Como a cultura imaterial pode ser comparada com o patrimônio

1O objectivo proposto no início deste projecto centrou-se nas seguintes interrogações: qual o papel dos museus na salvaguarda do PCI? E em função das suas competências, como podem os museus abordar este património? Este objectivo foi, em nosso entender, alcançado, ainda que se reconheça que o tema está longe de se ter esgotado aqui. Pelo contrário, este estudo prova, efectivamente, que este é um campo de acção ainda pouco explorado e que, muito provavelmente, será um dos aspectos mais desenvolvidos pelos museus nos próximos anos. Esta contribuição revela-se, assim, como um ponto de partida para a definição de estratégias nesta área.

2Torna-se inquestionável o papel que o PCI assume no quotidiano de todos nós. Trata-se, afinal, de um elemento fundamental da nossa identidade. Conhecê-lo, revela-se essencial para a compreensão do mundo em que vivemos. Este pode ser também um terreno particularmente fértil para conhecer melhor os outros, aceitar as diferenças e promover a diversidade entre culturas.

3A UNESCO deu maior visibilidade à necessidade de preservar este património. O discurso não é novo, há muito que no seio da antropologia se discute e reflecte sobre este assunto. Todavia, quando o tema da preservação do PCI começou a fazer parte da agenda da UNESCO, o discurso tornou-se também político. E é nesta esfera que se vão dando passos, sobretudo, a partir da segunda metade do séc. XX, mas com particular importância na década de noventa, altura em que se começa a definir com maior clareza o instrumento internacional de protecção para o PCI. A Proclamação das Obras-Primas foi o tubo de ensaio necessário para que a Convenção de 2003 fosse bem sucedida, à partida um documento que dificilmente seria adoptado pelos aspectos controversos que podia gerar (ex. direitos humanos). Se comparada a Convenção de 2003 com outros documentos congéneres, nomeadamente com a Convenção sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático (2001) é fácil concluir o sucesso que este instrumento alcançou.

4De facto, o enfoque dado ao PCI nos últimos anos tem potenciado, porventura, uma maior consciência colectiva e que encontra expressão nem que seja nas notícias que quotidianamente são veiculadas pela comunicação social sobre possíveis candidaturas do PCI às Listas da UNESCO (Lista Representativa e Lista de Salvaguarda Urgente), que vão desde as mais disparatadas pretensões às mais fundamentadas.

5Em boa parte, a UNESCO ao formular recomendações neste domínio do património veio chamar a atenção que uma expressão do PCI é tão importante como um edifício histórico, procurando ultrapassar a ideia de menorização que, muitas vezes, a dita “cultura popular” esteve sujeita no passado. Os governos têm a difícil tarefa de traduzir as orientações da UNESCO em boas práticas nos seus territórios, implementando políticas culturais em conformidade com estes pressupostos. O que significa também que, a par com o direito internacional, cabe a cada país desenvolver legislação específica.

6Este foi o caso português, que na senda da ratificação da Convenção de 2003 fez publicar legislação referente ao PCI. Independentemente de questões quanto à sua aplicabilidade, torna-se evidente que a legislação não resolve tudo. Foi neste quadro que também seriam definidas as instituições de tutela e gestão deste património, sendo acometidas competências ao IMC, contrariando o que parece ser uma tendência noutros países, onde as responsabilidades para com a formulação de políticas nesta área têm sido atribuídas às instituições que tutelam o património cultural383. Todavia, a responsabilidade do IMC na implementação da Convenção de 2003, remete para os museus uma colaboração activa neste objectivo.

7Sendo os museus instituições intrinsecamente ligadas ao património, não são indiferentes ao PCI, cabendo-lhes um papel fundamental na sua salvaguarda, como foi possível confirmar ao longo desta reflexão. Este enfoque relativamente ao PCI pode traduzir-se, em muitos casos, no desenvolvimento de actividades que podem incluir o inventário e a documentação, pesquisa, promoção (publicações, exposições, disseminação da informação através da internet) e actividades direccionadas para promover a transmissão do PCI, nomeadamente através do serviço educativo e de programas de formação. Mas em boa verdade, pode afirmarse que, na prática, a maior parte dos museus não tem experiência a apresentar o imaterial, este é o caso dos museus portugueses como de muitos outros museus. As razões de tal desiderato prendem-se com uma longa tradição de valorização da cultura material.

8Parece seguro afirmar que se começam a dar os primeiros passos nesta matéria. Tendo em consideração a realidade museológica portuguesa, ainda que sem a pretensão de uma análise exaustiva, foi possível tirar algumas conclusões. A museologia portuguesa não se encontra alheia à importância do PCI, como parece comprovar-se pelo desenvolvimento de projectos e iniciativas relativas à documentação do PCI, alguns deles referidos ao longo deste estudo. Ainda assim, são experiências mais ou menos fragmentadas, pontuais e que timidamente vão dando sinais de mudança.

9Por outro lado, o discurso de salvaguarda do PCI veiculado pela UNESCO assenta em pressupostos que são, de certo modo, familiares à museologia: função social, identidade, desenvolvimento sustentável, interdisciplinaridade, cooperação, participação das comunidades, valorização e planeamento integrado do território. Estes temas têm constituído matéria de reflexão no seio da filosofia da nova museologia, durante as últimas décadas e constituem temas actuais, como pode constatar-se no regulamento do Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM)384, constituindo coordenadas úteis para o desenvolvimento de práticas museológicas que dêem visibilidade ao PCI.

10Todavia, face às potencialidades de trabalho que oferece o imaterial para os museus, foi possível reconhecer algumas limitações. Os museus poderão ser as instituições mais bem posicionadas, mas nem todos os museus reúnem condições que garantam a aplicabilidade dos objectivos promovidos pela Convenção de 2003. Como faz notar Joaquim Pais de Brito, “a vastidão do tema, retoma os grandes capítulos dos manuais de etnologia, tem também muito de utopia.”385 Perante um vastíssimo campo de trabalho que inclui o imaterial, seria imprudente pensar que os museus pudessem responsabilizar-se por todo este património. Não devem e muitas das vezes não podem. Trata-se, afinal, de uma tarefa imensa e que deverá ser partilhada. Neste sentido, exigem-se novas formas de acção e colaboração, nas quais os museus podem ser parceiros importantes.

11Por outro lado, o alcance das iniciativas dos museus face ao PCI está à partida muito dependente das condicionantes próprias de cada museu, desde logo a sua vocação, abrangência temática e geográfica, função social e dos recursos disponíveis (materiais e humanos). Sobre este último aspecto, pode dizer-se que este é um dos problemas mais relevantes se considerarmos o panorama museológico português e a ausência, em muitos museus, de equipas de trabalho pluridisciplinares que possam responder às exigências de desempenho que acompanha o alargamento das competências dos museus. A identificação e valorização do PCI remete também para a aplicação de métodos e técnicas de investigação próprios da antropologia, o que se traduz na necessidade de incorporar mais profissionais desta área no quadro de pessoal dos museus.

12Em grande medida, a atenção especial que tem merecido o imaterial, permite aos museus amplas possibilidades de renovação e de experimentação, mas os procedimentos terão de ser diferentes dos que nortearam a dinâmica museal até aqui. Daqui ressalta a possibilidade de trabalho com as colecções já existentes, ao nível da sua documentação, mas também a possibilidade de novas recolhas que permitam a actualização das colecções e sua ligação ao presente e, por sua vez, a um património que se pratica no seio das comunidades. Por outro lado, e em consonância com a Convenção de 2003, os museus encontram aqui também novas formas de olhar o património, de onde resulta a importância de uma reflexão pragmática, em função do seu território e dos seus patrimónios e tendo em conta a articulação com as comunidades.

13Nem todo o património necessita de ser salvaguardado e, neste sentido é necessário auscultar as comunidades, mapear os problemas e identificar prioridades.

14A salvaguarda do PCI deve privilegiar uma visão integrada do património, sob pena de se perder a noção do todo. Está-se perante uma noção de património cada vez mais complexa que exige, por sua vez, abordagens mais inovadoras. Este é um caminho que tem pouco de linear, que muito possivelmente terá de se alicerçar na experimentação em pequenos projectos, privilegiando uma atitude de reflexão constante. Enfim, um caminho que se faz experimentando.

15Assim, muito contribuirá para o desenvolvimento de experiências nesta área, o debate em torno dos aspectos referidos, permitindo uma reflexão mais alargada sobre estas matérias e, sobretudo, a troca de experiências. Neste campo, alguns passos foram dados com a realização de um conjunto de colóquios promovido pelo IMC, em 2008. Todavia, os temas debatidos não esgotaram todas as problemáticas que o PCI encerra.

16A análise ao panorama museológico português, ainda que breve, deixou antever a necessidade de um estudo mais sistemático sobre as experiências e resultados que alguns museus têm desenvolvido no campo do PCI, só possível através de uma investigação mais alargada e continuada, que não foi possível aprofundar na presente reflexão.

17Tomando em consideração o alargamento de competências dos museus face aos desafios actuais, nos quais se incluem maiores responsabilidades relativamente ao PCI, este parece ser um sinal de que os museus poderão ter que se redefinir. Podemos estar a assistir a uma mudança de paradigma que advoga maior atenção para as relações que se estabelecem entre os objectos e as pessoas, em detrimento de uma abordagem demasiado centrada na cultura material. Nesta linha de raciocínio, Eilean Hooper-Greenhill propõe a emergência de um novo conceito de museu, ao qual designa como post-museum, no seguimento do modernist museum, nascido no séc. XIX386. Para a autora, o post-museum “will retain some of the characteristics of its parent, but will re-shape them to its own ends”387. Isto significa que, no que concerne ao papel dos objectos, o post-museum “will hold and care for objects, but will concentrate more on their use rather on further accumulation (…) and will be equally interested in intangible heritage”388. Note-se que na filosofia do post-museum, também as comunidades contribuem para a construção de conhecimentos, permitindo diferentes perspectivas. Nas palavras da autora: “knowledge is no longer unified and monolitic; it becomes fragmented and multivocal”389.

18Como sublinha Koïchiro Matsuura: “intangible cultural heritage is not just the memory of past cultures, but is also a laboratory for inventing the future”390. Esta é uma afirmação que pode aplicar-se também aos museus. Apesar de ancorados no passado, os museus podem e devem comunicar esse legado fazendo-o de forma criativa e inovadora e assim estimulando as novas gerações a recriá-lo no futuro.

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