A tradição da literatura popular

A dissertação de mestrado intitulada A literatura popular de tradição oral, em Timor-Leste: caracterização, recolha e modos de escolarização foi defendida em 2007 por Nuno da Silva Gomes no Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, em Braga, Portugal. 

Conforme mencionei rapidamente na postagem anterior (//easttimorlinguistics.blogspot.com.br/2014/03/roteiro-da-literatura-em-timor-leste-em.html), esta dissertação apresenta uma contribuição importantíssima ao estudo da literatura leste-timorense ao fazer um trabalho triplo, que foram os seguintes: um estudo dos gêneros literários orais da literatura leste-timorense; uma ampla coleta de dados com a reprodução/transcrição e tradução de vários textos; a análise tanto estrutural como dos ensinamentos existentes em cada um dos textos coletados. Chego até a consultá-la e citá-la, em algumas de minhas publicações, devido ao belo trabalho feito pelo autor.

Seguem o resumo e o abstract: 

ResumoA presente dissertação pretende ser uma análise crítica da literatura de tradição oral, focando especialmente os aspectos da tradição da comunidade em Timor-Leste, sobretudo na comunidade étnica Tétum Terik em Fohoren. Aí, existem três formas de literatura popular de tradição oral, com características próprias: a poesia narrativa, “hamulak”; o verso, “aiknananuk”; e o conto popular, “aiknanoik”. Nessa comunidade, como na comunidade timorense em geral, não é conhecida a tradição escrita. Por isso, a tradição oral foi e é considerada como um veículo importante na transmissão dos saberes do povo. Pela sua função de “arquivo” de saberes ancestrais do povo, contendo tradições, sistemas de valores e outras normas convencionais da comunidade, este estudo vai analisar as estruturas narrativas de textos recolhidos e seleccionados, e tentar descobrir os signos convencionais da comunidade, intimamente ligados à sua tradição. Para atingir este objectivo, o presente trabalho estabelece dois modelos de aproximação complementares: o de critica textual literária e o didáctico-formativo. O primeiro tem como objectivo a explicação dos aspectos textuais no contexto daquela comunidade, relacionando-os com os aspectos de sistema convencionais da comunidade. O segundo é uma aproximação metodológica, isto é, o aproveitamento dos textos literários recolhidos para o ensino aprendizagem na aula de Língua Portuguesa em Timor-Leste. Por meio da análise estrutural das narrativas de tradição oral, encontramos muitos códigos culturais da comunidade, que fornece informações e possibilita a interpretação e a compreensão dos textos literários. Na parte da análise de textos, a propósito do hamulak, encontramos, pelo menos, quatro visões da comunidade do étnico Tétum Terik em Fohoren: 1) A visão sobre o seu ente supremo (Maromak), que significa o iluminador; 2) A visão sobre a amizade e a harmonia da comunidade; 3) a visão sobre a reincarnação depois da morte; 4) a visão sobre o bem e o mal. No texto aiknananuk, estão subjacentes os ensinamentos morais da comunidade. Nos textos de contos e lendas populares, encontram-se a sabedoria e os aspectos importantes da cultura e das normas sociais do povo. Na parte final, apresentamos sugestões metodológicas para a aplicação do trabalho ao ensino da Língua Portuguesa, em Timor, nos aspectos culturais e ensino da literatura, sobretudo a alunos de nível pré secundário, em todo o território de Timor-Leste. 

Abstract: The main goal of this dissertation is to make a critical analysis of oral tradition of literature, focusing especially on the aspects of tradition of East Timor community, specifically about the Tétum Terik ethnic community in Fohoren. There are at least three types of popular literary of oral tradition with its proper characteristics such as narrative poetry “hamulak”, verse “ainananuk” and folktale “ainanoik”. In this community as in East Timor community in general, does not know any script tradition, so that, the oral tradition was and is considered as a very important instrument for the transmission of this oral tradition to the people. Because of its function as an archive of the ancestral knowledge of the people which contains its traditions, its values systems, and other conventional norms of the community, this study is going to analyze the narrative structure of the text and try to discover the conventional signs of the community which is intimately related to its traditions. To obtain this objective, this study is using two types of approach; the literary textual critics and the didactic formative. The objective of the first approach method is to explain about the textual aspects in the context of that community, relating to the aspects of the conventional systems of the community that facilitate the understanding and interpretation of the literary work. The second approach is a methodological approach. It is about the use of the literal texts that are gathered for the teaching training in Portuguese classes in East Timor. Through the mean of narrative structural analysis of oral tradition, we find a lot of cultural signs of the community that provide the information and facilitate an interpretation and understanding of literary texts. In side of the text analysis, in respect of Hamulak, we find at least four point of view of Tétum Terik ethnic community in Fohoren. 1) A point of view of the Supreme Entity (Maromak) that means the Illuminator. 2) A point of view of the amity or friendship and harmony in community. 3) A vision of reincarnation after death. 4) A vision about the good and bad. In the text 2 (ainananuk) is the subjacent of the moral teachings of the community. In the texts of folktales and legends there would be found all of the wisdoms of the community, the important aspects of the culture and social norms of the people. At the last part of the study, we present a methodological recommendation for the teaching of the Portuguese, the cultural aspects of the community, and the teaching of the literary, especially in the junior high school in all part of East Timor.

Abaixo é só clicar nas imagens para fazer o download da capa e da dissertação:

 

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A Comunicação e a Literatura Popular de Alexandre Parafita

Plátano, 1999, 160 págs

Como todas as coisas sujeitas às peripécias e necessidades do tempo e do lugar, também os conteúdos dinâmicos da memória social e dos saberes colectivos – sobretudo quando se transmitem por via oral – se alteram ou acabam por se ver relegados ao desuso e esquecimento. Contudo, é sabido que nas sociedades tradicionais, nomeadamente camponesas (como é o caso da sociedade rural transmontana), a transmissão tradicional do saber passa pela oralidade, que assim se constitui não apenas como veículo privilegiado de identidade, comunicação e reprodução sociais mas também como meio de desenvolvimento humano e de construção de uma dada imagem do mundo, em nada inferiores, sabe-se hoje, aos das sociedades da escrita, embora estas disponham de um sofisticado e hegemónico arsenal de suportes de produção e comunicação.

Neste contexto, porém, a oralidade enquanto tal, como meio predominante de criação e transmissão do saber, está por certo condenada a desempenhar um papel cada vez menor, tanto mais que tende a ser considerada pela cultura dominante – a elite letrada urbana – como vestígio residual, apanágio ancestral dos iletrados ou marca de uma inferioridade sociocultural. Entram nesta categoria contos, lendas, mitos, lengalengas, provérbios, orações, cantigas e romances, que constituem o «corpus» ainda vivo, embora ameaçado e até mesmo em completa via de extinção, da «literatura popular de tradição oral», um conceito integrador e esclarecedor cuja importância Alexandre Parafita (docente de Comunicação, investigador, jornalista e escritor de obras infanto-juvenis) defende neste estudo a propósito do que ainda subsiste e que se torna urgente preservar na cultura oral de Trás-os-Montes e Alto Douro. Quanto mais não seja porque, como sublinha Paul Connerton, citado no prefácio por Donizete Rodrigues, «a oralidade é a possibilidade de salvar do silêncio a história e a cultura dos grupos subordinados».

O livro de Parafita não se limita, pois, a relatar em segunda mão. Fala de experiência no terreno, contextua1iza o produtor ainda vivo da literatura popular de tradição oral de Trás-os-Montes e Alto Douro, assim como as suas produções, um legado cultural, prenhe de significado e inquietação, que se transmite de geração em geração: «É lavrador, pastor e artesão. Nas horas vagas é filosofo e poeta e, o entardecer da vida, contador de histórias. Histórias de vida, quase sempre; e, quase sempre também, de proveito e exemplo. Histórias que transmite aos netos, e, com elas, fá-los herdeiros da sabedoria ancestral de que é fiel depositário.»

Nesta medida, a obra de Parafita assume os contornos de uma vasta operação de resgate dos meios de transmissão intergeracional da tradição popular, especialmente da sua literatura oral, contribuindo deste modo para demonstrar a eficácia e a força comunicativa da literatura popular e para a (re)definir como objecto pertinente de estudo. Diz o autor: «O objectivo fundamental deste trabalho é, justamente, tentar contribuir para um reforço da cientificidade da interpretação da literatura popular como veículo de comunicação. (...) A opção por esta região (Trás-os-Montes e Alto Douro) prende-se com a circunstância de se tratar de um espaço particularmente rico neste género de literatura e, apesar disso, continuarem a faltar os estudos sobre ela, uma vez que o conhecimento que existe se esgota em alguns levantamentos de pendor especialmente etnográfico.»

O plano da obra desdobra-se em seis capítulos recheados de ponderada informação (que traduz uma consulta bibliográfica exaustiva), obviamente incontornável para quem deseje entrar no mundo da literatura popular de tradição oral com um método de trabalho fiável. Não surpreende, pois, que os capítulos se estendam a questões fulcrais, tais como: a arte popular como estética de vida e prática social; identificação e caracterização da literatura popular de tradição oral; a região como factor de criação e permanência dessa «arte da memória» que é a literatura popular; caracterização dos géneros desta produção literária dos meios rurais (com particular incidência no conto e na lenda, de que são dados dois textos, considerados paradigmáticos pelo autor); por fim, são equacionadas a vocação e as virtualidades da comunicação oral numa perspectiva de relacionamento com todo o sistema semiótico deste tipo de literatura.

Enfim, um estudo de referência, dada a sua importância para os professores, alunos e outros interessados em ciências da comunicação, literaturas. linguística, semiologia, antropologia cultural e outras disciplinas que com estas façam fronteira.

VÍTOR QUELHAS (in “Expresso”, 26/7/1999)

O Maravilhoso Popular – Lendas, Contos Mitos de Alexandre Parafita

Plátano, 2000, 192 págs.

Se o primeiro livro de Alexandre Parafita – A Comunicação e a Literatura Popular (Plátano, 1999) – surpreendeu, esta sua nova obra, consagrada ao maravilhoso e ao fantástico que povoam o imaginário rural de Trás-os-Montes e Alto Douro, veio confirmar a qualidade do seu trabalho de campo relativamente à recolha e ao estudo da literatura oral popular. Dada a erosão acelerada e incontornável de tal tradição, trabalhos (que malfadadamente não são assim tantos) como os de Alexandre Parafita, jornalista, autor de literatura infantil-juvenil e docente do ensino superior, respondem à extrema urgência de fixar a natureza cada vez mais volátil deste património por todas as razões inestimável.

Quem teve o bom fado de escutar junto da lareira, quando criança ou mesmo na idade adu1ta (ou tiver ainda o condão de se deixar seduzir por um mito, uma lenda ou um conto de tradição ora1), algumas das narrativas do maravilhoso popular transmontano ou das suas variantes reportadas por Parafita não deixará de nelas reencontrar ecos desse deslumbramento e prazer, pois de puro prazer se trata. Se o leitor for professor, educador ou mesmo investigador de uma disciplina que tenha como objecto de estudo este universo narrativo prenhe de ancestra1idades, ambiguidades e fronteiras subtis, não deixará por certo de encontrar nesta obra abundante material de trabalho.

Alexandre Parafita desdobra perante o leitor uma galeria de personagens literário-orais, algumas já habituais outras de espécie menos comum, que são: a alma penada, a bruxa, a diabo, a fada, a lobisomem, a morte, a moura encantada, o o1harapo e o trasgo. são os «nove seres sobrenaturais» (na ordem estabelecida pelo autor), corno refere João David Pinto-Correia (professor da Faculdade de Letras de Lisboa), no prefácio, e que das narrativas e deles diz: «(...) revelam poderes inatingíveis pelos humanos, matizam-se com dádivas e ameaças, com terrores e vinganças, mas igualmente com brincadeiras e brejeirices.» Por outro lado, Parafita, ao tecer considerações sobre o rnaravi1hoso popular e as suas funções, diz deles também: «A superstição e a crença nestes seres, que em muitos casos o homem rural aceita sem reservas, tem contribuído para a preservação, no seu próprio ‘habitat’ de uma literatura oral caracteristicamente transmontana.» Prosseguindo: «A região, pelo isolamento das suas comunidades rurais, pelas características da sua paisagem e ambientes nocturnos de medo e soturnidade, tem favorecido, de resto, essa preservação, criando cenários que permitem os equívocos entre o real e o fantástico.»

Porém, nem tudo no imaginário popular foi ou é redutível a pura fantasia, a superstição ou a hitória moral exemplar. Depois dos estudos da psicologia analítica sobre o inconsciente e a sincronicidade e dos contributos da psicologia transpessoal sobre a amplitude do campo da consciência e das percepções, poder-se-ia afirmar que muitos dos conteúdos das narrativas populares de tradição oral correspondem, pelo menos na origem da sua transmissão, a experiências arquetípicas subjectivamente autênticas. Ou seja, foram vivenciadas, não sem inquietação ou deleite, como extensão dos limites convencionais da realidade e, portanto, como experiências individuais ou colectivas psicologicamente significativas, sendo em seguida revestidas com as roupagens apaziguadoras e socia1mente admissíveis do mito, da lenda e do conto. Nesta medida, a recolha e o estudo de Parafita, sem o querer, pois o seu objectivo é outro, constitui também um contributo importante para melhor se entenderem os mecanismos psicológicos e transpsicológicos envolvidos na elaboração do «inexplicáve1», do «feérico» e do «sobrenatural» na tradição oral popular. E de referir, ainda, pois seria injusto não o fazer, a excelente qualidade gráfica das ilustrações de Manuel Trovisco, que no seu estilo «naïf», constituem um poderoso suporte imagético às narrativas do maravilhoso que o livro dá a conhecer.

VÍTOR QUELHAS (in “Expresso”, 8/7/2000)

Antologia de Contos Populares – Volumes I e II de Alexandre Parafita

A memória ancestral dos povos, pela via dos contos populares de tradição oral, é um suporte altamente volátil. Confrontada hoje com a supremacia imperial dos “media”, esta delicada memória, se não fosse entretanto fixada em suportes mais duradouros, como a escrita, perder-se-ia irremediavelmente e com ela uma parte importante da consciência colectiva e até da nossa consciência enquanto indivíduos. Parafita é um dos estudiosos, entre os poucos que em Portugal se dedicam a esta árdua tarefa, que se tem batido pela integridade deste género narrativo (é proposta dele designá-lo, dignificando-o, por “Literatura popular de tradição oral”) ainda considerado por muitos como subliteratura, portanto prescindível. O que e r um conto popular? De resposta aparentemente simples, a questão é, contudo, complexa. Na sua Antologia de Contos Populares em dois volumes (o último saído em fins de 2002), A. Parafita procura uma rigorosa e (quase) exaustiva definição de conto popular – entre outros géneros de conto –, prosseguindo uma demanda, agora cem instrumentos mais incisivos de análise, de que foram pioneiros Adolfo Coelho e Teófilo Braga. Além da excelente introdução («Achegas para um Estudo dos Contos Populares»).a antologia contém variado reportório de narrativas que se dividem tematicamente em contos religiosos, contos novelescos, contos de fadas ou do maravilhoso e contos do ogre, também conhecido por demónio estúpido. O posfácio de Ana Paula Guimarães é de leitura obrigatória. Indispensáveis são também, para quem se interesse pelo destino do conto popular português, outras obras do autor – A Comunicação e a Literatura Popular e O Maravilho Popular -Lendas, Contos. Mitos.

Vítor Quelhas, em Expresso, 1 de Março 2003

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