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293 Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. DOI 10.18224/hab.v16i2.5716 ARTIGO AFINAL, COMO NASCE UM TEXTO ETNOGRÁFICO? AS TRAMAS DO PERCURSO DO TRABALHO DE CAMPO E A ESCRITA ETNOGRÁFICA* O * Recebido em: 28.10.2018. Aprovado em: 22.09.2018. ** Doutorando na Universidade Federal do Pará. Mestre pela Universidade Federal do Pará. E-mail: tlopesm@hotmail.com TADEU LOPES MACHADO** trabalho de campo para a Antropologia se coloca como divisor de águas dentro da disciplina. Essa tendência na pesquisa pôde favorecer que esta ciência em ascensão es- treitasse o seu contato com as sociedades que ela se propunha a pesquisar, além de con- solidar uma marca indelével ao antropólogo, sustentando a possibilidade de comprovar ou superar a teoria, ou mesmo aquilo que até então só conheciam por correspondência, através de fontes secundárias. Resumo: o trabalho de campo é ferramenta indispensável para o fazer etnográco. Esse artigo reforça sua importância e reete os elementos que compõem o cenário da pesquisa. A primeira parte dialoga com alguns antropólogos clássicos das tradições inglesa, norte- americana e francesa que foram fundamentais no reconhecimento do trabalho de campo como essencial na antropologia. A partir dessa análise entende-se que o trabalho de campo contribuiu para a armação da antropologia enquanto ciência independente e autônoma. Na segunda parte do artigo faço uma descrição de minha aproximação com o povo indígena Palikur, que foram meus colaboradores na construção da dissertação do mestrado. Nessa parte do texto é destacada a escolha do campo de pesquisa, que muitas vezes superam as expectativas do antropólogo. A conclusão é que o campo é a etapa do trabalho antropológico capaz de superar as noções distanciadas que construímos ao longo de nossas pesquisas. Palavras-chave: Trabalho de Campo. Etnograa. Palikur.
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 294 A Antropologia nasce com vínculos estreitos com a sociologia, a qual buscava entender os processos pelos quais passava a sociedade capitalista, o que acabou por transformá-la inicialmente em uma disciplina com forte inuência metodológica da sociologia, e que também passou a entender a realidade a partir da perspectiva do natu- ralismo biológico, no qual o avanço das sociedades se daria a partir de etapas sucessivas de desenvolvimento, atingindo no seu apogeu o estágio positivista, ou cientíco, ápice em que toda e qualquer sociedade deveria chegar, a exemplo da sociedade europeia. Inspirados na teoria da evolução, alguns antropólogos do século XIX cons- truíram suas teses adequando o propósito evolucionista ao objetivo da disciplina. Um desses antropólogos de destaque foi Lewis Henry Morgan, que sustentava que todos coletivos humanos teriam que passar pelas mesmas fases históricas, pois todos eram determinados pela mesma natureza; Que as sociedades iniciariam sua trajetória no patamar da selvageria, depois passariam para a barbárie e nalmente consumavam seu percurso na experiência da civilização (MORGAN, 2005). Essa perspectiva que entende o desenvolvimento da sociedade por etapas de evo- lução proporcionou o surgimento de estudos mais efetivos sobre as sociedades primitivas1 com o propósito de colocar a prova se a teoria em que esses primeiros estudiosos se base- avam – o evolucionismo social – tinha alguma validade cientíca. Os primeiros estudos que temos acesso dentro do âmbito de nossa disciplina mostram claramente que esse era o seu principal objetivo, tanto que se usou por muito tempo o seu discurso para legitimar a colonização como forma de impulsionar o desenvolvimento das sociedades estacionadas no atraso social, sendo essas consideradas a infância da humanidade. Portanto, o início dos trabalhos de campo da antropologia caracterizou-se pela tentativa de encontrar nos povos estudados as hipóteses cientícas do evolucionismo (ITURRA, 1990). Até então não era prioridade para a antropologia exercer o afastamento do modelo teórico-metodológico proposto pela sociologia, já que os antropólogos de gabi- nete se conformavam em estruturar suas análises a partir de informações de terceiros, tais como: viajantes, exploradores, missionários, que tinham contato direto com as sociedades primitivas. Contudo, a partir de 1922, data em que as regras do trabalho de campo são sistematizadas no início do livro de Bronislaw Malinowski sobre os Trobian- deses (1922), o conjunto de conhecimento obtido até então passa a ser um tipo de co- nhecimento não mais praticável (ITURRA, 1990). Esse movimento deixava claro que se fazia necessário pensar numa proposta de intervenção cientíca mais aprofundada e menos mediatizada com essas populações e que a reformulação da proposta cientíca da antropologia deveria partir não somente do objeto, mas também do método. Pautado nessa necessidade, alguns antropólogos (FIRTH, ([1936] 1998); EVANS-PRITCHARD, ([1937] 2005); RADCLIFFE-BROWN, ([1952] 1973), entre outros), baseados na proposta sistematizada por Malinowski (1922), passaram a rein- ventar uma análise cientíca que conseguisse abarcar os pormenores das sociedades pri- mitivas. Eles trouxeram uma novidade metodológica para o seio da disciplina, utilizan- do o contato direto com essas sociedades para melhor descrevê-las e assim, entendê-las. O trabalho de campo se apresenta para a Antropologia enquanto uma pro- posta de transformação da disciplina no sentido da prática metodológica, o que levou inevitavelmente à ressignicação de suas correntes teóricas. A partir dessa forma de apreensão da realidade a disciplina passou a se desenvolver consideravelmente. Na primeira parte desse artigo proponho analisar de que forma o trabalho de campo foi decisivo para a antropologia. A ideia preliminar é de que o trabalho de
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 295 campo foi fundamental para estruturar nossa disciplina, e a proposta dessa discussão é esclarecer como essa técnica de pesquisa se organizou para enveredar essa ciência a chegar à posição que hoje ocupa. Para exigir tal análise é necessário reivindicar o entendimento que levaram alguns pensadores a considerar na prática a importância do trabalho de campo. Esses intelectuais, alguns deles com formação acadêmica teórica e metodologicamente diferente da Antropolo- gia, foram os que tiveram a iniciativa de introduzir essa técnica de pesquisa. Portanto, dialo- gamos com algumas guras importantes para o desenvolvimento do trabalho de campo na Antropologia, de acordo com as três tradições antropológicas centrais2. Na Inglaterra des- tacamos os nomes de William Halse Rivers Rivers (1924) e Bronislaw Malinowski (1922); Nos Estados Unidos apontamos a contribuição de Franz Boas (1940); Na França destaca- mos Joseph-Marie Degérando ([1969] 2012), Maurice Leenhardt (1979) e Marcel Mauss (1925). Ao observarmos tais nomes percebemos que as três tradições antropológicas clássicas passaram a garantir a importância premente dessa nova abordagem teórico-metodológica. Portanto, na primeira parte desse artigo, evoca-se como um dos pontos centrais a busca de diálogo objetivo com alguns teóricos da tradição antropológica da primeira geração, utilizando a temática sobre o trabalho de campo como acesso a esse diálogo. Neste sentido, é fundamental que se entenda que o trabalho de campo in- uenciou e foi aceito e necessário em todas as tradições antropológicas, legitimando sua atuação como melhor proposta em aproximar-se qualicadamente da realidade das sociedades não ocidentais. A segunda parte do artigo se ocupará em estender uma reexão acerca dos meandros necessários que são percorridos para a construção das narrativas antropológi- cas. Relatar os meios que surgem no decorrer do trabalho de campo pode ser um cami- nho interessante para compor a redação do texto etnográco, pois traduz para o papel a forma como foi conduzida a pesquisa, o que pode qualicá-la eticamente como uma forma mais apropriada, portanto legítima, de representar o outro e a si mesmo no texto. Assim, espero poder demonstrar neste artigo que há inúmeras possibilidades de construção do fazer etnográco, pois esse é regido pelo confronto que o pesquisador se depara no decorrer de sua experiência de campo, confronto este mediado por muitas perspectivas, expectativas, olhares, experiências subjetivas, enm, pela densa teia de relações e signicados que atravessam e constroem uma pesquisa etnográca. Seguindo esse uxo de pensamento irei utilizar algumas reexões de minha pes- quisa de campo com o povo indígena Palikur3, que foram meus colaboradores no projeto de pesquisa para a construção da dissertação do mestrado em Sociologia e Antropologia. A narrativa dos acertos e acordos que zemos para minha primeira experiência de campo que tive com esses indígenas irá aparecer como demarcação da possibilidade do fazer etnográco levando em consideração as experiências subalternas do campo, que muitas vezes se tornam invisíveis e, portanto, esquecidas nos escritos etnográcos. O TRABALHO DE CAMPO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O FAZER ETNOGRÁFICO Castro ao procurar denir a Antropologia, busca compreender sua autonomia enquanto ciência não a partir de seu objeto, mas sim a partir do seu método. Segundo ele, os antropólogos não “estudam as aldeias ou cidades, mas em aldeias ou cidades”. A partir desse apontamento podemos entender que o discurso da antropologia se
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 296 constrói a partir do contato direto, reexivo e estando em perspectiva dialogal com a realidade que se propõe entender. O autor aponta que o trabalho de campo é de uma importância fundamental para a antropologia. Para ele, “a monograa etnográca con- tinua a ser a referência clássica da antropologia, e, ouso dizer, a raiz de sua autonomia como disciplina” (CASTRO, 1992, p. 171). Com esta armação entendemos que a metodologia do trabalho de campo é para a antropologia a pedra angular, o ponto de armação de sua identidade, o processo pelo qual se dá sua caracterização enquanto disciplina independente. Deste modo, a pesquisa etnográca deve ser pensada de acordo com as diver- sas possibilidades de rede de relações a que a sociedade pesquisada está envolvida. Para isso é necessário adquirir uma metodologia de pesquisa que se preocupe em analisar não apenas fatos grandes, relevantes, segundo uma escala epistemológica convencional, mas que se comporte como uma ciência inclusiva, dando destaque também aos peque- nos fatos, considerando-os como importantes porque se relacionam diretamente aos grandes temas (GEERTZ, 2008). Para se chegar aos pormenores do emaranhado de signicados que uma cultu- ra contém, a pesquisa deve tentar construir uma leitura mais próxima possível da nor- malidade dos sujeitos pesquisados. Ou seja, sob a orientação de Geertz (2008), não há pretensão de fazer do lócus de estudo o objeto de estudo. Antes, estabelecer uma aproxi- mação razoável com a normalidade dos envolvidos na pesquisa, capaz de providenciar um estudo com eles, não sobre eles. Daí haverá inevitavelmente o desdobramento da pesquisa em uma descrição densa, microscópica e interpretativa sobre aquilo a que o antropólogo se propõe pesquisar. Considero importante enfatizar também que o trabalho de campo, conforme armamos linhas atrás, não foi um elemento que nasceu naturalmente dentro da antro- pologia. Ele foi criado, pensado para suprir determinadas necessidades que essa ciência social apresentava em seu início. Para tal iniciativa houve necessidade de contar com a intervenção de alguns intelectuais que ampliaram o entendimento, sobretudo acerca das sociedades ditas primitivas, a partir de uma proposta metodológica que conseguisse satisfazer qualicadamente esse objetivo. William Halse Rivers Rivers (1864-1922), ou simplesmente Dr. Rivers, foi um médico inglês que se interessou em viajar nos navios britânicos atuando em sua prossão, onde fez grandes expedições e conseguiu conhecer algumas sociedades que até então tinham pouco contato com o mundo ocidental. Para Korsbaek (2014, p. 45), Rivers foi fundamental para a antropologia pelos três motivos que ele destaca: En la antropología podemos buscar la actuación relevante de Rivers em tres campos sustan- ciales: en el de la historia conjetural, el estudio del parentesco y la antropología psicológica, pero también tenemos que considerar un campo más formal y práctico, aunque menos sus- tancial: su inuencia en la transformación de la antropología de gabinete en una Antro- pología basada en el trabajo de campo, o sea su contribución a la profesionalización de la Antropología. Portanto, temos aqui um personagem que contribuiu dentro da tradição bri- tânica de Antropologia para que o trabalho de campo fosse congurado como um ele- mento central na construção dessa ciência. E mais ainda, conforme aponta Korsbaek,
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 297 a estruturação do trabalho de campo traz a ideia e o sentido de uma ciência prossio- nalizada, com estatuto de legitimidade garantido a partir da etnograa. E ainda, para enfatizar a importância do trabalho de campo para a Antropologia, Rivers destaca que “el trabajo de campo era ya para la antropología lo que la sangre de los mártires para la Iglesia católica” (RIVERS apud KORSBAEK, 2014, p. 49). Portanto, com Rivers a Antropologia na Inglaterra deixa de ser uma ciência meramente especulativa, de gabinete, construída a partir de relatos de terceiros, e se transforma em uma ciência baseada no trabalho de campo, que busca concentrar em apenas uma pessoa o papel de pesquisador no campo, como também analista de gabi- nete dos dados e informações coletados. Mas anal, como essa proposta metodológica se organiza e se fundamenta dentro da Antropologia? O trabalho de campo é construído e pensado de acordo com o grupo social que se deseja entender. Ele se estrutura a partir do contato, a partir da experiência vi- vida em campo. Ou seja, o antropólogo deve estar disposto a pensar a estrutura social que pesquisa a partir de dentro de sua organização, e não a partir de fora, com ideias pré-concebidas e estruturadas fora da realidade em que deseja pesquisar. Reforçando tal princípio, Malinowski, considerado como um dos pais fundadores da etnograa (ao lado de Franz Boas) aponta: o moderno explorador antropológico, que vai para o campo cheio de teorias aprendidas, cheio de problemas, de interesses e talvez de ideias preconcebidas, não é capaz nem aconse- lhado a manter suas observações dentro dos limites de fatos concretos e dados pormenoriza- dos (MALINOWSKI, 2008, p. 07). A partir desse apontamento, entendemos que o trabalho etnográco se guia pelas informações que serão geradas a partir do estabelecimento do contato com a sociedade que o pesquisador se interessa em entender. E de antemão, o etnólogo deve estar disposto em abrir mão de suas ideias e teorias que não dialogam com a realidade pesquisada. E como esclarece Castro, citando Evans-Pritchard, “o antropólogo deve se- guir o que encontra na sociedade que escolheu estudar” (EVANS-PRITCHARD apud CASTRO, 1992, p. 179), ou seja, a partir do contato direto o antropólogo deverá orga- nizar ou reorganizar sua pesquisa e seus interesses de acordo com os dados observados. Malinowski nomeia tal metodologia de Observação participante, onde o antro- pólogo deve manter suas relações estreitas com a população estudada e daí em diante a in- vestigação das sociedades ditas primitivas se dá a partir da perspectiva do nativo, a partir do contato direto e vivencial, porque para compreender os “nativos reais e próximos, (de carne e osso) exigem-se etnógrafos reais e próximos (também de carne e osso)” (SILVA, 2006). Nesta perspectiva a pesquisa passa a exigir que o pesquisador aprenda a viver na sociedade que decidiu pesquisar, como um indivíduo comum dessa sociedade, a falar sua língua, a comer suas comidas, a sentir suas emoções de acordo com os costumes locais. Chegando nesse ponto, passamos a entender que a pesquisa de campo não está a serviço de uma teoria, que não se submete, a priori, a ideias construídas fora do ambiente pesquisado. Ela está, ao contrário, interessada em captar a totalização, privi- legiando o modelo de construção social dado pelo nativo, procurando estabelecer um entendimento capaz de dar conta do todo estruturado pela própria sociedade, e não pelo olhar do pesquisador.
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 298 Vale ainda ressaltar que Malinowski, em suas pesquisas de campo, estava inte- ressado em consolidar tal metodologia dentro do ambiente antropológico, por entender que essa disciplina carecia de um roteiro que ajudasse outros antropólogos em pesquisas posteriores (SILVA, 2006). Desta forma, entendemos que a pesquisa de campo se consolida como uma ruptura metodológica dentro da antropologia. Importante destacar que o método de campo rompe com um entendimento considerado limitado para entender a complexi- dade da vida social. Contudo, se faz necessário distinguir a observação participante do trabalho de campo, que é o envolvimento direto que o investigador de campo tem com o grupo social que estuda, dentro dos parâmetros das próprias normas do grupo; já o trabalho de campo é um processo que evolve mais aspectos da conduta social, dentro dos quais o comportamento manifesto é observado. A observação participante é pontual, o tra- balho de campo é envolvente (ITURRA, 1990). Boas (2013) procura envidar esforços em buscar diretamente na pesquisa de campo elementos sucientes para enveredar a pesquisa antropológica por outros cami- nhos, capazes de interpretar de forma mais dedigna possível a realidade dos nativos. Ao destacar sua proposta metodológica histórica, declara que: o antigo método de construção de uma história da cultura humana baseada em pedacinhos de evidência, arrancados de seus contatos naturais e colhidos de todas as épocas e em todo canto do mundo, perdeu grande parte de sua inuência (BOAS apud BENEDICT, 2013, p. 11). Essa perda de inuência que Boas chama atenção é sobre o evolucionismo, que se valia principalmente do método comparativo como aporte fundante para a re- construção histórica da cultura humana. Portanto, ele aponta a necessidade de intervir na Antropologia a partir de uma proposta metodológica que propicie o entendimento das várias possibilidades de construção social. Ou seja, para ele o trabalho de campo é fundamental para entender as particularidades de cada sociedade, e assim desmanchar a ideia de uma cultura total e generalizada da humanidade. Segundo sua orientação, “no campo tudo deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos esquimós, e isso deta- lhadamente, e no detalhe do detalhe” (LAPLATINE, 2000, p. 77). Dessa forma, ele aproxima o investigador de seu objeto e faz com que possa reproduzir uma cópia mais próxima da realidade possível. Daí, Boas passa a entender que apenas o antropólogo tem a legitimidade de interpretar os povos ainda desconhecidos na cultura ocidental. Legitimidade essa que lhe é conada por sua técnica de investigação. Além do mais, Boas considera que em campo nada pode ser considerado desprezível. Ou seja, segundo ele, para a Antropologia não existe um objeto mais nobre que outro para ser investi- gado. Tudo deve ser conhecido pormenorizadamente, tudo é passível de investigação. Com relação à antropologia francesa, um dos primeiros sinais da importância de desenvolver outra metodologia de estudo da humanidade se deu por meio de Joseph Marie Degérando ([1969] 2012). Esse intelectual concentrou esforços em organizar um método de observação que pudesse apreender de forma suciente e qualicada o estudo do homem. e method of observation has a sure procedure; it gathers facts to compare them, and com- pares them to know them better. e natural sciences are in a way no more than a series of
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 299 comparisons. As each particular phenomenon is ordinarily the result of the combined action of several causes, it would be only a deep mystery for us if we considered it on its own: but if it is compared with analogous phenomena, they throw light each on the other (DEGÉ- RANDO, [1969] 2012, p. 57). O método acima citado por Degérando, mesmo sendo pensado para estar a serviço de uma pesquisa com ns evolucionistas, pode ser considerado como uma nova proposta de perceber o entendimento acerca da humanidade, porque adentra a perspectiva da observação como proposta chave de entendimento do comportamento do homem em sociedade, com o propósito de reunir fatos para melhor compará-los. Ao lado de Degérando se enquadra o missionário francês Maurice Leenhardt no pioneirismo em pensar uma proposta metodológica etnográca na França. Segundo Cavignac (2001, p. 8), em 1902 Leenhardt já pratica a observação participante na Nova Caledônia. Tudo aquilo que a et- nograa iria, posteriormente, reivindicar, isto é, um método fundado na observação direta com estada prolongada em campo, conhecimento profundo da língua nativa, participação na vida das populações estudadas levando a tecer relações afetivas duráveis com alguns de seus informantes, etc. Leenhardt em seu contato com os povos da Nova Caledônia elabora instru- mentos de investigação para compreender e traduzir as categorias nativas. Para isto, ele aproveita o seu trabalho de pastor cristão e pede aos seus informantes que escrevam cadernos sobre suas experiências cotidianas, suas técnicas, costumes, ritos, etc. Mais tarde tal conteúdo era discutido e sistematizado entre eles, para posteriormente ser estudado e entendido. No entanto, surge também na França a gura imponente de Marcel Mauss, como o grande incentivador da implementação da pesquisa de campo como verdadeira ferramenta para a construção de uma Antropologia séria. Necessário destacar que uma das maiores contribuições de Mauss para a Antro- pologia foi exatamente sua preocupação em instigar um movimento dentro da disciplina para a realização de pesquisas etnográcas. Porque, segundo seu entendimento, o homem é incapaz de conhecer os fenômenos do espírito pela introspecção. É no social que está a base para esse conhecimento. Portanto, é nas relações sociais que o pesquisador deve debruçar seus estudos para entender a trama inclusive daquilo que não se pode perceber visivelmente. Dessa forma, ele foi um dos maiores impulsionadores da realização dos tra- balhos antropológicos a partir do trabalho de campo, mesmo jamais realizando tal atividade. Portanto, pode-se entender que “o fazer sociologia – melhor diríamos, An- tropologia – parece ser o melhor ensinamento de Mauss” (OLIVEIRA, 1979, p. 23). SEM CAMPO, SEM ETNOGRAFIA – Professor, vamos conhecer minha aldeia nesse nal de semana? Propôs um aluno meu pertencente ao povo Palikur, que faz o curso de Licen- ciatura Intercultural Indígena na Universidade Federal do Amapá, no campus de Oia- poque. Estávamos nos despedindo de uma semana intensa de aulas, no nal da tarde de
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 300 uma sexta feira do mês de janeiro de 2015, quando Ailton Batista lançou essa proposta de conhecer sua aldeia naquele nal de semana. – Vamos, disse eu. Tenho muita vontade de ir ao rio Urucauá e conhecer onde os Palikur vivem. Naquele mês eu já havia passado pelos exames de seleção para o mestrado no PPGSA/UFPA, e aguardava ansiosamente a chegada do mês de março para começar as minhas aulas no Programa. O projeto que submeti à seleção tinha como proposta central entender as relações dos indígenas urbanos em Oiapoque. Mas nada estava muito claro para mim, iniciante no terreno da temática indígena. Uma visita à principal aldeia Palikur poderia ajudar na elaboração de um projeto mais propositivo para minha pesquisa, imaginei. – Como faremos para ir? Completei. – Vamos na minha voadeira, disse Ailton. A gente sai umas oito da manhã de amanhã, sábado. Podemos dividir as despesas com o combustível. São 120 litros de gasolina, 60 eu pago e 60 você paga. Voltamos no domingo de tarde. Em média são quatro horas de viagem da aldeia Manga4 até a aldeia Kumenê5. Depois dessa fala de Ailton quei pensativo, pois 60 litros de gasolina equiva- liam no Oiapoque, naquela época, aproximadamente R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais). Um valor bem considerável para quem estava apertando os cintos para economi- zar o salário de professor auxiliar I e conseguir sobreviver até o nal do mês. – E não precisa de autorização para entrar na aldeia, Ailton? Perguntei já com o propósito de dicultar minha ida. – Vamos falar com Azarias, ele é o cacique do Kumenê e tenho certeza que ele dará a permissão. Vamos agora, ele está hospedado no alojamento da FUNAI. – Vamos, respondi. Mas sem muita animação. Chegamos ao alojamento da FUNAI, chamamos Azarias e nos informaram que estava tomando banho. Esperamos na varanda por volta de quinze minutos até o cacique aparecer já de banho tomado. Cumprimentamos-nos, Ailton nos apresentou, mas já nos conhecíamos da Universidade. Azarias também é estudante da Licenciatura Indígena. Eles começaram a falar em palikur. E pelas expressões faciais e impostação de voz do cacique imaginei que a permissão não seria concedida. E de certa forma esta- va torcendo para que não autorizasse, pois já estava entristecido pelo gasto inesperado que ia fazer em troca de um passeio de dois dias para um lugar que não conhecia e que aparentemente não dizia respeito para as minhas atividades acadêmica. Torcida em vão. – Tudo certo, professor! Disse Ailton com um tom bastante animoso. – Posso ir sem nenhum problema, cacique? Perguntei a Azarias. Ele respondeu: – Pode sim. Só toma cuidado com os jacarés. Nessa época os rios estão secos e é pre- ciso passar no rio tirando com as mãos os jacarés da frente da voadeira. Sorriram os dois. Eu sorri também, desconando se tratar de uma piada. Na saída do portão da FUNAI Ailton conrmou que era sim uma piada. No entanto, a gente ia ver muito jacaré ao longo dos rios que íamos navegar, mas sem ne- nhum perigo. Depois disso ele marcou o local e horário exatos da partida, em frente ao banco Bradesco, às 8:30 da manhã. Disse ainda que não precisava levar rede, cobertor, mosquiteiro. Ele tinha tudo na sua casa. Caso eu quisesse comprar biscoito, bolacha, pão, suco ou refrigerante para comer na viagem seria bom, porque era longe e com certeza ia dar fome.
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 301 – Vamos eu, você, Zélia (esposa de Ailton), Charle (lho mais novo) e Rhyana (neta de quatro anos). Além dos 120 litros de gasolina ainda tem que comprar o óleo 2 tempos, que custará uns 80 reais, e ainda pagar o carro daqui da cidade para o Manga, que é 60 reais. Vamos dividir tudo. Completou Ailton. – Tudo bem, respondi. Mas com uma angústia que me consumia. Contudo, não queria decepcionar meu amigo que me lançou um convite generoso e sincero. Resolvi encarar a viagem sem pensar nos gastos que iria ter que fazer, e passei a enxergar as vantagens que tudo isso iria me proporcionar, tais como: a aproximação com um povo indígena, a possibilidade de criar uma rede de relações com alguns Pa- likur, principalmente com a família de Ailton, o contato com a Terra Indígena, com a aldeia, com os indígenas de carne e osso. Entendi que tudo aquilo não seria em vão, e reformulei minha viagem de passeio para uma viagem a campo. Fui para meu quar- to, preparei minha mochila com alguma roupa, caderno de campo, canetas, lanterna, câmera fotográca, enm, material mínimo para iniciar uma pesquisa antropológica. No sábado de manhã cedo, depois do café, fui ao supermercado fazer uma pequena compra para levar na viagem. Depois fui para o local combinado para par- tirmos. Já estavam à minha espera, e tudo estava organizado para irmos ao rio Uru- cauá. E assim se deu minha primeira aproximação com os Palikur em sua região de inuência. E desta forma, a partir dessa viagem inusitada, passei a delimitar o grupo indígena que queria pesquisar. Fiquei simplesmente encantado com o modo de vida, a região, as relações interétnicas que estabelecem a alegria e abertura com que os Palikur me acolheram, desde o convite de Ailton até os dois curtíssimos dias que passei junto deles no Kumenê. Passei a enxergar esse primeiro encontro como um rito de passagem, o mo- mento em que me encontrei com aquilo que queria conhecer a partir da experiência da pesquisa antropológica. Franco (2001, p. 20) fala do “mito fundador” da sua pesquisa, que seria o momento em que nascem as relações entre o explorador, ou pesquisador, e seus interlocutores. Para essa autora o marco fundador em sua pesquisa de doutorado, intitulada Os Milton, se deu numa assembleia em 1991 na foz do rio Tejo, no Acre. Já o mito fundador de minha pesquisa de mestrado foi essa viagem que aceitei a convite de Ailton Batista. Até então, ou seja, até minha primeira e rápida viagem ao centro da Terra Indígena Uaçá, fazia elaborações distanciadas sobre os povos indígenas do Oiapoque, sem me atrever a constituir uma aproximação com a realidade que vivem. Eu os conhecia somente pelos artigos e textos acadêmicos e assim já me achava autorizado a pesquisá-los e me autodenominava pesquisador dos povos indígenas do Oiapoque. A partir daqueles dois dias de aproximação passei a entender que era inevi- tável mudar completamente minha perspectiva. Daí, então percebi que a perspectiva intersticial proposta por Malinowski a partir da observação participante, apontando a necessidade de rompimento com a antropologia de gabinete (SILVA, 2006) é o princí- pio norteador da pesquisa antropológica. O olhar do antropólogo a partir de dentro é a necessidade que se impõe para a construção de um texto etnográco comprometido e responsável, capaz de legitimar as diversas vozes que compõem o cenário da pesquisa. Portanto, minha abertura em aceitar o convite de Ailton para ir ao Kumenê fez com que surgissem relações subjetivas entre eu e alguns Palikur. Reconheço que es- sas relações são fundamentais no terreno da pesquisa etnográca, haja vista são elas que conduzem a mediação e a possibilidade de tornar a pesquisa um fato concreto. Essas
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 302 articulações na construção da pesquisa, tais como os contatos iniciais, a forma que se deu a escolha do campo de pesquisa, as mediações e acordos celebrados, as estratégias no campo para conseguir informações, as percepções subjetivas do pesquisador, por muito tempo dentro da antropologia privilegiou-se sua anulação em detrimento de uma narrativa objetiva, que garantisse o maior grau possível de neutralidade, privile- giando o rigor cientíco para garantir a “autoridade etnográca” do pesquisador (SIL- VA, 2006, p. 25). Contudo, essa estratégia não se apresenta mais como uma proposta unânime dentro da antropologia. No trabalho de campo e nos escritos etnográcos há a emergência e a necessidade de entender como se constroem os bastidores da pesquisa, de que forma as articulações são desenvolvidas. Resolvi me aproximar dos Palikur e me tornar amigo deles. Decidi aceitar seus convites, comer suas comidas, ir para a igreja com eles, enm, passei a intensicar minhas relações pessoais com eles sem temer às prováveis consequências que poderiam ocorrer no futuro. Contudo, isso não é suciente para que eu me tornasse um nativo. Aliás, como defende Wagner (2017), o antropólogo nunca vira nativo, porque isso sig- nica se despir, se desfazer de todo seu conjunto de signicado de sua própria cultura. Mas esse comportamento foi suciente para eu entender que a experiência de estar com o povo Palikur era fundamental para iniciar meu trabalho de pesquisa junto a eles. A relação de intensa proximidade que envolve o pesquisador e pesquisado pode ser uma técnica refutada por muitos antropólogos. Isso porque não é fácil estar dentro do grupo que pesquisa, buscando se aproximar de sua perspectiva a partir de uma relação subjetiva e ao mesmo tempo preocupado com o distanciamento reclamado pelo rigor cientíco da neutralidade. Contudo, há possibilidade de explorar esse campo da aproximação e da intimidade em favor do trabalho etnográco. Foi a estratégia que Mariana Franco (2001) considerou para pesquisar a história familiar nos seringais do Acre. A autora, no início do projeto de doutorado, se viu angustiada por estar muito próxima intimamente ligada aos interlocutores de sua pesquisa. Mas o desao posto para a tese de doutorado foi exatamente esse: Por que não tirar partido da profunda intimidade que fora criada entre a pesquisadora e aquelas pessoas? Ou seja, a familia- ridade com seus interlocutores fez com que aprofundasse o conhecimento e extraísse dados e informações que de outra forma talvez fosse impossível obter. O ANTROPÓLOGO NO TEXTO Outro ponto fundamental para entender a construção do trabalho etnográ- co é a manifestação das avaliações subjetivas que o próprio antropólogo tem em campo. Ao decidir publicar os Diários de Malinowski em 1966, sua esposa, Valetta Ma- linowski, aponta a importância de dar publicidade sobre a personalidade do antropólogo em campo (MALINOWSKI, 1997), já que isso não aparece nas obras de seu marido até então publicadas. Dessa forma, mesmo com todas as críticas que a publicação dos Diários sofreu, essa atitude apontou a necessidade de perceber que tanto o pesquisador como o nativo são pessoas de carne e osso. A pesquisa conduzida pelo antropólogo não são mani- festações que surgem do dia para a noite, dando a parecer que tanto o pesquisador como o pesquisado está em uma posição de engessamento subjetivo, onde não há manifestações humanas visíveis. Dessa forma, a proposta de Silva (2006) sinaliza uma via propositiva de encarnar no texto etnográco a gura do nativo e do pesquisador, demonstrando suas percepções sobre a pesquisa e os caminhos que a zeram se desenvolver.
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 303 Tris tes Tr ópi cos de Claude Lévi-Strauss (1996) carrega consigo esses elementos tipicamente humanos, tanto do antropólogo quanto da realidade pesquisada que teve acesso. Leyla Perrone-Moisés (1996), ao fazer um paralelo entre as narrativas de viagens de Jean de Léry e a etnograa de Lévi-Strauss aponta que, mesmo havendo grandes diferenças entre os escritos desses dois franceses, o primeiro do século XVI e o segundo do XX, ambos demonstram em seus textos uma questão de fundo: descrevem práticas e questões humanas que só as viagens ao Brasil puderam lhes proporcionar. A noite entre os Nhambiquara experimentada por Lévi-Strauss e a aproximação com o ritual Tupinambá narrada por Léry são exemplos dessa aproximação entre ambos os autores, demonstrando a possibilidade do pesquisador acentuar os elementos humanos em seu trabalho. No entanto, nos trabalhos das ciências sociais construídos no espaço temporal entre Léry e Lévi-Strauss é inevitável perceber a fuga da humanização desses textos, trazendo para dentro do trabalho a encarnação por inteiro do ambiente e das noções humanas do campo pesquisado. Lévi-Strauss busca retomar esse caráter em Tristes Trópicos, o que lhe custou, inclusive, a acusação de ser um trabalho menor dentro dos limites da academia. No entanto, a posição desse autor francês com relação à escrita, segundo a interpretação de Frank Lestringant (2000), é de que é um trabalho de luto, especicamente por não conseguir exprimir com exatidão a realidade observada nos fa- tos. Essa percepção de Lévi-Strauss indica o rumo que a escrita etnográca deve tentar perseguir: o da exatidão dos fatos, de acordo como eles são na realidade, sem omitir os detalhes que os circundam, mesmo sendo uma tarefa impossível. Talvez esse giro na forma de apreender a escrita etnográca, conduzida na França por Lévi-Strauss, tenha ocorrido em decorrência da inuência que recebeu de suas experiências com os surrealistas nos Estados Unidos, depois de sua primeira vinda ao Brasil. Segundo o próprio Lévi-Strauss (1989), seu gosto estético foi enriquecido e renado a partir do contato com os surrealistas e a possibilidade de lançar olhares novos para os objetos antes possivelmente rejeitados. Tal armação sobre Lévi-Strauss é também reivindicada por Castro (2009), onde propõe que Lévi-Strauss teve um pa- pel fundamental na construção de uma nova sensibilidade cultural, expressa na forma literária com que escreveu alguns de seus textos, coloquem-se aí Tristes trópicos, o que signicou uma revolução para a Antropologia e para a própria ciência. Eis outro ponto necessário para pensarmos a construção da escrita etnográca. A interdisciplinaridade é substancial para construir novos olhares, sem preconceito de abertura para novas possibilidades sobre o campo que nos propomos pesquisar. Segundo ainda Lestringant (2000), ao escrever Tri ste s Tró pico s Lévi-Strauss busca renovar na modernidade o Renascimento em suas dimensões mais generosas. Ou seja, busca resgatar ou mesmo retratar, através de seu caráter de nostalgia e remorso, a humanidade perdida desde a obra de Léry. Portanto, descrever a personalidade do antropólogo em campo se torna im- portante porque, no momento em que se conhece sua obra é importante conhecer também seus anseios pessoais, assim como outras questões próprias do pesquisador que possam ter inuenciado a construção de sua pesquisa. Foi esse um dos pontos impor- tantes que Raymond Firth, escrevendo em 1966, destacou ao redigir a primeira intro- dução para os Diários de Malinowski (MALINOWSKI, 1997). Firth orienta encarar os Diários não como um texto de cunho teórico ou metodológico da antropologia, mas sim como uma literatura necessária para demonstrar as diversas reações que o pesqui-
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 304 sador teve em campo, mas que inevitavelmente fazem parte da pesquisa e não pode ser considerada como uma questão menor. Assim, o pesquisador passa a se fazer presente nos escritos juntamente com o pesquisado, e isso assegura que o texto nal está sendo devidamente assinado, ou seja, que o texto etnográco apresenta seu autor dentro de sua própria estrutura narrativa. Dessa forma, seguindo as intervenções de Geertz (2005), o pesquisador passa de sim- ples escritor para autor do texto, capaz de produzir discursividade, pois não é simples- mente pela força da argumentação teórica, muito menos pela extensão descritiva dos fatos que os textos antropológicos ganham credibilidade. Geertz (2005, p. 15) indica que “é no “milagre” de haverem penetrado numa outra forma de vida, ou de terem sido penetrados por ela, de realmente “estado lá”, que ocorre o convencimento nos textos etnográcos”. As narrativas elaboradas pelos antigos viajantes apontam para uma forma li- terária de escrita assentada na propositura de traduzir para o texto as experiências que tiveram em suas viagens. Oliveira (1983) destaca que, para que esses textos narrados pelos viajantes passassem a ajudar na pesquisa antropológica seria necessário também que o antropólogo se libertasse das orientações funcionalistas que limitam o olhar do pesquisador no objeto pesquisado e se fecha às demais questões que envolvem a cons- trução do texto. A proposta de Oliveira é desenvolver uma análise do texto que permita olhá-lo como produto de determinado autor, que também é fruto de diversas relações sociais e desempenha algum tipo de papel na sociedade em que vivia. Ou seja, o que está sendo proposto é a investigação a fundo das tramas que envolveram a construção do discurso construído no papel, desenvolvendo assim uma antropologia interpretativa ou hermenêutica, que possa garantir o entendimento do discurso a partir de suas diver- sas possibilidades. A discursividade, portanto, passa a ser a orientação central para ser alcançada pelo antropólogo, o qual expõe e não omite o emaranhado das tramas que envolvem sua pesquisa, buscando salientar o caráter colaborativo do fazer etnográco. Esse posicionamento me levou a entender a importância de minha aproximação com os Palikur no Oiapoque e acentuar a forma como se deu meu primeiro encontro com a região de sua inuência na Terra Indígena Uaçá. De repente, sem nenhuma formalidade, eu estava sendo convidado para conhecer a principal aldeia Palikur. Eu, enquanto pesquisador, passei a car em uma situação razoavelmente confortável, porque o convite para estabelecer uma relação de proximidade não foi lançado por mim, mas sim por eles mesmos. E então, quem será o pesquisador e o pesquisado? Quem está interessado na pesquisa, os nativos ou o antropólogo? Nesse ponto a estratégia é deixar- se penetrar pelo campo pesquisado, e a partir daí colocar-se em perspectiva, ou seja, colocar-se no lugar do outro. Essa autorização para falar sobre o outro só é concedida a partir da observação direta. Portanto, no momento em que estive pela primeira vez na aldeia Kumenê entendi que para falar sobre os indígenas daquela região não era suciente conhecê-los pelos livros, mas estabelecer uma estadia prolongada no local em que vivem, para construir um vínculo de proximidade com eles era a principal tarefa que me levaria a elaborar um trabalho etnográco qualicado e responsável. Depois que aceitei ir com Ailton para sua casa no Kumenê, quando me de- parei com a realidade que estava diante de meus olhos, ao ver os famosos jacarés do rio Uaçá, ao me encantar com a paisagem da Terra Indígena e com a aldeia, ao esta- belecer um rápido, mas ao mesmo tempo intenso contato com os moradores da aldeia
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 305 passei a perceber a pesquisa de campo com os olhos que ela merece. Entendi a partir daí que a escrita etnográca não é nada sem a pesquisa de campo, pois é a partir do estabelecimento dessa relação que se passa a construir o trabalho. Ou seja, é no campo, que também pode ser entendido como a parte central do processo da pesquisa, que se constrói e se consuma a tarefa antropológica. Portanto, estar mergulhado no campo é a tarefa essencial que se impõe ao antropólogo na busca da construção da discursividade etnográca. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo teve como objetivo armar a importância do trabalho de campo para a construção da escrita etnográca, e para isso mencionamos, ainda que rapidamente, alguns autores clássicos das tradições antropológicas inglesa, norte-ame- ricana e francesa, que consideraram a importância e a centralidade do engajamento da antropologia para com o trabalho de campo. Neste aspecto pudemos entender que a pesquisa de campo ocupa lugar de destaque em nossa disciplina, pois é ela quem legitima e autoriza a fala do pesquisador. É no campo que o fazer etnográco se torna possível. A partir desses apontamentos, descrevi meu primeiro contato com o povo Palikur, na aldeia Kumenê. Ao ser convidado por Ailton para visitar e conhecer o Ku- menê eu pensei em aproveitar o momento para solidicar minha proposta de projeto para a dissertação do mestrado. Eu aceitei o convite imediatamente pensando já no retorno que eu poderia ter. Ou seja, eu não estava aceitando o convite ingenuamente, assim como Ailton também deveria ter suas pretensões com minha ida à sua aldeia, pretensões essas que não me arriscarei a mencionar aqui. No meu caso, mesmo depois que soube dos valores que teria que investir para chegar à maior aldeia dos Palikur, e correndo o risco de passar por contenção nanceira até o nal do mês, eu concordei em ir, justicando que a ida não seria em vão. Depois quei pensando que, caso eu recebesse convite dos Galibi-Marworno, dos Galibi-Kalinã ou dos Karipuna, antes dos Palikur, talvez eu passasse a me interessar em construir minha pesquisa com esses outros povos. Isso pode dizer que eu estava certo de que queria enveredar minhas pesquisas acadêmicas no campo da etnologia indígena, mas não havia denido o foco da pesquisa. Assim sendo, volto a armar que o contato com o campo (o primeiro campo que tive contato) fez com que eu denisse o povo com quem eu passaria a estender minhas reexões. No entanto, destaco que não fui eu que escolhi os Palikur, mas foram eles que me escolheram para aquela pesquisa. O que z foi somente me deixar conduzir pelo percurso que eles escolheram para me adentrar. Portanto, o texto etnográco nasce a partir das diversas intervenções que o campo apresenta. Destaco preeminentemente o papel do campo porque o considero como o principal condutor da pesquisa, é ele quem revela as vias que o pesquisador deve percorrer para chegar às suas apreensões nalizadas no texto, e o pesquisador deve dar a devida atenção em seu texto a esses espaços. Mas nesse trabalho foi possível apontar algumas reexões sobre a importância que esses caminhos do campo têm na proposi- tura de um texto antropológico. O trabalho de campo é unanimemente considerado dentro de nossa disciplina uma abordagem teórico-metodológica base. Independentemente das correntes teóricas que atravessam a disciplina, sua aceitação é unânime. A impregnação do pesquisador
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. 306 nos diversos temas da sociedade pesquisada é fundamental para o seu entendimento. Portanto, a pesquisa etnográca não reivindica somente a coleta de informações, mas principalmente de poder proporcionar no pesquisador uma experiência pessoal e intrín- seca com a realidade pesquisada. Nesse sentido, o antropólogo não pode ir a campo pretendendo ensinar algo, submetendo os sujeitos de sua pesquisa às suas teorias pré-fabricadas. O antropólogo deve se colocar em uma posição de aprendiz, de aluno. E essa sua posição o transporta para o patamar de conhecedor de outra cultura alheia à sua. O que não quer dizer, como entende Wagner (2017), que o antropólogo aprenderá uma nova cultura para colocá-la ao lado daquela que ele já conhece. A função do antropólogo é assumir a cul- tura alheia, e assim experimentar a transformação de seu próprio universo, podendo, inclusive, redenir sua própria vida e sua personalidade, pelo fato de ter-se deixado afetar pelo campo de sua pesquisa. AFTER ALL, HOW AN ETHNOGRAPHIC TEXT IS BORN? THE PLOTS ALONG THE PATHWAY IN FIELD RESEARCH AND ETHNOGRAPHIC WRITING Abstract: Fieldwork is an indispensable tool for doing ethnographic. is article seeks to reinforce the importance and reects the elements that make up the research scenario. e rst part discusses with some classic anthropologists of the English, American and French traditions that were fundamental in the recognition of eld work as essential in anthropo- logy. From this analysis it is understood that the eld work contributed to the armation of anthropology as an independent and autonomous science. In the second part of the article I give a description of my approach to the Palikur indigenous people, who were my colla- borators in the construction of the master’s thesis. In this part of the text is highlighted the choice of the eld of research, which often exceed the expectations of the anthropologist. e conclusion is that the eld is the stage of anthropological work capable of overcoming the distanced notions that we have constructed throughout our research. Keywords: Fieldwork. Ethnography. Palikur. Notas 1 Importante destacar que os povos contactados pela cultura ocidental e por estes colonizados foram inicialmente identicados pelo termo “primitivos”, no sentido de entendê-los como povos que es- tavam situados no atraso social, de acordo com a hierarquia proposta pelo positivismo. Tal termo foi utilizado por muito tempo como o mais adequado, inclusive dentro da antropologia, no entanto atualmente não é o mais indicado para se referir a tais povos. 2 Utilizo o termo “tradições antropológicas centrais” emprestado de Roberto Cardoso de Oliveira (1997) para indicar os centros “fundadores” da antropologia (Inglaterra, Estados Unidos e França), o que contrasta com outras antropologias desenvolvidas no mundo, chamadas por Cardoso de Oliveira de “periféricas”. 3 Os Palikur, habitantes da fronteira Brasil-Guiana Francesa, falam uma língua pertencente ao tronco linguístico Aruaque, e estão localizados tanto no território francês, quanto no território brasileiro. No lado brasileiro estão concentrados na Terra Indígena Uaçá, localizada no município de Oiapoque, distante cerca de 600 quilômetros da capital Macapá, estado do Amapá. Organizam-se em onze aldeias localizadas ao longo do médio e baixo rio Urukauá, auente do rio Uaçá. 4 Aldeia indígena Karipuna. É a maior aldeia dessa etnia na região do Oiapoque, com aproximadamente
Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018. ARTIGO 307 900 habitantes. Essa aldeia tem fácil acesso à cidade de Oiapoque pelo meio terrestre. Fica localizada a 18 km da cidade e é referência para as demais aldeias Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur por servir de porto para o trânsito desses indígenas que se locomovem de voadeira e estão em constante contato com a cidade de Oiapoque. 5 Aldeia indígena Palikur. Está localizada, assim como a aldeia Manga, na região do Uaçá, no médio rio Urucauá. É a principal aldeia dos Palikur, onde ca o Posto Indígena do Urucauá, duas escolas e o posto de saúde. Também é a mais populosa aldeia Palikur do lado brasileiro, sendo habitada por aproximadamente 800 pessoas. Referências BOAS, Franz. Introdução. In: BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Trad. Ricardo A. Rosenbusch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Coleção Antropologia). BOAS, Franz. Race, language and culture. New York: e Macmillan Company, 1940. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Claude Lévi-Strauss por Eduardo Viveiros de Castro. Estudos Avançados, v. 23, n. 67, 2009. CASTRO, Eduardo Viveiros de. O campo na selva visto da praia. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. p. 170-190. CAVIGNAC, Julie Antoinette. Maurice Leenhardt e o início da pesquisa de campo na Antropologia francesa. Texto apresentado na Anpocs em 2001. DEGÉRANDO, Joseph-Marie. e observation of savage peoples. [1969]. In: Ethno- graphic Fieldwork: Anthropological Reader. 2. ed. Edited by Antonius C. G. M. Rob- ben and Jerey A. Sluka. Published 2012 by John Wiley & Sons, Inc. p. 56-62. EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculo e magia entre os Azande. [1937]. Trad. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. FIRTH, Raymond. Nós, os Tikopias: um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva. Prefácio de Bronislaw Malinowski. [1936]. São Paulo: EDUSP, 1998. FRANCO, Mariana Ciavatta Pantoja. Os Milton: cem anos de história familiar nos seringais. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 2001. GEERTZ, Cliord. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GEERTZ, Cliord. Obras e vidas: O antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. ITURRA, Raúl. Trabalho de campo e observação participante em antropologia. In. SILVA, Augusto Santos; PINTO, José Madureira. Metodologia das Ciências Sociais. 4. ed. Porto-PT: Biblioteca das Ciências do Homem; Edições Afrontamento, 1990. KORSBAEK, Leif. W. H. R. Rivers: Médico, psicólogo, etnólogo y antropólogo británico, y em todo carismático. Cuicuilco, v. 21, n. 59, p. 41-64, jan./abr. 2014. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2000. LEENHARDT, Maurice. Do. Kamo: person and myth in the melanesian world. Trans- lated by Basia Miller Gulati. Chicago: e University of Chicago Press, 1979. LESTRINGANT, Frank. De Jean de Léry a Claude Lévi-Strauss: por uma arqueologia de Tristes Trópicos. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 43, n. 2, 2000. LÉVI-STRAUSS, Claude. A boemia em Nova York. In. De perto e de longe (Entrevista
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