Por que o trabalho de campo provocou uma espécie de revolução na coleta de dados na antropologia?

Por que o trabalho de campo provocou uma espécie de revolução na coleta de dados na antropologia?

Pioneiro do método de observação-participante e do paradigma funcionalista, Bronislaw Malinowski consolidou a antropologia como uma disciplina acadêmica com objeto, método, teoria e instituições próprios. Foi mentor da primeira geração “científica” de antropólogos britânicos, influenciando também seus colegas norte-americanos e franceses.

VIDA

Bronisław Kasper Malinowski nasceu em Cracóvia em 1884, então uma província de língua polonesa do multi-étnico Império Austro-Húngaro. Seu pai, Lucjan Malinowski, era um filólogo eslavista na Universidade Jaguelônica que fizera pesquisa de campo nos estudos do dialeto e folclore polonês da Silésia. Sua culta mãe, Józefa Lacka, vinha de uma família proprietária de terras moderadamente rica, que levava o pequeno Bronislaw ao Mediterrâneo em busca de climas melhores ao doentio filho.

Aos 24 anos Malinowski doutorou-se com altas honras na Universidade Jaguelônica em filosofia, física e matemática. Na época, suas influências maiores era o positivismo de Ernest Mach. Logo após sua formatura, acometido por uma tuberculose, enquanto convalescia leu uma versão de O ramo de Ouro de Sir James George Frazer. Esse estudo comparativo da religião, publicado em 1890, seguia uma perspectiva evolucionista de antropologia, despertando o interesse de Bronislaw por essa disciplina e pelos fenômenos sociais e culturais.

Em uma breve estada em Leipzig, estudou economia com Karl Bücher e psicologia com Wilhelm Wundt, além de complementar seus estudos de físico-química. Decidido aprofundar em seus estudos, em 1910 foi à London School of Economics and Political Science (LSE), então uma instituição de ensino superior nova e audaciosa, onde a antropologia tinha sido recentemente estabelecida como disciplina autônoma.

As influências da célebre Expedição ao Estreito de Torres (1898) reverberavam na LSE. Como resultado, as inovações metodológicas do trabalho de campo (inclusive fotografias dos sujeitos da investigação em situações “reais”) contrapunham à antropologia de gabinete da época. Como visto, fazer trabalho de campo etnográfico não foi invenção de Malinowski, mas influências de seus mentores como W.H.R. Rivers, C.G. Seligman e Edward Westermarck. Porém, coube a Malinowski elaborar uma sustentação teórica propondo a observação participante como método próprio da antropologia.

Em 1913 Malinowski publicou seu primeiro estudo antropológico, baseado em dados etnológicos, sobre o parentesco dos aborígenes australianos. Sua crítica aos paradigmas evolucionistas deram-lhe certa notoriedade e Robert Ranulph Marett convidou-o a ir fazer trabalho de campo na Austrália. Após uma breve pesquisa na Ilha Mailu, nas costas de Papua Nova Guiné, a irrupção da 1a Guerra pegou-o em meio a viagem. Sendo cidadão austro-húngaro, portanto, inimigo britânico, seu destino seria o confinamento. Entretanto, negociou sua estada na ilhas Trobriand, então isolada entre a Austrália e Nova Zelândia.

Enquanto viveu nas ilhas Trobriand entre 1915 e 1918, Malinowski viveu como os locais. Aprendeu a língua nativa, socializou e participou dos eventos de seus anfitriões. Ao contrário da narrativa heroica de sua monografia, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, o contato de Malinowski com os sujeitos e o trabalho de campo foram menos glamourosos. Seus diários publicados postumamente retrata um Malinowski não como um abnegado sofredor em nome da ciência, mas o lado humano do etnógrafo com medos, desejos e preconceitos.

Ao seu retorno a Londres, doutorou-se em antropologia pelo LSE em 1922. Seu estudo sobre o kula tornou-o famoso. Casou com uma artista plástica britânica, Valetta Swann (1904-1973) e alcançou sua almejada reputação. Foi criado uma cátedra de antropologia para ele no LSE e formou uma geração de antropólogos. Inspirado em Durkheim, propôs uma teoria funcionalista das instituições sociais. Era uma teoria até simplista: para cada necessidade orgânica havia uma instituição sociocultural que a satisfazia. Com essas instituições, uma dada sociedade funcionava em um idílico equilíbrio. Indubitavelmente, sua apologia à observação-participante como método da antropologia seria sua maior contribuição a essa ciência.

Alunos de Malinowski: Raymond Firth, Phyllis Kaberry, Isaac Schapera, Eileen Krige, Monica Wilson, Hilda Kuper e Fei Xiao-tong.

Em 1938, o então cidadão britânico naturalizado partiu para uma viagem —  que deveria ser curta — aos Estados Unidos. Mais uma vez uma guerra o surpreendeu no meio da viagem. Como na primeira vez, aproveitou seu impedimento de viajar para dedicar-se à antropologia. Fez trabalho de campo no México e conheceu a Edward Sapir, deu aulas em algumas universidades. Em 1942 morreu, pouco tempo depois de assumir uma cátedra em Yale.

OBRAS

Argonauts of the Western Pacific (1922) Argonautas do Pacífico Ocidental (Abril Cultural, 1978) introduz a observação-participante como método de pesquisa, discorrendo e escopo da etnografia. Descreve a geografia do arquipélago de Trobriand e sua chegada às ilhas. Além de sua tão citada parte metodológica, o livro trata do kula, a troca ritual entre os ilhéus. Retrata as viagens com as canoas, a magia e as cerimônias. Termina com um capítulo reflexivo sobre o significado do kula. Apesar de recusar a se aventurar em especulações, esse clássico da antropologia fundamentou as teorias do funcionalismo, da etnografia contemporânea e da antropologia econômica.

Outras obras menores sobre essa área incluem The Natives of Mailu (1915) e Baloma (1916), sobre a religião local.

Crime and custom in Savage Society (1926) Crime e Costume na Sociedade Selvagem (UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2003). Demonstrou que entre os povos “primitivos” havia o Direito e não meras instituições de tabus.

Sex and repression in Savage Society (1927) Sexo e repressão na sociedade selvagem (Vozes, 1973). Provou que o complexo de Édipo e a psicanálise freudiana não fazia sentido em sociedades não europeias.

The Sexual Life of Savages in North-Western Melanesia (1929) A vida sexual dos selvagens da Melanésia (Francisco Alves, 1983) argumenta que o sexo não é mero impulso físico, mas envolve afeto e gera a cultura. Seu tratamento explícito do sexo ajudou a quebrar a moralidade vitoriana tida ainda como norma no Reino Unido.

Coral gardens and their magic (1935) em dois volumes mostra como as práticas de agricultura de pequena escala possui inter-relações com rituais, mito, política, territorialidade e organização social. O vocabulário focal e o estudo de semântica no segundo volume é maior obra em linguística de Malinowski.

A Scientific Theory of Culture and Others Essays (1944) Uma teoria científica de cultura (Zahar, 1975). Discorre do papel da antropologia em proporcionar suportes teóricos para interpretar dados sobre povos. Da mesma forma, historiadores sobre a pré-história e arqueólogo providenciariam esses dados e os interpretariam conforme os paradigmas antropológicos (funcionalista).

Magic, Science, and Religion (1948) Magia, Ciência e Religião  (Edicoes 70, 1984). Malinowski argumenta a universalidade da magia e religião, colocando-os em paralelo ao pensamento científico, também universal. Para o autor magia seria meios de manipular o universo para alcançar algum fim e religião seria um fim em si mesmo. Já o pensamento científico seria a capacidade de correlacionar causas e consequências de forma naturalística.

La economía de un sistema de mercado en México: un ensayo sobre etnografía contemporánea y cambio social en un valle mexicano (Antropologia e Historia, Sociedad de Alumnos, 1957). Em junho de 1940, Malinowski e sua esposa Valetta Swann investigam com o jovem etnólogo mexicano Julio de la Fuente o vale de Oaxaca. Em uma rara posição normativa, Malinowski conclui que seria melhor para o futuro dos camponeses e indígenas no México serem integrados pelas iniciativas do Estado. A derradeira obra de Malinowski também esclarece alguns pontos teóricos do funcionalismo.

A Diary in the Strict Sense of the Term (Routledge 1967) Um diário no sentido estrito do termo (Record, 1988). Os diários privados de campo de Malinowski nunca foram destinados para publicação. Apesar do descontentamento da filha do etnógrafo, a obra revelou os temores, os preconceitos, as fantasias sexuais do autor, sua frustração com os nativos e a saudade. Com interessantes alusões a Freud e a Joseph Conrad, a exposição cândida do trabalho de campo acendeu as discussões de crítica reflexiva do trabalho e papel do antropólogo nas décadas de 1970 e 1980.

SAIBA MAIS

A série de documentários produzidos pelo Canal 4 da BCC retrata com primor a trajetória de Malinoswki:

Tales From The Jungle: Malinowski

ou

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