua reflexão é contrária a que se examine apenas a obra em si mesma, pois, como diz, até a tradição não se constrói sozinha, depende da recepção que o público dá às obras. Desse modo, a obra não pode mais ser vista como algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como um objeto mutável por efeito das leituras que a transformam. Por isso, os estudos comparados, que tradicionalmente se ocupam com a investigação do destino das obras e com a migração de motivos, temas e personagens de uma literatura para outra, devem, necessariamente estar atentos a essas considerações 45 Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. Sobre o assunto, veja-se ainda LIMA, Luiz Costa, org. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 44 46 teóricas. Juntamente com os estudos de Robert Escarpit , que exploram as relações entre o literário e o social e tendem a ver a literatura como um fenômeno de três dimensões, além da dupla “autor—obra”, as recentes contribuições da estética da recepção fortalecem metodologicamente os estudos comparados, auxiliando o comparativista a lidar com os dados de sustentação do sistema literário (edições, traduções, etc.) que, em estudos dessa natureza, têm sido fundamentais. Vejamos mais detalhadamente como os estudos de recepção literária repercutiram na atuação comparativista ganhando, nesta, um sentido específico. Para a literatura comparada, a recepção de uma obra não é um objeto de análise isolado, um fim em si mesma, mas seu estudo é uma etapa das relações interliterárias genéticas (nascidas dos contatos, diretos ou não). No horizonte do comparativista está o “autor enquanto leitor” e todos os aspectos da recepção de uma obra estrangeira num determinado contexto que possam ter importância para o autor enquanto leitor e para a sua eventual recepção pessoal. Assim, tornam-se objeto da investigação comparativista a tradução da obra, o aparato crítico que a acompanha, os dados da edição. O conhecimento da ressonância de uma tradução, das leituras críticas que ela provoca diz muito sobre a obra mas também sobre o sistema literário que a acolhe. Isso porque, como diz Yves Chevrel em Literatura comparada47, “traduzir, editar uma tradução, não significa apenas se ocupar com uma operação de natureza lingüística, é também tomar uma decisão que põe em jogo um equilíbrio cultural e social”. A tradução de um texto raramente é independente do sistema que está destinado a acolhê-la e, por isso, uma tradução “dinâmica” (quer dizer, que se constitui em fator de troca cultural, de contínua e mútua fecundação) é aquela que integra o texto traduzido na tradição do sistema que o acolhe. Ao mesmo tempo, os elementos que acompanham a tradução são significativos, seja o próprio processo da tradução quando o tradutor esclarece por que o livro foi traduzido e mesmo como o foi, seja a crítica que a analisa e tem, por vezes, papel decisivo na orientação da recepção daquele texto, situando os leitores e preparando-os para a sua leitura. Tanto o texto traduzido como os comentários daqueles que o analisam no meio em que se difunde funcionam como “intermediários”. Esse conjunto de elementos nos permite saber mais sobre a própria obra, tendo em vista o contexto literário a que originalmente pertence, mas também sobre o novo contexto no qual ela se integra. A noção de “fusão de horizontes”, emprestada a H. G. Gadamer, quando diz que o horizonte contemporâneo é resultante da fusão do horizonte da história com o do 46 47 Sociologie de la littérature. Paris: PUF, 1958 e Le littéraire et le social. Paris : Flammarion, 1970. Paris: PUF, 1989. p. 18. 45 intérprete, ganha uma dupla configuração em literatura comparada: a equação hermenêutica passa a levar em conta o fato de que há uma nova “fusão de horizontes”, isto é, à do horizonte primeiro se acrescenta a do horizonte de uma cultura diferente daquela a que a obra pertencia. Nesse contexto é preciso sublinhar que a obra literária em estudo sofreu um deslocamento, ela “migrou” da tradição original onde surgiu para incluir-se em uma outra contemporaneidade, que se fundamenta em uma tradição diferente e onde ganha outras conotações lingüísticas. Nesse caso, a interpretação deve ser verdadeiramente “construída”, permitindo a compreensão do meio literário no qual a obra agora se inscreve. Os conhecimentos da hermenêutica aplicados à literatura comparada favorecem a definição do que se convencionou chamar de “situação hermenêutica”, isto é, das condições de compreensão e de interpretação de uma dada obra e dos processos literários quando eles “migram” de um sistema literário para outro. Permitem, enfim, que no estudo de uma determinada obra ou de determinado escritor se identifiquem as interpretações dominantes, que derivam do contexto literário e social da época e que dirigem a recepção daquela obra ou daquele escritor. Assim, em literatura comparada, nesse tipo de estudo, a interpretação é uma “metainterpretação”. Os estudos de recepção literária contribuíram ainda para um entendimento diferente do conceito de influência. Na formulação tradicional, o processo era apenas interpretado numa única direção: do emissor para o receptor, tendo este um papel passivo de quem “sofre” a influência. Os estudos de literatura comparada mais recentes consideram o receptor como determinante no processo interliterário e ressaltam, portanto, a dupla direção dos influxos. Por outro lado, os estudos de recepção e os estudos sobre influências se completam; os segundos têm necessidade dos primeiros, pois como apreciar o que determinado autor absorveu de outro ou de uma dada tradição literária se ignorarmos integralmente como teve acesso, por que intermediários se estabeleceu a relação nítida em sua obra. Mesmo que a verificação do contato não seja indispensável, as ligações efetuadas nos permitirão esclarecer muito do procedimento produtivo de um autor. Yves Chevrel, na obra já referida, chama a atenção também para a rentabilidade dos estudos de “recepção comparada”, ou seja, estudos da acolhida de uma obra literária em pelo menos duas áreas culturais diferentes. Uma confrontação desse tipo possibilita não apenas o confronto entre dois sistemas literários mas também nos leva a obter sobre determinada obra esclarecimentos contrastados, acentuando certas possibilidades de leitura nela contidas. A interdisciplinaridade A articulação entre teoria literária e literatura comparada foi indispensável ao novo 46 impulso que receberam os estudos comparativistas mostrando-se rentável e benéfica. Vários aspectos das relações interliterárias passaram a ser analisados sob outra óptica e com outros objetivos, os estudos sobre tradução ganharam uma posição central na reflexão comparativista e os trabalhos sobre história literária tomaram novas direções. Outros campos da investigação comparativista também progrediram com o reforço teórico, entre eles o das relações interdisciplinares. Literatura e artes, literatura e psicologia, literatura e folclore, literatura e história se tornaram objeto de estudos regulares que ampliaram os pontos de interesse e as formas de “pôr em relação”, características da literatura comparada. Algumas obras foram decisivas para o avanço desses estudos. Além do já citado livro de Ulrich Weisstein, há que lembrar os estudos pioneiros de Calvin S. Brown, sobre as relações entre música e literatura, desde 1948, de Th. Munro, The arts and their interrelations (1949), o volume editado por James Thorpe, Relations of literary study: essays on interdisciplinary contributions48 e Interrelations of literature, editado por Barricelli & Gibaldi, em 1982.49 Esses trabalhos expressam a tendência comum de ultrapassar fronteiras, sejam elas nacionais, artísticas ou intelectuais, mas igualmente de explorar o imbricamento da literatura com outras formas de expressão artística e outras formas de conhecimento. Acentua-se, então, a mobilidade da literatura comparada como forma de investigação que se situa “entre” os objetos que analisa, colocando-os em relação e explorando os nexos entre eles, além de suas especificidades. Os estudos interdisciplinares em literatura comparada instigam a uma ampliação dos campos de pesquisa e à aquisição de competências. Essa ampliação se reflete nas conceituações mais atuais de literatura comparada como a que nos dá Henry H. H. Remak considerando-a o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo das relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, música), a filosofia, a história, as ciências sociais (política, economia, sociologia), as ciências, as religiões, etc., de outro. Em suma é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana.”50 Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma específica de interrogar os textos literários na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artística. 48 The Modern Language Association of America. New York, 1967. The Modern Language Association of America. New York, 1982. 50 Comparative literature – its definition. In: STALLKNECHT, N. P. & FRENZ, H. Comparative literature; method and perspective. Revised edition. Illinois: Illinois University Press, 1971. 49 47 5 Literatura comparada e dependência cultural Analogia e dependência Como vimos até agora, diversos autores nos ajudam a pensar sobre noções que são fundamentais para os estudos literários comparados e que, vistas sob outro prisma, permitem a revitalização dos estudos de fontes e de influências, que sempre foram o cavalo de batalha do comparativismo tradicional. Convém nos determos ainda no que foi um aspecto vital para aqueles estudos: a busca de analogias. Ao empreenderem a investigação da “fortuna de um verso” ou das “fontes remotas” de determinado texto, os comparativistas clássicos tinham uma idéia fixa: identificar a semelhança ou identidade entre as obras aproximadas. Daí a formação dos longos paralelismos, já referidos e criticados. Mas havia nesse procedimento uma outra intenção: estabelecida a analogia, instalava-se o débito. E a relação se convertia num saldo de créditos e débitos. É possível ainda descobrir, subjacente a esses procedimentos e a essas conclusões, outra intenção mais oculta: a demarcação da dependência cultural. Reconhecida a semelhança, contraída a dívida, chegava-se, com naturalidade, a uma conclusão: a dominação cultural de um país (de uma cultura) sobre outro (ou outra). Na prática mais convencional, isso deixava transparecer uma ideologia colonizadora, que fortalecia os sentimentos nacionais. Vista assim, a literatura comparada tinha uma falsa feição de internacionalismo e de espírito de abertura e aceitação. Investigar uma influência, cavoucar as fontes, significava descobrir que determinada cultura era superior a outra, portanto, dominante. Tal perspectiva só podia beneficiar os sistemas culturais consolidados, dos quais os mais novos seriam sempre “parentes pobres” ou herdeiros remotos. Em geral, retardatários, pois acabavam recebendo tardiamente o que já deixara de ser “a ordem do dia” no país de origem. A formação de linhagens ou “famílias” não estava longe desse sentido: crescia a importância de um autor quando era possível dizer que ele pertencia à casta de um nome célebre. A dívida sempre estigmatizando a produção mais recente: ou bem ela é devedora (portanto, copiadora, simples reprodução sem originalidade), ou bem ela tem valor por “parecer-se” com a obra que a antecedeu. Nesse contexto, a “fonte remota” torna-se um valor do qual dependem as obras que influencia. Com razão Silviano Santiago aponta 48 esse dado em seu estudo “O entrelugar do discurso latino-americano”, que abre o volume intitulado Uma literatura nos trópicos. Vale a pena transcrevê-lo: A fonte torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar, contamina, brilha para os artistas dos países da América Latina, quando estes dependem da sua luz para o trabalho de expressão. Ela ilumina os movimentos das mãos, mas ao mesmo tempo torna os artistas súditos de seu magnetismo superior. O discurso crítico que fala das influências estabelece a estrela como único valor que conta (p. 20). E completa mais adiante: Seja dito entre parênteses que o discurso crítico que acabamos de delinear nas suas generalidades, não apresenta em sua essência diferença alguma do discurso neocolonialista: os dois falam de economias deficitárias (p. 20). Para isso, como dirá, há uma solução: um novo discurso crítico, o qual por sua vez esquecerá e negligenciará a caça às fontes e às influências e estabelecerá como único valor crítico a diferença (p. 21). Diferença e dependência Articulados esses dois termos e entendida a vinculação entre eles, a diferença deixa de ser compreendida apenas como um simples objeto a ser buscado em substituição a analogias; é mais do que isso, é recurso preferencial para que se afirme a identidade nacional. Contra os riscos da analogia, as armas do contraste, pois é a diferença que permite nossa inserção no universal. Por isso, comparar é contrastar. Ou é também contrastar, como disse Antonio Prieto no lúcido prefácio à obra de Ulrich Weisstein (1975), já referida: O campo da literatura comparada não se exaure com a preferência pela indagação de temas comuns praticada por uma parte da escola comparativista alemã, nem se acaba com a perseguição de fontes literárias que defendeu uma parcela da escola francesa. [...] Tão próprio da literatura comparada é a busca de afinidades como o estudo daqueles contrastes que, comparativamente, servem de forma esclarecedora para caracterizar uma literatura ou um autor (p. 17-20), Ao sublinhar a importância do que denomina “caminho caracterizador dos contrastes”, A. Prieto redimensiona a atuação comparativista, que não pode mais encaminhar-se numa única direção, da Europa para as literaturas periféricas (a busca de analogias), mas pode reverter a direção sobre si mesma, da periferia para o antigo centro. A voracidade antropofágica Em 1928, Oswald de Andrade já tentara mudar a rota. O projeto antropófago, transcrito como Manifesto no primeiro número da Revista de Antropofagia (1928 - 1929), 49 indaga a própria cultura — “Tupy, or not tupy, that is the question” —, numa linha que refuta toda e qualquer importação e se sustenta no discurso do “contra”. A proposta é radical: nega a vinculação do presente com o passado histórico (“nunca fomos catequizados”, “a nossa independência ainda não foi proclamada”) e se concretiza num procedimento canibalesco: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago''. Reata os laços com uma sociedade primitiva e com o bom selvagem de Rousseau, proclamando a devoração para “a transformação permanente do Tabu em Totem”. Na perspectiva aberta por Oswald de Andrade, a devoração do estrangeiro é decisiva para a construção de uma síntese nacional. Trata-se de inverter o processo: passar de devorado a devorador. Haroldo de Campos, no ensaio “Da razão antropofágica: a Europa sob o signo da devoração”, explica-nos que a antropofagia Oswaldiana não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor uma “transvaloração”: uma visão crítica da História como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado nos é “outro”, merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado (p. 11-2). A intenção modificadora da proposta Oswaldiana é muito clara; por isso o crítico aplica o termo “transculturação”, para acentuar o processo de transformação cultural caracterizado pela influência de elementos de outra cultura, acarretando a perda ou a alteração dos já existentes. Oswald parece ser o exemplo vivo do que ele mesmo propõe, ao passar da teoria à prática com relação a Blaise Cendrars, apropriando-se de certos recursos poéticos deste para integrá-los a seu próprio texto, modificando-os. Haroldo de Campos explica isso muito bem: Oswald pediu-lhe emprestada a máquina fotográfica e retribuiu-lhe a gentileza, comendo-o (p. 12). O exemplo ilustra a agressão contida no projeto antropófago. É agora o representante da cultura periférica e dependente que investe contra a do colonizador, mutilando-a, espremendo-lhe o suco para extrair dela apenas o que lhe serve. Assimila somente o que lhe convém. O procedimento “devorador” não está muito distanciado das relações efetuadas entre os textos, do qual cabe à intertextualidade dar conta (por isso, talvez, a proposta antropofágica tenha despertado tanto o interesse dos comparativistas nos últimos dez anos). E é justamente aí que podemos chegar para refletir sobre essa estratégia de reversão, quando empregada nos estudos literários comparados. É preciso atentar para o risco de cair no extremo oposto. Se antes, no comparativismo tradicional, a direção era única — da cultura dominadora para a dominada —, comprometendo toda a atuação ao 50 torná-la determinista e restringindo o ângulo de visão, adotar a perspectiva antropofágica consistiria em inverter essa direção, apenas. Dito de outra maneira, passaríamos de uma radical postura de admiração passiva e incondicional pelas culturas européias a outra atitude, igualmente radical, de fechamento num “autobastar-se” nacionalista. A proposta antropofágica é, sem dúvida, fascinante. Mas dela o que parece ser mais rentável para os estudos comparados não é apenas a reversibilidade do processo; portanto, não é a devoração (assimilação) vista no seu sentido mais superficial, mas compreendida no seu caráter seletivo, como capacidade crítica de selecionar do alheio o que interessa. A antropofagia Oswaldiana abre caminhos, articulando os dois pólos — o das literaturas periféricas e o das literaturas do centro — igualmente envolvidos (e interessados) nesse processo. Haroldo de Campos viu muito bem esse “destino comum” às diversas literaturas: escrever, hoje, na América Latina como na Europa, significará, cada vez mais, reescrever, remastigar (p. 23). É significativo que, ao final de seu ensaio, o crítico coloque em pé de igualdade América Latina e Europa, chegando ao mesmo diagnóstico com reação a ambas. Aceita essa reflexão, já não cabe mais aos estudos literários comparados se desgastarem em confrontar nacionalidades. Evitando o paralelismo binário de oposições, investiga os nexos das relações estabelecidas. Tais análises podem nos levar a um conhecimento mais preciso das relações estéticas e estas nos levarão a situar melhor, histórica e criticamente, os fenômenos literários. Comparativismo e descolonização literária O apanágio da literatura comparada tradicional era o “eurocentrismo”, fortalecido pela identificação de dependência cultural dos países frutos da colonização, que tinham seus olhos voltados para a Europa, matriz e modelo. A leitura de Vanguarda e cosmopolitismo, de Jorge Schwartz, não deixa dúvidas quanto a esse último fato. O rastreio do autor pela obra de Girondo, Quiroga, Oswald de Andrade e outros escritores latino-americanos é uma “tentativa de entabular um diálogo entre ilhas”, pois, como comprova, a vanguarda dos países periféricos dirigia seus olhares para Paris, evitando cruzá-los entre si. Nesse contexto, as iniciativas de Mário de Andrade de estabelecer contato com a obra de Borges, Girondo e alguns outros latino-americanos parecem um ponto perdido: o isolamento é a marca deste arquipélago. Distanciados entre si, os escritores dos países periféricos voltam-se para a matriz parisiense. Diz o autor: Vemos como Paris é considerada um eixo cultural, em relação ao qual o resto (“a intelectualidade”) chega ao centro, num gesto de saudade utópica pelo desconhecido (p. 14). 51 Mas isso, como sabemos, não é apenas um fato literário mas cultural. Se abrirmos o livro de Brito Broca, A vida literária no Brasil — 1900, veremos como ele descreve a situação brasileira do início do século: Auferir da existência tudo o quanto ela nos poderia dar de belo e de bom, era uma receita que então só se aviava no bulevar... O chique era mesmo ignorar o Brasil e delirar por Paris (p. 95). O jeito ameno com que o autor nos conta isso e os termos que emprega ao fazê-lo recompõem o clima de belle époque aqui instalado, cuja explicação se faria melhor por via sociológica do que propriamente literária. Em termos de literatura, Antonio Cândido nos dá, com nitidez, o quadro geral em seu “Literatura e cultura de 1900 a 1945 (Panorama para estrangeiros)”, de Literatura e sociedade, na “dialética do localismo e do cosmopolitismo” como oscilação nossa entre duas tendências: afirmação de nacionalismo literário e um declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus (p. 131). O caráter dialético desse processo está, segundo o autor, no fato de que ele tem consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma da expressão) (p. 132). Considerados esses dados, a literatura brasileira, para Antônio Cândido, tem, sob este aspecto, consistido numa superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e largamente mestiçado, desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes (p. 132). Como explica o autor na seqüência da reflexão, o intelectual brasileiro oscila entre a identificação com o universal e a afirmação do particular, vivendo um processo de dilaceramento. Na verdade, a consciência da ação simultânea de ambas as inclinações gera muitas vezes a contradição, magistralmente fixada na imagem de Mário de Andrade, de sabor confessional: “Sou um tupi tangendo um alaúde”. Interessa observar que Mário de Andrade não oculta o fato; ao contrário, ele expõe a contradição em toda sua nudez, como se, para ele, assumir a própria condição dilacerada fosse a solução para ultrapassála. Em O banquete, por exemplo, afirma a noção clara de sua descendência (“Nós somos também civilização européia”) e em Macunaíma irá registrar a “diferença” ao criar um “herói sem nenhum caráter”. Como ser dilacerado entre duas culturas, Mário de Andrade soluciona o conflito pela descaracterização do herói, abdicando de fórmulas prontas para definir “o brasileiro”. Macunaíma, afinal, sendo muitos e não sendo, é. 52 A aceitação do conflito parece ser, em Mário de Andrade, uma espécie de antídoto. Compreendeu-o assim Silviano Santiago em “Apesar de dependente, universal”, de Vale quanto pesa, onde se refere desse modo à antropofagia cultural, à noção de “traição da memória” (formulada por Mário de Andrade) e à noção de “corte radical” presente nos movimentos de vanguarda posteriores a 22. O autor as considera formas de resistência “à apropriação elogiosa do produto da cultura dominante”. E diz: Em todos os três casos não se faz de conta que a dependência não existe, pelo contrário, frisa-se a sua inevitabilidade; não se escamoteia a dívida para com as culturas dominantes, pelo contrário, enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta com a visão gloriosa do autóctone e do negro, mas se busca a inserção diferencial deles na totalização universal (p. 22). A noção de originalidade, então, para o crítico, está ligada “à diferença que o texto dependente consegue inaugurar”. E acrescenta: paradoxalmente, o texto descolonizado na cultura dominada acaba por ser o mais rico (não do ponto de vista de uma estreita economia interna da obra) por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da tabulação, resposta esta que passa a ser um padrão de aferição cultural da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos e catalogados (p. 23). Como se vê, adotada essa perspectiva, as literaturas ditas periféricas ganham em relevância e caracteriza-se o interesse que podemos ter em confrontá-las com as literaturas européias. São essas que, muitas vezes, se vêem questionadas no confronto e por ele esclarecidas. É certo que a autonomia cultural não está na recusa frontal de “olhar para fora”, mas na capacidade crítica desse olhar. Consideradas essas reflexões, os estudos literários comparados podem colaborar para a avaliação do processo de descolonização que se desenvolve ao longo da literatura brasileira, analisando seus avanços e retrocessos. É nesse sentido que a investigação das tensões decorrentes da “dialética de localismo e cosmopolitismo”, apontada por Antonio Cândido, pode colaborar para a caracterização da evolução do sistema literário brasileiro e de nossa identidade cultural. Ainda que as marcas de nacionalidade já não sejam situadas inicialmente (para que a análise comparativa não se reduza a uma afirmação de nacionalidades e, muito menos, ao exame do predomínio de uma sobre outra) elas se constituem em inevitável ponto de chegada. Considerações finais Até aqui, procurou-se caminhar no terreno do comparativismo, discutindo algumas questões que são básicas para a realização de estudos dessa natureza. Vimos também que alguns desses problemas, como dependência cultural, afirmação de nacionalidade literária, nos interessam diretamente e, por isso, a definição do campo de atuação do 53 comparativista brasileiro pode começar por aí, na investigação de questões que permitam esclarecer melhor o nosso sistema literário. No entanto, os estudos literários comparados não estão apenas a serviço das literaturas nacionais, pois o comparativismo deve colaborar decisivamente para uma história das formas literárias, para o traçado de sua evolução, situando crítica e historicamente, os fenômenos literários. Desse modo, a investigação das hipóteses intertextuais, o exame dos modos de absorção ou transformação (como um texto ou um sistema incorpora elementos alheios ou os rejeita), permite que se observem os processos de assimilação criativa dos elementos, favorecendo não só o conhecimento da peculiaridade de cada texto, mas também o entendimento dos processos de produção literária. Entendido assim, o estudo comparado de literatura deixa de resumir-se em paralelismos binários movidos somente por “um ar de parecença” entre os elementos, mas compara com a finalidade de interpretar questões mais gerais das quais as obras ou procedimentos literários são manifestações concretas. Daí a necessidade de articular a investigação comparativista com o social, o político, o cultural, em suma, com a História num sentido abrangente. Em síntese, o comparativismo deixa de ser visto apenas como o confronto entre obras ou autores. Também não se restringe à perseguição de uma imagem, de um tema, de um verso, de um fragmento, ou à análise da imagem/miragem que uma literatura faz de outras. Paralelamente a estudos como esses, que chegam a bom término com o reforço teórico-crítico indispensável, a literatura comparada ambiciona um alcance ainda maior, que é o de contribuir para a elucidação de questões literárias que exijam perspectivas amplas. Assim, a investigação de um mesmo problema em diferentes contextos literários permite que se ampliem os horizontes do conhecimento estético ao mesmo tempo que, pela análise contrastiva, favorece a visão crítica das literaturas nacionais. Por outro lado, pela natureza da disciplina, ocupou-se com elementos que a crítica literária habitualmente não considera: correspondências, literatura de viagens, traduções. No entanto, ao explorá-las, atua criticamente. É desse modo que a literatura comparada se integra às demais disciplinas que estudam o literário, complementando-as com uma atuação específica e particular. 54 6 Vocabulário crítico Cronologia: estudo de fontes. Doxologia: estudo do destino das obras. Termo empregado por P. Van Tieghem para referir o estudo da repercussão de um autor em outros ou da opinião que se forma sobre eles. Fonte/Origem: indica a procedência, a causa que provoca um determinado verso ou obra. Fortuna: resposta ou sucesso de uma obra; o impacto que a literatura de um país exerce sobre a literatura de outro país. Imagem/Miragem: nos estudos comparados, significa a verdadeira ou falsa idéia que uma nação tem da literatura de outra nação. imagologia: estudo das imagens/miragens na acepção já referida. Influência: Interações ou a ação exercida por obras ou personalidades literárias sobre outras. Intermediários: os agentes de difusão das obras de uma literatura em outros contextos. Também pode designar fatores não-literários que servem de catalisadores entre transmissor e receptor de uma obra literária. Intertextualidade: termo cunhado por Julia Kristeva em 1969. Designa o processo de produtividade do texto literário que se constrói como absorção ou transformação de outros textos. Leitura contrastiva: leitura que se vale do cotejo de textos para avaliar as diferenças existentes entre eles. Mesologia: estudo dos intermediários. “Stoffgeschichte”: estudo de temas literários em sua circulação por diferentes literaturas. Tipo de investigação muito desenvolvido na Alemanha. Tematologia: estudo de temas. A Stoffgeschichte é considerada um ramo da tematologia. Tipologia: palavra-chave no comparativismo eslavo. É tipológica uma característica que agrupa elementos para classificá-los como obras que pertençam ao mesmo gênero ou à mesma tendência literária. “Weltliteratur”: expressão cunhada por Goethe para designar a literatura mundial, que estaria além das fronteiras das nacionalidades. Entendida também como espécie de “fundo comum” a todas as literaturas nacionais. 55 7 Bibliografia comentada BARRICELLI & GIBALDI, eds. Interrelations of literature. New York, MLA, 1982. O volume contribui para os estudos interdisciplinares, ampliando as relações tradicionalmente estabelecidas entre a literatura e outras artes e ciências. Além da variedade dos temas tratados, inclui um bom glossário. BRUNEL, Pierre & CHEVREL, Yves, eds. Précis de littérature comparée. Paris, Presses Universitaires de France, 1989. Com contribuições de diversos autores, atualiza questões essenciais ao comparativismo como “O texto estrangeiro: a literatura traduzida” e os estudos de recepção literária. CADERNOS DO CEF (Círculo de Estudos Francófonos). Publicação da Universidade Federal Fluminense (Niterói). Editor: Lilian Postre de Almeida. O número l (1984) é consagrado às relações entre América Latina e África e o número l (1985) analisa as relações entre Brasil e Quebec (Canada). CIORANESCU, Alejandro. Princípios de literatura comparada. Tenerife, Universidad de Ia Laguna, 1964. Após ocupar-se com a definição da disciplina e seus propósitos, analisa relações de contato, de interferência e de circulação. Embora adote propostas do comparativismo dito clássico, tem o mérito de discutir outras concepções e uma preocupação didática. COUTINHO, Afrânio. O processo da descolonização literária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983. Reunindo diversos ensaios do autor, o volume tem nítida inclinação comparativista, incluindo textos sobre “Conceitos e vantagens da literatura comparada”, “O Impressionismo na literatura brasileira”, “O Surrealismo no Brasil”, “Somos latinos?'', cujos títulos expressam essa orientação, contribuindo para a reflexão das relações da literatura brasileira com as literaturas estrangeiras. DYSERINCK, Hugo e FISCHER, M. S. Internationale Bibliographie zu Geschichte und Theorie der Komparatistik. Stuttgart, A. Hicrsemann, 1985. O mais recente trabalho do gênero, distingue-se dos demais por não ter a preocupação exaustiva de dar conta da integralidade das publicações comparativistas, ocupando-se com o registro daquelas que contribuem de forma sistemática, teórica e programática para uma visão histórica do comparativisino literário e de sua feição contemporânea e para o desenvolvimento da literatura comparada como estudo acadêmico. A introdução é em inglês, francês e alemão. ÉTUDES LITTÉRAIRES. Publicação da Press de l'Université de Laval, Quebec, Canadá. O volume 7. no. 2, de agosto de 1974. intitulado Littérature comparée, ocupa-se com algumas questões teóricas, principalmente a perspectiva histórica, e com estudos sobre a literatura do Quebec e a das Antilhas. O volume 16. n.° 2, de agosto de 1983, organizado por Maximilien Laroche, Régards du Brésil sur Ia liltérature du Québec, contém estudos de brasileiros. GLISSANT, Edouard. Le discours antillais. Paris, Seuil. 1981. Ocupando-se com problemas da literatura antilhana e com o conceito de 56 “antilhaniclacle”, o autor propõe uma “poética das relações” que consistiria em teorizar os contatos culturais, investigando como eles podem se realizar sem que as culturas envolvidas percam sua peculiaridade. Suas reflexões sobre a produção ficcional americana como um todo desenvolvem noções que interessam á “(.lescolonizaçáo” do texto literário. GUILLÉN, Cláudio. Entre Io uno y Io diverso; introducción a Ia literatura comparada. Barcelona, Editorial Crítica, 1985. Trata-se de obra indispensável ao estudioso de literatura comparada, com vastíssima bibliografia. Busca sistematizar os métodos e procedimentos das pesquisas literárias que se ocupam de conjuntos supranacionais, delineando sua constituição pela tensão entre o local e o universal, entre o contínuo e o fragmentário, o mesmo e o diverso, que identificam a literatura como uma pluralidade de sistemas em movimento. INTERTEXTUALIDADES. Coimbra, Livraria Almedina, 1979. Trata-se da tradução do n.° 27 da revista francesa Poétique. Além do estudo de alguns casos de intertextualidade, contém trabalhos teóricos sobre a questão, como o de Laurent Jenny (“A estratégia da forma”), de Lucien Dällenbach (“Intertexto e autotexto”) e de Leyla Perrone-Moisés (“A intertextualidade crítica”). JOST, François. Introduction to Comparative literature. New York, The Bobbs-Merril Company Inc., 1974. Adota o conceito de literatura comparada como ''uma explicação articulada, histórica e crítica do fenômeno literário considerado como um todo” e concebe o comparativismo como o “novo-organum” da crítica literária. Além de discutir sua atuação no que considera como quatro campos preferenciais de trabalho — relações e analogias, movimentos e tendências, gêneros e formas, temas e motivos — ilustra essa atuação com ensaios próprios. O mérito maior do livro é justamente a articulação entre teoria e exemplificação prática. KOMPARATISTISCHE HEFTE. Publicação da Universidade de Bayreuth, Alemanha. Alguns de seus números são particularmente interessantes para nós: Heft (9/10), 1984, sobre “Europa — Caraíbas: relações literárias”, Heft 2, 1980, sobre “Literarische Imagologie”. L'AFRIQUE LITTÉRAIRE (54-55), 1979-1980. O volume é organizado por Jean-Marie Grassin, sobre o tema “Mythe et littérature africaine”. Contém os anais do Colóquio Afro-Comparativista de Limoges, cuja universidade tem um centro de estudos sobre literaturas emergentes. Reúne trabalhos sobre tradição e modernidade nos estudos comparados africanistas e vários estudos sobre o mito na perspectiva comparativista. Pierre Rivas assina o ensaio “Dialética da literatura cabo-verdiana: vocação oceânica e enraizamento africano”. MACHADO, A. M. e PAGEAUX, D.-H. Literatura portuguesa, literatura comparada e teoria da literatura. Lisboa, Edições 70, 1981. (Col. Signos, 36.) É dos raros livros sobre o tema escritos em português. Com intuito operacional, limita o campo da literatura comparada ao “estudo dos elementos estrangeiros que existem em todas as literaturas”. Para os autores, estudar este elemento estrangeiro “é re-ler a literatura nacional”. Advogam uma atuação metodológica pluridisciplinar, associando o estudo de um fenômeno literário em si ao do fenômeno cultural. ___________. Da literatura comparada à teoria da literatura. Lisboa, Edições 70, 1989. (Col. Signos, 46.) Ampliando os volumes que os dois autores editaram em 1981 sobre o tema, essa 57 obra incorpora as contribuições mais recentes do comparativismo e acentua suas relações com os conceitos teóricos. Além de analisar modernamente a dimensão do estrangeiro nas literaturas, investiga as questões de “poética comparada” e as relações entre Literatura e Cultura. MINER, Earl. Comparative poetics; an intercultural essay on theory of literature. Princeton, Princeton University Press, 1990. Como o título indica, trata-se de obra que adota orientações novas em literatura comparada, explorando as relações interculturais, notadamente entre Ocidente e Oriente, e propondo uma expansão do conceito de poética comparada preconizado por Etienble. ORIENTATIONS DE RECHERCHES ET MÉTHODES EN LITTÉRATURE GÉNÉRALE ET COMPARÉE. t. I, 1984. Publicação da Associação Francesa de Literatura Geral e Comparada (S.F.L.G.C.). Contém os anais do XVI Congresso dessa associação, realizado em Montpellier, em 1980. Diversos temas são tratados, desde os problemas de tradução aos de adaptação cinematográfica de textos literários e às relações entre literatura e música. PAZ, Octavio. Cuadrivio. México, Joaquín Mortiz, 1965. O livro reúne quatro ensaios sobre os poetas R. Darío, R. L. Velarde, F. Pessoa e L. Cernuda. São ensaios críticos que, embora tenham um acabamento em cada um deles, reunidos constituem uma investigação comum. O autor não se propõe a buscar “o parecido” entre os quatro autores selecionados mas, ao contrário, quer “destacar o que os distingue”. O objetivo da análise é examinar não só o que eles representam (“a ruptura com a tradição imediata”) mas de que forma constituem “uma tradição da ruptura”. PIZARRO, Ana, coord. La literatura latinoamericana como proceso. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1985. O volume, coordenado por Ana Pizarro, reúne ensaios de A. Cândido, A. Rama, B. Cario, R. Schwarz, J. Leenhardt, J. L. Martinez e outros pesquisadores envolvidos no projeto “História da literatura latino-americana” e apresentados em Simpósio realizado na Unicamp, em outubro de 1983. Trata-se de contribuição importante para questões comparativistas na América Latina em seus aspectos teórico-críticos e metodológicos. RECIFS. Recherches et Études Comparatistes Ibéro Françaises de Ia Sorbonne Nouvelle. Diretor: Danicl-Henri Pagcaux. Publicação anual, que data de 1979, reúne colaborações de comparativistas de vários países. O número 6 (1984) contém um amplo estudo de D.-H. Pageaux sobre “Temas comparatistas para Hispano-América (La Literatura General y Comparada: Trayectoria y Programa)”. WEISSTEIN, Ulrich. Comparative literature and literary theory; survey and introduction. Bloomington, London, Indiana University Press, 1973. Este livro básico foi editado originalmente em alemão, em 1968. Além de tratar de questões essenciais de literatura comparada, manifesta claramente sua adesão a perspectivas teóricas importantes como se constata nos capítulos 3, sobre “Reception and survival”, e 7, “The mutual illuminations of the arts”. 58 EXERCÍCIOS EXERCÍCIO 01 - LITERATURA COMPARADA Os poemas que seguem são três canções do exílio: a primeira é de Gonçalves Dias; a segunda, de Murilo Mendes; a terceira, de Carlos Drummond de Andrade: Canção do exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar — sozinho, à noite — Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Gonçalves Dias Canção do Exílio Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir 59 com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por [testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma [carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão [de idade! Murilo Mendes Nova canção do exílio Um sabiá na palmeira, longe. Estas aves cantam um outro canto. O céu cintila sobre flores úmidas. Vozes na mata e o maior amor. Só, na noite, seria feliz: um sabiá, na palmeira, longe. Onde é tudo belo e fantástico, só, na noite, seria feliz. (Um sabiá, na palmeira, longe.) OUTRAS ATIVIDADES QUE PODEM SER FEITAS EM SALA DE AULA ATIVIDADE 1 Solicitar ao aluno que pesquise outras referências ao poema de Gonçalves Dias ou outras canções do exílio: Casimiro de Abreu: Canção do exílio; Osório Duque Estrada: Hino nacional; Oswald de Andrade: Canto de regresso à pátria; Mário Quintana: Uma canção; José Paulo Paes: Canção do exílio facilitada; Jô Soares: Canção do exílio às avessas; Antônio Carlos Ferreira de Brito (Cacaso): Jogos Florais; Gilberto Gil: Tropicália II; Tom Jobim/Chico Buarque: Sabiá; ATIVIDADE 2 Introdução dos conceitos de INTERTEXTUALIDADE, PARÁFRASE E PARÓDIA; ATIVIDADE 3 Pesquisar o tema do exílio em outros textos literários: Ex.: Pátria minha de Vinícius; A partir dos textos encontrados, debater o tema: Literatura e exílio nos anos 60-70: Jorge Amado, Fernando Gabeira (livro e filme), Ainda um grito de vida e voltar para onde tudo é belo e fantástico: a palmeira, o sabia, o longe. Drummond O texto 1 é um poema escrito em 1843, quando Gonçalves Dias estudava em Coimbra, Portugal, e contava 20 anos de idade. O título, “Canção do exílio”, associado ao tema da saudade da pátria serviu de sugestão para outros poetas, como Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, que também escreveram a sua canção do exílio. QUESTÃO 1 No texto 1, o eu-lírico opõe dois espaços, marcados cada um pelos advérbios aqui e lá. Qual dos dois espaços é mais valorizado sob o ponto de vista do eu-lírico? 60 QUESTÃO 2 No texto 2, de Murilo Mendes, há um paradoxo, ou seja, o espaço da terra natal (o aqui) coexiste com o da terra estrangeira (o lá). Cite dois trechos que confirmem esta afirmação. QUESTÃO 3 Há passagens do poema de Murilo Mendes que lembram outras do poema de Gonçalves Dias. Comprove esta afirmação transcrevendo do texto de Murilo trechos similares aos de Gonçalves Dias. QUESTÃO 4 No poema de Gonçalves Dias, ao lado da glorificação da pátria, existe também o reconhecimento de aspectos desfavoráveis dentro dela? No poema de Murilo Mendes ocorre o mesmo procedimento? QUESTÃO 5 Pode-se dizer que o poema de Gonçalves Dias é nacionalista ao passo que o de Murilo Mendes é antinacionalista? QUESTÃO 6 No poema de Gonçalves Dias a exaltação da pátria é baseada sobretudo em aspectos da natureza ou da cultura? Exemplifique. QUESTÃO 7 No poema de Murilo Mendes há também exaltação da pátria como no poema de Gonçalves Dias? QUESTÃO 8 Ambos os poemas terminam com uma manifestação solene do desejo de cada um dos enunciadores. a) Qual é esse desejo no poema de Gonçalves Dias? b) Qual é esse desejo em Murilo Mendes? QUESTÃO 9 A “Nova canção do exílio” (texto 3), de Drummond aparece no livro A rosa do povo de 1945. O poema contém, como o de Gonçalves Dias, cinco estrofes. É possível afirmar que ambos são semelhantes sob o ponto de vista da metrificação? QUESTÃO 10 Os dois versos de Gonçalves Dias “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o Sabiá” vêm retomados por dois versos da “Nova canção do exílio”, os quais se repetem várias vezes no percurso do poema. De que versos se trata? QUESTÃO 11 Os dois versos referidos na questão anterior contêm três noções que se repetem durante o poema. De que noções se tratam? Procure descrever o que significam no poema. QUESTÃO 12 Os dois versos finais da primeira estrofe de Drummond dizem: “Estas aves cantam / um outro canto.” O pronome estes indica algo próximo da pessoa que fala (tanto no espaço quanto no tempo). Referido a aves, indica as que estão próximas do eu-lírico. O pronome outro pressupõe, existência de ao menos um diferente dele. a) Ao dizer que estas aves cantam um outro canto, o enunciador pode estar querendo dizer que há uma oposição entre as aves a que se refere o poema de Gonçalves Dias e aquelas a que se refere esta “nova canção do exílio”? b) Pode-se dar a esse possível confronto uma conotação política e interpretá-lo como manifestação de que a realidade idílica descrita por Gonçalves Dias está longe de ser verdadeira para o momento em que a “nova canção do exílio” foi escrita? QUESTÃO 13 Os dois versos: “Em cismar, sozinho, à noite / Mais prazer encontro eu lá” são recuperados por estes dois: “Só, na noite, /seria feliz”. Nos dois versos de Drummond há uma ambigüidade que parece intencional. a) Quais são os dois sentidos que podem ser atribuídos aos dois versos? b) Ambos os significados se encaixam com coerência no texto de Drummond? QUESTÃO 14 Na quinta estrofe, o desejo manifestado pelo eu-lírico no poema de Drummond é similar ao de Gonçalves Dias? QUESTÃO 15 Comenta-se que um dos traços mais marcantes do poema de Gonçalves Dias é a 61 concisão, a densidade de sentido em poucas palavras. Pode-se dizer o mesmo do texto de Drummond? QUESTÃO 16 A “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, enaltece o solo pátrio sob o ponto de vista seus encantos naturais; a de Murilo Mendes é uma paródia e satiriza a descaracterização pátria sob o ponto de vista cultural. a) A “Nova canção do exílio”, de Drummond, aproxima-se mais do poema de Gonçalves Dias da paródia de Murilo Mendes? b) Pode-se dizer que o poema de Drummond tem também intenção de subverter o sentido poema de Gonçalves Dias? de da ou do 62 EXERCÍCIO 02 - LITERATURA COMPARADA Pra que mentir? Vadico e Noel Rosa Pra que mentir Se tu ainda não tens Esse dom de saber iludir Pra quê? Pra que mentir, Se não há necessidade de me trair? Pra que mentir Se tu ai ainda não tens A malícia de toda mulher? Pra que mentir, se eu sei Que gostas de outro Que te diz que não te quer? Pra que mentir tanto assim Se tu sabes que eu sei Que tu não gostas de mim? Se tu sabes que eu te quero Apesar de ser traído Pelo teu ódio sincero Ou por teu amor fingido? Dom de iludir Caetano Veloso Não me venha falar da malícia de toda mulher, Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim. Cale a boca, e não cale na boca notícia ruim. Você sabe explicar Você sabe entender, tudo bem. Você está, você é, você faz, Você quer, você tem. Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir. Pelo conhecimento que se tem da vida de Noel Rosa, sabe-se que a composição “Pra que mentir?” foi motivada por uma de suas relações amorosas, talvez a mais marcante de toda a sua 63 agitada vida passional. Ceci, que Noel conheceu no cabaré Apollo, Rio de Janeiro, numa festa de São João, e de quem nunca mais se desligou, é a fonte de inspiração dessa canção de parceria com Vadico. Na ocasião em que Noel compôs a música, Ceci dividia seu coração com ele e Mário Lago, o famoso compositor de “Saudades da Amélia”. Apesar de Ceci não confessar para Noel o novo romance, ele já sabia de tudo, pois a conhecia pelo olhar, pelo tom de voz e lhe dizia com freqüência: “Você ainda não aprendeu a mentir...” QUESTÃO 1 No texto de Noel está presente uma outra voz com que ele dialoga e que afirma pontos de vista opostos ao dele. a) Há, disseminados pelo texto, pronomes que indicam o interlocutor ao qual se destina a canção “Pra que mentir?”. Transcreva-os. b) Além disso, há indicadores de que esse interlocutor é uma personagem feminina. Transcreva dois desses indicadores. QUESTÃO 2 a) Em “Dom de iludir”, há também pronomes que indicam o interlocutor a quem o texto se dirige em resposta. Transcreva-os. b) Transcreva indicadores de que esse interlocutor é uma personagem masculina. QUESTÃO 3 a) “Pra que mentir?” é uma interrogação que contém em si uma negação, que pode ser introduzida assim: Tu não deves mentir, já que não tens motivo para isso. Essa interrogação de caráter negativo pressupõe que a personagem feminina, de fato, procede contrariamente ao ponto de vista da personagem masculina. Em que consiste, pois, o ponto de vista da mulher amada? b) Na primeira estrofe há duas negações: I - “... tu ainda não tens Esse dom de saber iludir” II — “... não há necessidade De me trair?” Na segunda estrofe, há as explicações correlatas a cada uma dessas duas negações. Transcreva as passagens que servem de argumento para essas negações. QUESTÃO 4 Ao dizer: “tu ainda não tens /A malícia de toda mulher”, a personagem masculina deixa implícitos dois pontos de vista, um sugerido pelo advérbio ainda, outro pela negação. a) Quais são esses dois pressupostos? b) No texto de Caetano Veloso (“Dom de iludir”), a personagem feminina reage energicamente contra a afirmação da “malícia de todo mulher”. Cite, da primeira estrofe, a frase que contém a reação mais vigorosa contra essa afirmação e procure explicar o motivo dessa irritação feminina. QUESTÃO 5 A personagem feminina admite que, no território da relação amorosa, a mentira faz parte do comportamento feminino. Mas não exclui o homem desse jogo, ainda que ele o faça de forma dissimulada. a) Transcreva a frase do texto de Caetano que contém tal acusação. b) Como se pode traduzir de maneira mais clara essa contradição? QUESTÃO 6 Todo texto, além de dialogar com diferentes vozes inscritas no seu interior por meio de vários mecanismos lingüísticos, dialoga também com a sociedade, na medida em que o leitor, ao depreender os sentidos contidos no texto, julga-os em função das crenças e dos valores assumidos como verdadeiros dentro da cultura em que o texto foi produzido. Nos versos de Noel, a personagem masculina declara seu amor pela mulher, apesar de reconhecer-se traído: “... tu sabes que eu te quero / Apesar de ser traído”. Levando em conta as crenças e valores de nossa cultura a propósito da infidelidade no amor, a tolerância do homem para com a traição da mulher pode ser interpretada de acordo com múltiplos pontos de vista, já que uma sociedade abriga agrupamentos humanos muito diversificados ideologicamente. a) Como seria interpretada essa tolerância por um representante médio da mentalidade masculina típica do nosso meio cultural? b) Há, na linguagem chula, palavras ou expressões que traduzem, com crueldade e deboche, o pensamento daqueles que acham inconcebível essa tolerância. Transcreva alguns exemplos. c) Como interpretaria a mesma atitude um representante do sexo masculino preocupado em libertar-se de preconceitos generalizadores e disposto a considerar cada caso em particular (como 64 foi, aliás, o de Noel Rosa com Ceci)? d) Como essa atitude foi interpretada pela personagem feminina que fala na canção “Dom de iludir”? QUESTÃO 7 Se considerarmos a designação “machismo” como atitude ou comportamento de quem se vê como superior, e não aceita a igualdade potencial e de direitos para o homem e a mulher, discuta, a partir de elementos textuais, o componente machista da personagem masculina a) tal como se revela, apesar de certa dissimulação, em “Pra que mentir?”; b) tal como é visto em “Dom de iludir”. QUESTÃO 8 O confronto dos dois textos permite-nos afirmar que: a) a mulher desqualifica e contesta o que lhe diz o homem em “Pra que mentir?”. b) segundo a personagem masculina, a mulher não teria necessidade de mentir se de fato soubesse o que é amar. c) em “Dom de iludir”, a mulher responde ao homem que ele também mente sem necessidade de ocultar a infidelidade. d) não há verdade nem mentira quando se ama. e) em “Dom de iludir” a mulher não reconhece que ela também se ilude. 65 EXERCÍCIO 03 - LITERATURA COMPARADA TEXTO 1 Não é possível idear nada mais puro e harmonioso do que o perfil dessa estátua de moça. Era alta e esbelta. Tinha um desses talhes flexíveis e lançados, que são hastes de lírio para o rosto gentil; porém na mesma delicadeza do porte esculpiam-se os contornos mais graciosos com firme nitidez das linhas e uma deliciosa suavidade nos relevos. Não era alva, também não era morena. Tinha sua tez a cor das pétalas da magnólia, quando vão desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa cor de mulher, se a aveluda a pubescência juvenil, e a luz coa pelo fino tecido, e um sangue puro a escumilha de róseo matiz. A dela era assim. Uma altivez de rainha cingia-lhe a fronte, como diadema cintilando na cabeça de um anjo. Havia em toda a sua pessoa um quer que fosse de sublime e excelso que a abstraía da terra. Contemplando-a naquele instante de enlevo, dir-se-ia que ela se preparava para a sua celeste ascensão. José de Alencar. Diva. TEXTO 2 Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística. Sentia-se-lhe dentro das mangas do vestido a trêmula carnadura dos braços; e os pulsos apareciam nus, muito brancos, chamalotados de veiazinhas sutis, que se prolongavam serpeando. Tinha as mãos finas e bem tratadas, os dedos longos e roliços, a palma cor-de-rosa e as unhas curvas como o bico de um papagaio. Sem ser verdadeiramente bonita de rosto, era muito simpática e graciosa. Tez macia, de uma palidez fresca de camélia; olhos escuros, um pouco preguiçosos, bem guarnecidos e penetrantes; nariz curto, um nadinha arrebitado, beiços polpudos e viçosos, à maneira de uma fruta que provoca o apetite e dá vontade de morder. Usava o cabelo cofiado em franjas sobre a testa, e, quando queria ver ao longe, tinha de costume apertar as pálpebras e abrir ligeiramente a boca. Aluísio Azevedo. Casa de pensão. QUESTÃO 1 Como se nota, os dois trechos possuem semelhanças e diferenças. Sob o ponto de vista da construção, trata-se de textos figurativos ou temáticos? Explique sua resposta. QUESTÃO 2 Ambos os textos são também semelhantes sob o ponto de vista da imagem que constroem: ambos criam a imagem de mulher. Mas cada texto constrói um modelo diferente de feminilidade. a) No texto 1, o percurso figurativo construído pelo narrador apresenta a mulher, vista sobretudo 66 sob o ponto de vista de suas qualidades psíquicas. O corpo vem retratado como um todo: as partes anatômicas não são desenhadas em detalhe. Cite duas passagens que servem para confirmar o que acaba de ser dito. b) No texto 2, o percurso figurativo descreve o corpo da mulher sob o ponto de vista de suas qualidades físicas. Partes da anatomia feminina são expostas com detalhes. Cite algumas passagens que servem para confirmar o que acaba de ser dito. QUESTÃO 3 Ambas as figuras femininas são descritas como atraentes. Há, no entanto, uma diferença temática subjacente aos percursos figurativos organizados em cada texto. Essa diferença diz respeito ao que provoca atração em cada mulher descrita. a) No texto 1, que tema é ressaltado na figura da mulher? b) No texto 2, que tema é enfatizado? QUESTÃO 4 No texto 2, ao falar do nariz, o narrador diz: “... nariz curto, um nadinha arrebitado...” Que efeito de sentido provoca o diminutivo nadinha? QUESTÃO 5 O confronto entre os dois textos permite-nos concluir que: a) o texto 1 focaliza a mulher como algo mais para ser admirado do que tocado. b) a personagem feminina delineada no texto 2 excita mais os sentimentos da alma do que os apetites do corpo. c) em ambos os textos a feminilidade vem figurativizada com objetividade e eqüidistância. d) ambos os textos focalizam a mulher sob o ponto de vista de um olhar feminino. e) em nenhum dos dois textos a mulher é focalizada como objeto de cobiça que excita os sentimentos carnais do homem. QUESTÃO 6 Os dois trechos citados, que pertencem a romances de José de Alencar (1829-1877) e Aluísio Azevedo (1857-1913), têm em comum o fato de descreverem personagens femininas. Um confronto entre as duas descrições permite detectar diferenças não somente nos planos físico e psicológico das duas mulheres, mas também no modo como cada uma é concebida pelo respectivo narrador, segundo os princípios estéticos do romantismo e do naturalismo. O resultado final, em termos de leitura, é o surgimento de duas personagens completamente distintas, vale dizer, duas mulheres que causam impressões inconfundíveis no leitor. Levando em conta estas informações, procure relacionar a diferença essencial entre as duas personagens com os princípios estéticos do romantismo e do naturalismo. QUESTÃO 7 Ao descrever a pele de sua personagem, diz Alencar: “Tinha sua tez a cor das pétalas da magnólia, quando vão desfalecendo ao beijo do sol.” Esta frase, como um todo, focaliza a pele da personagem sob o aspecto visual e representa uma tentativa de definição de cor. Aluísio Azevedo, em seu texto, também parte da imagem de uma flor para tentar definir a pele da personagem. 67 Localize a passagem em que isso acontece e, a seguir, defina os aspectos sensoriais de que se utiliza o autor para caracterizar a pele da personagem. 68 EXERCÍCIO 04 – LITERATURA COMPARADA Valsinha E começaram a se abraçar. E ali dançaram tanta dança Que a vizinhança toda despertou E foi tanta felicidade Que toda a cidade se iluminou E foram tantos beijos loucos Tantos gritos roucos Como não se ouviam mais Que o mundo compreendeu E o dia amanheceu em paz. Um dia ele chegou tão diferente Do seu jeito de sempre chegar. Olhou-a de um jeito muito mais quente Do que sempre costumava olhar E não maldisse a vida tanto Quanto era seu jeito de sempre falar. E nem deixou-a só num canto Pra seu grande espanto Convidou-a pra rodar. Então ela se fez bonita Como há muito tempo não queria ousar Com seu vestido decotado Cheirando a guardado De tanto esperar. Depois os dois deram-se os braços Como há muito tempo Não se usava dar E cheios de ternura e graça Foram para a praça Casimiro de Abreu A valsa Que louco Senti! Tu, ontem, Quem dera Na dança Que sintas!... Que cansa, — Não Voavas negues, Co'as faces Não mintas... Em rosas — Eu vi!... Formosas De vivo, Valsavas: Lascivo — Teus Carmim; belos Na valsa Cabelos, Tão falsa, Já soltos, Corrias, Revoltos, Fugias, Saltavam, Ardente, Voavam, Contente, Brincavam Tranqüila, No colo Serena, Que é meu; Sem pena E os olhos De mim! Escuros Tão puros, Quem dera Os olhos Que sintas Perjuros As dores Volvias, De amores Tremias, Grande Valsa, pintura da artista popular Octacília Josefa, de 1986 (fragmento) Chico Buarque de Holanda Sorrias, P'ra outro Não eu! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas... — Eu vi!... Meu Deus! Eras bela Donzela, Valsando, Sorrindo, Fugindo, Qual silfo Risonho Que em sonho Nos vem! Mas esse Sorriso Tão liso Que tinhas Nos lábios De rosa, Formosa, Tu davas, Mandavas A quem ?! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas,.. — Eu vi!... Calado, Sozinho, Mesquinho, Em zelos Ardendo, Eu vi-te Correndo Tão falsa Na valsa Veloz! Eu triste Vi tudo! Mas mudo Não tive Nas galas Das salas, 69 Nem falas, Nem cantos, Nem prantos, Nem voz! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues Não mintas... — Eu vi! Na valsa Cansaste; Ficaste Prostrada, Turbada! Pensavas, Cismavas, E estavas Tão pálida Então; Qual pálida Rosa Mimosa No vale Do vento Cruento Batida, Caída Sem vida. No chão! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas... Eu vi! Sonho de valsa. Marcio Melo, 1999. 70 QUESTÃO 1 Como se sabe, todo texto narrativo relata transformações que vão ocorrendo através do tempo. Leia os dois versos iniciais: “Um dia ele chegou tão diferente / Do seu jeito de sempre chegar”. Os dois versos relatam uma transformação: ele chegava habitualmente de um jeito e passou a chegar de outro. Levando em conta os dados fornecidos pelo texto, como ele costumava chegar habitualmente? E no texto de Casimiro, qual a transformação que ocorre? QUESTÃO 2 Naquele dia diferente, uma das atitudes dele, de modo especial, causou surpresa a ela. Qual foi essa atitude? E em Casimiro, qual é a atitude da mulher que incomoda o eu-lírico? QUESTÃO 3 Essa transformação que se deu com a personagem masculina (ele) no texto Valsinha desencadeou outra transformação na personagem feminina (ela). Em que níveis de comportamento se alterou a conduta dela? QUESTÃO 4 A dança também pode ser interpretada como movimento do jogo amoroso. Fazem parte desse jogo tanto o afeto, a emoção delicada, quanto a sensualidade calorosa, a paixão febril. Encontre passagens nos dois textos que falem: a) da emoção delicada; b) da sensualidade calorosa. QUESTÃO 5 No texto de Chico, o gesto amoroso da dança saiu do interior da casa para a praça, da praça para a cidade, da cidade para o mundo. a) Como se pode interpretar essa ampliação do espaço? b) Qual é o efeito final desse gesto no comportamento dos homens? QUESTÃO 6 No texto de Chico, pode-se dizer que se estabelece uma relação de semelhança entre a valsa, o jogo amoroso e as relações humanas em termos mais amplos? Em caso afirmativo, explique onde reside essa semelhança. QUESTÃO 7 Todo texto narrativo é figurativo. Isso quer dizer que por trás das figuras existe um tema implícito. Numa carta endereçada a Vinícius de Moraes, Chico Buarque discute com o seu parceiro a inconveniência de colocar o titulo de “Valsa hippie” (em vez de “Valsinha”), como queria o velho poeta. Eis o trecho da carta: “Valsa hippie” é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí. “Valsa hippie”, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia da moda pra frente, de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. (Chico Buarque de Holanda. Cartas a Vinícius. O Estado de S. Paulo, 19 mar, 1995. p. D-16.) Qual é o tema que torna a letra de “Valsinha” compatível com a autêntica filosofia hippie? E no texto de Casimiro, qual é o tema subjacente às figuras? QUESTÃO 8 Levando em conta o sentido global do texto Valsinha, pode-se afirmar que: a) a dança, que inclui o envolvimento amoroso e o prazer, expande seus efeitos para além das pessoas que se amam. b) o jogo amoroso, diferentemente da dança e da valsa, só é possível com o consentimento explícito dos pares que se amam. c) para que a dança e o amor sejam bem-sucedidos, é preciso que, de início, exista apenas ternura de ambas as partes e só depois esse sentimento evolua para o prazer. 71 d) a concepção de amor que está implícita por trás desse texto narrativo não inclui o prazer físico. e) só a ternura e o amor desinteressado são capazes de irradiar sua influência para além do espaço doméstico. Questão 9 O poema de Casimiro possui um ritmo acelerado, tentando simular o movimento da própria dança. Qual o principal recurso utilizado pelo poeta para atingir esse efeito de sentido? EXERCÍCIO 05 - LITERATURA COMPARADA O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Manuel Bandeira O cortiço. Aluísio Azevedo. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as 72 crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. Questão 1 Entre os enunciados que ocorrem no fragmento e no poema acima pode-se dizer que há uma progressão temporal de modo que um possa ser considerado anterior ao outro? Questão 2 Com base na resposta anterior, pode-se dizer que o texto é descritivo ou narrativo? Explique sua resposta. Questão 3 Ao relatar as atitudes das pessoas em torno da bica onde se lavavam, o texto de O cortiço se refere ao desconforto que isso implicava. Cite passagens do próprio texto que confirmem essa referência. Questão 4 A leitura desses textos leva a concluir que os personagens assumem comportamentos que os aproximam dos animais irracionais? Explique sua resposta com passagens do próprio texto. Questão 5 O fragmento de O cortiço refere-se às atitudes que praticam os habitantes do cortiço logo de manhã, ao levantar. Pelos relatos que o narrador seleciona, que imagem ele transmite do ambiente e das pessoas que aí vivem? E no poema de Bandeira? Questão 6 Logo no primeiro enunciado de O cortiço, o narrador escolheu as palavras “machos e fêmeas” em vez de homens e mulheres. Pode-se dizer que essa escolha tem significado no contexto ou se trata de um fato sem importância? Questão 7 Levando em conta o texto de O cortiço na sua totalidade, podemos concluir que: (a) coloca em destaque a simplicidade das pessoas que vivem em harmonia com a natureza. (b) fala das más condições de vida das pessoas que abandonaram o campo para viver na cidade. 73 (c) relata as conseqüências desastrosas da vadiação e da malandragem. (d) estabelece relações entre as condições desfavoráveis do ambiente e a conduta das pessoas que nele vivem. (e) mostra como o homem é vítima de sua própria ignorância. EXERCÍCIO 06 - LITERATURA COMPARADA VIDAS SECAS Foto de Sebastião Salgado Mudança Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e Ordinariamente andavam famintos. pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar sentou-se no chão. – Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta, mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos. 74 – Anda, excomungado. O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés. Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardoua no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis. E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande. Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam. Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o 75 papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força. Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra. Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele. Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido. Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e não quis acordá-los. foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira. Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo. Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se: uma sombra passava por cima do 76 monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente. Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava. Vidas Secas, Editora Record, 1996. FABIANO Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha51 escura, pareciam ratos — e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera. Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió52 um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado. — Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: — Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. 51 52 Quarto para dormir, no interior da casa, às vezes elevado acima do telhado; alcova. Bolsa de caça trançada com fibras. 77 Chegara naquela situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. — Um bicho, Fabiano (...) Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás53, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra. Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Record, 1983. p. 17-9. O soldado amarelo Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto. Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastá-lo para dentro da caatinga, entregá-lo aos urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam de criação. Era um homem, evidentemente. Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins. Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. — Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. 53 Espécie de planta, figo-da-índia. 78 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 51a. ed. São Paulo: Record, 1983. p. 106-7 Esse texto é um fragmento de um capítulo de Vidas secas. O capítulo relata o encontro de Fabiano com o soldado amarelo, que estava sozinho e perdido no meio da caatinga. Longe dos olhares de qualquer testemunha, era a ocasião ideal para Fabiano vingar-se daquele que o tinha prendido e espancado na cidade. No trecho anterior a esse fragmento, Fabiano está com um facão na mão, e o soldado sente medo, pois pensa que vai ser morto. Questão 1 No texto, há momentos em que a linguagem focaliza as ações de Fabiano e as reações do soldado amarelo; há passagens em que a linguagem parece brotar de dentro do personagem. Nestas, o narrador continua presente, mas é como se registrasse apenas os pensamentos que passavam pela cabeça do personagem. Que recurso usou o narrador para relatar o que o personagem pensava? Justifique sua resposta. Questão 2 “Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma.” Por que o facão ora é arma, ora é um troço inútil? Questão 3 Qual é o modo de citação do discurso de Fabiano na frase “Governo é governo”? Justifique sua resposta. Questão 4 O narrador cita o discurso de Fabiano de dois modos diferentes. Num mescla sua voz à fala de Fabiano. Noutro, preserva a integridade do discurso do personagem. Por que as vozes do narrador e do personagem se mesclam na primeira parte do texto? Questão 5 a) Nas cinco últimas linhas do texto, o narrador relata que Fabiano transformou em subserviência a sua raiva contra o soldado amarelo. Cite a passagem em que a própria fala de Fabiano traduz essa reação de submissão. b) Nessa altura, o narrador, que até então vinha usando o discurso indireto livre, passa a usar o discurso direto para reproduzir a fala de Fabiano, deixando clara a diferença entre a sua voz e a voz de Fabiano. Qual é a impressão que produz essa dissociação? Questão 6 Levando em conta o contexto em que ocorre, a frase “Governo é governo” admite apenas uma das leituras que seguem: 79 (a) Os dois termos têm significados diferentes: o primeiro significa “instituição administrativa”, e o segundo indica “instituição que serve para oprimir e que deve ser respeitada”. (b) Os dois termos têm o mesmo significado, por isso a frase de Fabiano é uma mera repetição de termos. (c) Nessa frase, um termo nada acrescenta ao outro, por isso a repetição não tem cabimento. (d) Os dois termos têm significados diferentes: o primeiro indica “instituição administrativa”, e o segundo indica “instituição que não deve ser levada em consideração”. EXERCÍCIO 07 - LITERATURA COMPARADA Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos , raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. 80 Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Carlos Drummond de Andrade Com licença poética Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou feia que não possa me casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Adélia Prado 81 EXERCÍCIO 08 - LITERATURA COMPARADA O FOGO NO CANAVIAL A imagem mais viva do inferno. Eis o fogo em todos seus vícios: eis a ópera, o ódio, o energúmeno, a voz rouca de fera em cio. E contagioso, como outrora Foi, e hoje não é mais, o inferno: ele se catapulta, exporta, em burlotes de curso aéreo, em petardos que se disparam sem pontaria, intransitivos; mas que queimada a palha dormem, bêbados, curtindo seu litro. (O inferno foi fogo de vista, ou de palha, queimou as saias: deixou nua a perna da cana, despiu-a, mas sem deflora-la.) João Cabral de Melo Neto Cortadores de cana no Pará. Foto de Ricrdo Beliel. 82 EXERCÍCIO 09 - LITERATURA COMPARADA As pombas Raimundo Correia (1860-1911) Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sangüínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações onde abotoam, Os sonhos, um por um céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais... Barcos de papel Guilherme de Almeida (1890-1969) Quando a chuva cessava e um vento fino franzia a tarde tímida e lavada eu saía a brincar pela calçada nos meus tempos felizes de menino. Fazia de papel toda uma armada: e estendendo o meu braço pequenino eu soltava os barquinhos sem destino ao longo das sarjetas, na enxurrada... Fiquei moço. E hoje sei pensando neles que não são barcos de ouro os meus ideais: são feitos de papel tal como aqueles perfeitamente exatamente iguais... - Que os meus barquinhos lá se foram eles! Foram-se embora e não voltaram mais! 83 EXERCÍCIO DE LITERATURA COMPARADA - 10 HAMLET (excerto, ato IV, final da cena VII) (Entra a Rainha.) Então, meiga rainha? A RAINHA: Tanto as desgraças correm, que se enleiam no encalço umas das outras. Vossa irmã afogou-se, Laertes. LAERTES: Afogou-se? Onde? Como? A RAINHA: Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas de rainúnculas, margaridas, urtigas e de flores de púrpura, alongadas, a que os nossos campônios chamam nome bem grosseiro, e as nossas jovens "dedos de defunto". Ao tentar pendurar suas coroas nos galhos inclinados, um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa seus troféus de erva e a ela própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia, enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como criatura ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus cantares arrancassem a infeliz para a morte lamacenta. LAERTES: Afogou-se, dissestes? A RAINHA: Afogou-se. LAERTES: Querida irmã, já tens água de sobra; não te darei mais lágrimas. Contudo, somos assim, que a natureza o obriga, sem que importe a vergonha; uma vez fora, deixou de ser mulher. Adeus, senhor. Com as palavras, só chamas me sairiam, se não fosse apagá-las a tolice. (Sai.) O REI: Sigamo-lo, Gertrudes. Que trabalho me custou para a cólera acalmar-lhe! Receio que de novo a explodir venha. Sigamo-lo, portanto. (Saem.) A MORTE DE OFÉLIA Junto ao plácido rio Que entre margens de relva e fina areia Murmura e serpenteia, O tronco melancólico e sombrio De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem Ali suspira e canta, Abraçando-se à trêmula folhagem Que se espelha na onda voluptuosa. Ali a desditosa, A triste Ofélia foi sentar-se um dia. Enchiam-lhe o regaço umas capelas Por suas mãos tecidas De várias flores belas, Pálidas margaridas, E rainúnculos, e essas outras flores A que dá feio nome o povo rude, 84 E a casta juventude Chama - dedos da morte - O olhar celeste Alevantando aos ramos do salgueiro, Quis ali pendurar a of'renda agreste. Num galho traiçoeiro Firmara os lindos pés, e já seu braço, Os ramos alcançando, Ia depor a of'renda peregrina De suas flores, quando Rompendo o apoio escasso, A pálida menina Nas águas resvalou; foram com ela Os seus-dedos da morte - e as margaridas, As vestes estendidas Algum tempo a tiveram sobre as águas, Como sereia bela, Que abraça ternamente a onda amiga. Então, abrindo a voz harmoniosa, Não por chorar as suas fundas mágoas, Mas por soltar a nota deliciosa De uma canção antiga, A pobre naufragada De alegres sons enchia os ares tristes, Como se ali não visse a sepultura, Ou fosse ali criada Mas de súbito as roupas embebidas Da linfa calma e pura Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente, Cortando -lhe no lábio a voz e o canto. As águas homicidas, Como a lage de um túmulo recente, Fecharam-se, e sobre elas, Triste emblema de dor e de saudade, Foram nadando as últimas capelas. Machado de Assis (In Falenas) Lição sobre a água Este líquido é água. Quando pura é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor, sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor. É um bom dissolvente. Embora com excepções mas de um modo geral, dissolve tudo bem, ácidos, base e sais. Congela a zero graus centesimais e ferve a 100, quando à pressão normal. 85 Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia, apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão. António Gedeão LEITURA COMPLEMENTAR 86 A IMAGOLOGIA E SEUS TEÓRICOS Katia Aily Franco de Camargo(1) Os estudos imagológicos encontram-se dentro de um campo maior denominado Literatura Comparada, a qual tem por base a comparação, mas principalmente a relação entre duas ou mais literaturas e/ou culturas, sendo o elemento estrangeiro revelador do estágio da cultura de cada um dos países relacionados. Os estudos imagológicos tiveram início na Alemanha com Lessing e Göethe, os irmãos Schlegel e Mme de Staël, que acreditavam conseguir, por meio do estudo das obras representativas de uma determinada literatura, aprofundar seu conhecimento sobre a psicologia do povo em questão. Após anos em descrédito, retomam-se, nos anos de 1950, os estudos sobre imagologia, ou, melhor dizendo, sobre psicologia dos povos. Marius-François Guyard publica um pequeno manual de Littérature comparée, com prefácio de Jean-Marie Carré, no qual se insere um capítulo com um título sugestivo: L'étranger tel qu'on le voit. No que consistiria sua proposição? Seria basicamente o estudo das imagens nacionais, na literatura comparada, sendo essas utilizadas para melhor se autoconhecer por meio do reconhecimento de suas próprias ilusões. Até esse momento, portanto, as imagens eram estudadas como se fossem funções de relações coletivas de cunho histórico-social que veiculam caracteres nacionais; não há uma preocupação com reflexões teóricas a propósito da problemática envolvida, limitando-se, assim, a um exame puramente descritivo (fonte e influências), pois o principal objetivo era traçar o perfil psicológico exato dos povos. Em 1953, no entanto, René Wellek anuncia a “crise” da Literatura Comparada. Segundo esse autor, o estudo das imagens/ miragens proposto por Carré e Guyard extrapolava, em muito, o campo da Literatura Comparada, pois o objeto de estudo desta havia sido delimitado de maneira artificial, assim como de sua metodologia, colocando-a em risco, uma vez que poderia se tornar simplesmente uma ciência auxiliar a serviço das relações internacionais. Para Wellek, a obra de arte em si deveria ser o centro de toda a análise. Ela passaria a ser considerada uma estrutura estratificada de signos e significados totalmente distinta dos processos mentais do autor no momento da criação e, conseqüentemente, das influências que se podem ter em mente.(2). A partir dessa “crise”, firmam-se duas tendências, uma francesa, seguidora da tradição l'étranger tel qu'on le voit, e outra americana, que nega o estudo das imagens e miragens. Ou seja, essa divisão baseava-se naqueles que eram contra ou a favor da teoria estética da pesquisa literária pregada por Wellek, que considera a obra de arte como um foco de análise em si. Hugo Dyserinck, em 1966, retomou a questão da importância dos estudos imagológicos, acreditando que a polêmica da década anterior tinha sido improdutiva. Os estudiosos deveriam se preocupar em saber se o estudo das imagens tinha um sentido que não social, psicológico, nacional ou político, para a pesquisa em Literatura e Literatura Comparada em particular. Dessa forma, a imagologia comparada seria a renúncia à pesquisa das influências, considerada insatisfatória, em favor de uma investigação da maneira como se reage, na literatura de um determinado país, à literatura e à cultura de um país estrangeiro. Ao escrever, em 1966, O problema das “images” e “mirages” e sua pesquisa no âmbito da literatura comparada, Dyserinck procura mostrar que a função da imagologia é identificar e analisar as configurações das imagens, o modo como se estruturam, assim como estudar sua evolução e efeito na literatura e verificar o papel que tais imagens desempenham no encontro de culturas. Em suas palavras, [...] a imagologia não faz parte de nenhum pensamento ideológico, mas é, isso sim, uma contribuição à desideologização. Pretende-se, a partir da análise das imagens, chegar ao modo como funciona o pensamento e as estruturas. Assim, ela participa da destruição dos estereótipos/ imagotipos, ao mesmo tempo em que ajuda a dar conta da influência, do poder e da manipulação de correntes (3) ideológicas e políticas na formação de um país . Para esse autor, então, a imagem do outro é formada, antes de tudo, a partir do estar em relação com e sem dar preferência a nenhuma das literaturas e/ou culturas envolvidas na análise, deve-se estudar tanto uma quanto a outra, a auto-imagem e a hetero-imagem, para então se compreender a estrutura do pensamento de cada um terminando com a desideologização. Do outro lado do Reno, Daniel-Henri Pageaux dava seus primeiros passos nos estudos sobre imagologia publicando, no início da década de 1980, “Une perspective d'étude en littérature comparée: l'imagerie culturelle”(4). É interessante ressaltar que, apesar da contemporaneidade com Dyserinck, Pageaux parece caminhar em uma via paralela. Nesse artigo, Pageaux apresenta idéias que serão mais bem elaboradas em trabalhos posteriores, tais como: La littérature générale et comparée(5), ou ainda Da literatura comparada 87 à teoria da literatura(6), escrito em colaboração com Álvaro Manuel Machado, dentre outros. Para esse teórico, a imagem do estrangeiro deve ser estudada como fazendo parte de um conjunto mais amplo e complexo: o imaginário, mais especificamente, o imaginário social, e, dentro deste, a representação do outro. A imagem é entendida como uma tomada de consciência do eu em contraposição ao outro; é a expressão, literária ou não, de um distanciamento significativo entre duas ordens de realidades culturais, ou, ainda, é a representação de uma realidade cultural por meio da qual, aqueles que a elaboraram, revelam e traduzem seu próprio espaço cultural e ideológico. Nesse sentido, percebe-se que essa idéia é contrária ao processo de formação e de significação da imagem para Dyserinck, para quem estar em relação com era a condição primeira para a elaboração de uma imagem e o objetivo final do estudo imagológico seria a desideologização, uma vez que a imagem não faria parte de processo ideológico algum. O estudo da imagem, de acordo com Pageaux, deve se apegar menos ao nível de “realidade” de uma imagem, de sua fidedignidade, do que de sua conformidade com um modelo, um esquema cultural que lhe é preexistente na cultura que observa e não na cultura observada, da qual é importante conhecer os fundamentos, as composições e a função social. O momento histórico e a cultura determinam aquilo que pode ser dito sobre o outro. Os textos imagológicos são, em parte, programados, alguns mesmo codificados e decodificados quase que instantaneamente pelo público leitor da época em que está inserido. Para finalizar, há o trabalho de Jean-Marc Moura, “L'Imagologie Littéraire: tendances actuelles”, publicado em Perspectives comparatistes(7), que traça, assim como se buscou fazer aqui, um breve histórico da Imagologia, descrevendo, de maneira sucinta, as várias gerações de trabalhos imagológicos existentes desde os anos de 1950, com Jean-Marie Carré, até os dias de hoje, detendo-se, em seguida, em uma conceituação da imagem e seus meios de análise transcritos a seguir: [...] pour l'imagologie, toute image étudiée est image de... dans un triple sens: image d'un référent étranger, image provenant d'une nation ou d'une culture, image créée par la sensibilité particulière d'un autre. Trois niveaux d'analyse se voient définis: le référent, l'imaginaire socio-culturel, les structures d'une oeuvre... 54 (Moura, 1999: 184) O primeiro tipo de análise seria o que privilegia o referente, insistindo no realismo da imagem. O segundo caracteriza-se por considerar a imagem como pertencente àquilo que chamamos imaginário social, privilegiando, assim, tanto os textos literários quanto os não literários. O terceiro define a imagem do estrangeiro como mito pessoal do próprio autor, o que seria hipostasiar a literatura, tirando-a de seu contexto sociocultural com o qual mantém estreitas relações. O autor finaliza essa parte do texto com a seguinte afirmação: Il apparaît donc nécessaire de situer d'emblée l'étude au niveau de l'imaginaire social, pour reconnaître ce simple fait: l'appréhension de la réalité étrangère par un écrivain n'est pas directe, mais médiatisée par les représentations imaginaires du groupe ou de la société auquel il appartient. À partir de ce point central de la démarche imagologique deviennent possibles des travaux sur le référent (lecture d'une réalité historique à travers un texte conçu comme document) ou, cas plus fréquent pour les littéraires, sur la création d'un auteur dont la singularité a d'abord été mesurée dans l'horizon imaginaire de son époque. (Moura, 1999: 186)55 Jean-Marc Moura, em particular, tenta apreender a diversidade das práticas sociais imaginativas a partir de duas vertentes: a da ideologia e a da utopia. Para o autor, que segue a linha da hermenêutica de Paul Ricoeur, a ideologia possui uma função integradora, sendo uma interpretação idealizada por meio da qual um 54 [...] para a imagologia, toda imagem estudada é imagem de... num triplo sentido: imagem de um referente estrangeiro, imagem proveniente de uma nação ou de uma cultura, imagem criada pela sensibilidade particular de um outro. Três níveis de análise se vêem definidos: o referente, o imaginário sócio-cultural, as estruturas de uma obra... 55 Parece então necessário situar o estudo no nível do imaginário social para reconhecer este simples fato: a apreensão da realidade estrangeira por um escritor não é direta, mas mediatizada pelas representações imaginárias do grupo ou da sociedade à qual ele pertence. A partir desse ponto central da caminhada imagológica tornam-se possíveis trabalhos sobre o referente (leitura de uma realidade histórica através de um texto concebido como documento) ou, caso mais freqüente para os literatos, sobre a criação de um autor cuja singularidade foi primeiramente mensurada dentro do horizonte imaginário de sua época. 88 grupo se representa, reforçando assim sua identidade e coesão. A utopia, por outro lado, visa a questionar a ordem social, a subvertê-la. Ainda seguindo Ricoeur, admite, então, que o imaginário social se caracteriza pela tensão entre uma função de integração e uma função de subversão, ou seja, entre um pólo ideológico e um pólo utópico, possibilitando assim uma tipologia das imagens do estrangeiro. O princípio geral desta última constitui-se pela distinção entre ideologia, que representa o estrangeiro segundo esquemas dominantes, e utopia, que o caracteriza segundo formas excêntricas, tornando-o sua alteridade, ou pelo menos não o restringindo a ser mito pessoal de um autor. Esta distinção coloca uma série de problemas, principalmente no que tange à articulação entre o literário e o social, que só pode ser resolvida na prática. Moura, no entanto, não se preocupa em desenvolver esta questão ao longo de seu artigo. Para finalizar, discorre sobre a Imagologia nos dias atuais, ou melhor, sobre cinco tendências críticas importantes na complementação, ou como auxiliares na pesquisa imagológica. São elas: os Cultural Studies, teoria literária norte-americana; a crítica pós-colonial, a mitocrítica, os estudos de recepção e as pesquisas sobre a noção de espaço literário. Na verdade, Moura não se aparta da teoria expressa por Daniel-Henri Pageaux, trazendo-lhe alguns pormenores que tornam ainda mais operacional o conceito de imagem. Assim, não se pretendeu abarcar, neste artigo, todos os comparatistas que trabalharam com Imagologia, mas somente aqueles basilares para se entender o desenvolvimento de tais estudos dentro da Literatura Comparada e chamar a atenção para essa “teoria metodológica” chamada Imagologia que é tão pouco utilizada pelos pesquisadores brasileiros. Bibliografia MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D.-H. Da literatura comparada à teoria da literatura. 2a. ed. rev. e aum., Lisboa: Editorial Presença, 2001. MOURA, J. M. L'Imagologie Littéraire: tendances actuelles. In: BESSIÈRE, J.; PAGEAUX, D.-H. Perspectives comparatistes. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1999, p. 181-192. PAGEAUX, D.-H. Une perspective d'études en littérature comparée: l'imagerie culturelle. Synthesis. N. VIII, 1981. p. 169-185. ______. La littérature générale et comparée. Paris: Armand, 1994. WELLEK, R. A crise da literatura comparada. In: COUTINHO, E.; CARVALHAL, T. (orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.108-119. Notas 1. Doutora em Língua e Literatura Francesa pela FFLCH-USP. E-mail: [email protected] 2. Cf. WELLEK, R. A crise da literatura comparada. In: COUTINHO, E.; CARVALHAL, T. (orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.108-119. 3. A tradução deste texto nos foi cedida, em manuscrito, pela Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa (FFLCHUSP). 4. PAGEAUX, D.-H. Une perspective d'études en littérature comparée: l'imagerie culturelle. Synthesis. N. VIII, 1981. p. 169-185. 5. PAGEAUX, D.-H. La littérature générale et comparée. Paris: Armand, 1994. 6. MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D.-H. Da literatura comparada à teoria da literatura. 2a. ed. rev. e aum., Lisboa: Editorial Presença, 2001. 7. BESSIÈRE, J.; PAGEAUX, D.-H. Perspectives comparatistes. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1999, p. 181-192. 11 CANDIDO, Antonio. Literatura e Cultura de 1900 a 1945. In: ___. Literatura e Sociedade. 5.ed. São Paulo: Editora Nacional, 1976, p. 109. 12 CARVALHAL, Tania. Antonio Candido e a Literatura Comparada no Brasil. Ibidem, p. 16. 13 NITRINI, Sandra. Op. cit., p.44. 14 CARVALHAL, Tania. Antonio Candido e a Literatura Comparada no Brasi.Ibidem, p. 16. 15 NITRINI, Sandra.Literatura Comparada no Brasil - um fragmento de sua História. Anais do II Congresso ABRALIC. Belo Horizonte: UFMG, 1991, p.214. 16 Idem, ibidem, p. 216. 17 Idem, ibidem, p. 217. 18 SOUZA, Eneida e MIRANDA, Wander. Op. Cit., p. 41. 19 Idem, ibidem, p. 43. 19 Idem, ibidem, p. 49-50. 20 CARVALHAL, Tanis. Dez anos de ABRALIC (1986-1996): elementos para sua história. Organon, vol. 10, nº 24. Porto alegre: UFRGS, 1996, p. 16. |