Onde as mulheres são comparadas a égua

 A primeira parte destas notas mostrámos como o Puro-Sangue Árabe chega aos nossos dias com um passado único, longínquo e misterioso. Neste segundo ensaio tentaremos determinar se o padrão actual da raça está em acordo com as qualidades que lhe eram exigidas há muitos séculos, aquelas que fizeram do Árabe o rei dos cavalos, numa época em que ele era um animal essencialmente útil e funcional e não um ”objecto de exposição”, como alguns dos recentemente “fabricados” para os concursos de “show” de diferentes países.

Pescoço de Cisne

A partir do século quinto, para mais facilmente definir as particularidades do Cavalo Árabe e para melhor ilustrarem o que queriam transmitir, autores antigos fizeram comparações diversas, algumas cheias de humor.

Amadores de cavalos e de mulheres, os árabes faziam constantes paralelos entre os dois seres vivos que mais amavam:

  • Como a mulher, a boa égua deve ter o peito alto, a anca redonda e a mansidão.
  • Para que seja bom, o cavalo árabe deve ter a cabeça da gazela, o pescoço do cisne, o peito da virgem e a anca da viúva.
  • A maior das bênçãos que um servo de Alá pode ter, é uma mulher inteligente e uma égua prolífera.
  • Os cavalos e as mulheres escolhem-se pelas mães.
  • A égua, como a mulher, deve aumentar o seu vigor e força com o calor do combate.
  • Um cavalo rápido consegue as mais belas mulheres do deserto.
  • Só uma coisa não se troca por mulheres, é um grande cavalo Azil (de raça pura).
  • Se tiveres de escolher entre a fidelidade da mulher e a do cavalo, escolhe a do cavalo.
Do touro a largura do peito

Também muitos livros antigos referem as características do Cavalo Árabe relacionando-as com as de outros animais. Assim, em acordo com aqueles escritos, o cavalo árabe deve ter:

  •  da gazela, a cabeça (larga em cima e estreita nas narinas), o tamanho e a cor dos olhos, o comprimento dos posteriores, a saliência dos curvilhões, o volume das ancas;
  •  do cão, a boca bem rachada, o comprimento da língua, a abundância da saliva;
  •  do touro, a largura do peito e a altura da espádua;
  •  da avestruz fêmea, a solidez dos membros e a secura dos tendões;
  •  do camelo, o comprimento do antebraço e o volume das canelas;
  •  da raposa, a inteligência;
  •  da serpente, a flexibilidade. 

Evidentemente, muitos eruditos descreveram as qualidades do nobre cavalo de uma maneira que, sendo menos imaginativa, tem o mérito de um maior realismo.

Em particular na obra escrita no século catorze por Ben Hodeil, encontramos interessantes informações que confirmam escritos ainda mais antigos.

Resumem-se assim:

  • Qualidades psíquicas e funcionais:
    Orelhas de grande mobilidade (franqueza e coragem); olhos pretos, grandes e brilhantes (inteligência); lábios finos e lisos (boa boca); língua comprida (salivação abundante e boa digestão); narinas largas com bordos finos, pouco peludos (boa respiração e resistência); ganachas ligeiras (vivacidade); pêlo fino e macio (energia e saúde); pescoço comprido e alto (energia e nobreza), fino em cima e largo na base (solidez e melhor respiração).
  • Qualidades de velocidade:
    Espáduas bem ligadas ao garrote, tendo saliências na sua articulação com o braço; peito largo; músculos carnudos e bem marcados.
    Espáduas bem ligadas ao garrote
  • Qualidades de força:
    Dorso curto, direito e largo; rim sólido e carnudo; tórax espesso com costelas largas e compridas; concavidade na região superior dos flancos.
  • Qualidades de vigor:
    Ancas um pouco inclinadas, altas e salientes; ilíacos longos e largos; sacro forte e espesso.
  • Qualidades de solidez:
    Braços curtos; antebraço longo e espesso; extensor do metacarpo vigoroso e carnudo; joelhos fortemente ligados; canelas curtas e largas, com tendões bem marcados e espessos; quartelas vigorosas; cascos e talões grandes.
  • Qualidades de impulsão:
    Coxas fortes, extensas, largas e musculadas.
  • Qualidades estéticas:
    Cabeça mostrando uma grande distância entre a raiz do topete e o lábio superior; ponta do nariz fina; faceira lisa e larga; ponta dos olhos pouco carnuda e pálpebras finas, olhos distantes das orelhas, com sobrancelhas estreitas; testa larga; orelhas compridas, finas, aveludadas, afiadas nas pontas e graciosamente enroladas na base; topete fino e comprido.

Pela enumeração transcrita constatamos que os caracteres mais apreciados pelos árabes do século catorze, não são os mais louvados por certos júris estrangeiros dos nossos dias, que parecem olhar mais para os olhos do animal do que para os seus curvilhões.

É que naquela época o cavalo árabe devia ser capaz de cumprir as pesadas tarefas impostas pelo seu cavaleiro, e assim, logicamente, as qualidades psíquicas e funcionais tinham maior importância que as puramente estéticas.

Bons membros eram a primeira qualidade exigida, como explicava claramente Maomé: “As patas do cavalo e a fé do coração são a força do guerreiro”. Também outro erudito da época aconselhava: “Quando fores adquirir um cavalo, antes de o olhares manda-o encobrir inteiramente. Começa depois por lev

antar lentamente o pano de maneira a só veres os cascos, as canelas e os joelhos. Se não te agradarem vai-te embora, se te agradarem podes ordenar que destapem completamente o animal ...”. E conclui: “... se estas qualidades (dos membros) estiverem ausentes, o cavalo não tem valor nenhum, porque totalmente inútil, mesmo que o resto corresponda ponto por ponto às formas estéticas mais estimadas das diferentes partes do seu corpo”.

Um bom conselho da época de Maomé, que deveria ser sempre seguido ...

Ainda hoje certos critérios de apreciação baseiam-se na tradição árabe, na “Lei das Quatro”, que nos resume Elias Abouzeid. Para ele o Cavalo Árabe deve possuir quatro coisas largas - a testa, o peito, a garupa e os membros -, quatro coisas longas – o pescoço, o braço, o ventre e as ancas -, quatro coisas curtas – o rim, as quartelas, as canelas e o osso da cauda -.

Incontestavelmente os árabes julgavam os seus animais na acção, pela resistência à fatiga, à fome e à sede, pela maneabilidade no combate, pela coragem na caça, e pela obediência e dedicação ao seu dono. Sem dúvida davam uma maior importância às qualidades físicas e morais que aos dons puramente estéticos. Isto não quer dizer que a beldade do animal não tinha importância. Tinha-a e muita, pois era sinónimo da tão procurada e indispensável pureza, definindo “o tipo” do cavalo que é hoje o Puro-Sangue Árabe. E provam-no muitas descrições detalhadas.

Uma das mais conhecidas foi feita pelo eminente Carl Raswan, que caracteriza a perfeição estética da raça em oito pontos todos ligados à cabeça:

Narinas largas com bordos finos
  • A cabeça é curta, larga na testa e fina nas narinas;
  • A testa, em forma de escudo, é forte. A sua curvatura é variável e por vezes desaparece com a idade. De perfil, devemos notar uma ligeira elevação mesmo antes das narinas e depois da concavidade do chanfro;
  • Entre as ganachas o homem deve poder colocar a sua mão fechada, o que é a garantia duma boa capacidade respiratória;
  • Os olhos são muito grandes, expressivos e doces, inseridos em pálpebras de um negro profundo e brilhante, por baixo de pestanas longas e espessas;
  • O perfil do chanfro é mais ou menos concavo;
  • As narinas são grandes, bem salientes, com contornos sempre em movimento; - Os olhos e as orelhas estão em constante deslocamento;
  • A ponta do focinho é pequena e deve caber na palma da mão;
  • O lábio inferior deve estar mais recuado que o lábio superior.

Menos evidentes são as opiniões respeitantes à pelagem. Frequentemente o branco puro era a “cor dos príncipes”. O russo era muito estimado, especialmente se sabino, “sobretudo quando a cabeça é mais clara que o corpo”. Segundo um ditado árabe, “se encontrares um cavalo ruço mosqueado, compra-o; se não quiserem vender-to, rouba-o”. O preto devia ser intenso, “como uma noite sem lua e sem estrelas”. O castanho “era o mais sóbrio e o mais resistente”. O alazão torrado seria procurado, por ser a cor preferida de Maomé.

A pelagem era também comparada com os “os humores e com os elementos naturais”. “O branco, significaria pureza e fleuma como a água; o negro, melancolia como a terra; o amarelo, cólera como o fogo; o vermelho, sangue como a vida”.

As malhas brancas podiam ser apreciadas, dentro de certas regras: “O cavalo mais abençoado é aquele que tem branco na testa”. “O cavalo baixo calçado pode ser estimado, mas ser muito alto calçado é sempre um defeito”.

Os rodopios também mereciam atenção. O bom cavalo deveria ter 1 a 3 rodopios na testa, um de cada lado do pescoço junto à crina, 2 no peito, dois nas virilhas e um no umbigo. Um rodopio próximo do coração (passagem da cilha), era considerado péssimo e os situados nas espáduas bastante maus.

É evidente que o Cavalo Árabe dos nossos dias evoluiu, por diversas razões de que destacamos três: mudança de habitat, mudança de alimentação e mudança de utilização.

No deserto o cavalo estava habituado a uma vida extremamente dura que exigia qualidades fora do vulgar, tanto físicas como psíquicas. Um sol ardente, ventos de areia, sede, fome, longas marchas, não deixavam sobreviver senão os animais com uma constituição e um moral excepcionais. A magra alimentação era essencialmente baseada em tâmaras e leite de cabra ou de camelo. A utilização era a guerra, a caça, o nomadismo sem tréguas.

Hoje, as condições de vida são mais fáceis, originando talvez uma ligeira perca de rusticidade. A alimentação do Puro-Sangue Árabe é muito mais rica e equilibrada, dando-lhe um pouco mais de peso e de altura. A utilização também mudou, provocando transformações. É o caso da selecção de reprodutores para as corridas que deu origem a óptimos cavalos, mais longilíneos mas extremamente funcionais, ou a lamentável moda dos animais fabricados para os concursos de “show” que deu origem a “bonitas porcelanas” maioritariamente inutilizáveis.

Adaptado aos nossos dias o Cavalo Árabe modificou-se um pouco mas, se excluirmos as tais “porcelanas”, verificamos que ele conserva todas as qualidades fundamentais de antão, que continuam a ser-lhe exigidas: Sem gordura, membros secos e fortes, curvilhão e canelas espessas, pescoço comprido, espádua (omoplata) obliqua, braço pouco inclinado, garrote destacado, garupa potente, cauda inserida alta, mucosas finas; movimentos amplos; moral de aço; resistência e poder de recuperação incomparáveis; formas extremamente elegantes; familiaridade com o homem; coragem, vitalidade, inteligência e jovialidade sem iguais.

Enfim, um atleta magnífico e um companheiro devoto que continuará indubitavelmente a ser o melhorador e o fundador das outras raças cavalares, apresentando-se como um dos últimos sinais vivos de genuinidade, nobreza e liberdade.

Manuel Heleno

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