O trabalho de campo passa a ser norma de pesquisa para a Antropologia a partir de qual antropólogo

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293

Goiânia, v. 16, n.2, p. 293-308, jul./dez. 2018.

DOI 10.18224/hab.v16i2.5716 ARTIGO

AFINAL, COMO NASCE UM

TEXTO ETNOGRÁFICO? AS

TRAMAS DO PERCURSO DO

TRABALHO DE CAMPO E A

ESCRITA ETNOGRÁFICA*

O

* Recebido em: 28.10.2018. Aprovado em: 22.09.2018.

** Doutorando na Universidade Federal do Pará. Mestre pela Universidade Federal do Pará. E-mail:

tlopesm@hotmail.com

TADEU LOPES MACHADO**

trabalho de campo para a Antropologia se coloca como divisor de águas dentro da

disciplina. Essa tendência na pesquisa pôde favorecer que esta ciência em ascensão es-

treitasse o seu contato com as sociedades que ela se propunha a pesquisar, além de con-

solidar uma marca indelével ao antropólogo, sustentando a possibilidade de comprovar

ou superar a teoria, ou mesmo aquilo que até então só conheciam por correspondência,

através de fontes secundárias.

Resumo: o trabalho de campo é ferramenta indispensável para o fazer etnográco. Esse

artigo reforça sua importância e reete os elementos que compõem o cenário da pesquisa.

A primeira parte dialoga com alguns antropólogos clássicos das tradições inglesa, norte-

americana e francesa que foram fundamentais no reconhecimento do trabalho de campo

como essencial na antropologia. A partir dessa análise entende-se que o trabalho de campo

contribuiu para a armação da antropologia enquanto ciência independente e autônoma.

Na segunda parte do artigo faço uma descrição de minha aproximação com o povo indígena

Palikur, que foram meus colaboradores na construção da dissertação do mestrado. Nessa

parte do texto é destacada a escolha do campo de pesquisa, que muitas vezes superam as

expectativas do antropólogo. A conclusão é que o campo é a etapa do trabalho antropológico

capaz de superar as noções distanciadas que construímos ao longo de nossas pesquisas.

Palavras-chave: Trabalho de Campo. Etnograa. Palikur.

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A Antropologia nasce com vínculos estreitos com a sociologia, a qual buscava

entender os processos pelos quais passava a sociedade capitalista, o que acabou por

transformá-la inicialmente em uma disciplina com forte inuência metodológica da

sociologia, e que também passou a entender a realidade a partir da perspectiva do natu-

ralismo biológico, no qual o avanço das sociedades se daria a partir de etapas sucessivas

de desenvolvimento, atingindo no seu apogeu o estágio positivista, ou cientíco, ápice

em que toda e qualquer sociedade deveria chegar, a exemplo da sociedade europeia.

Inspirados na teoria da evolução, alguns antropólogos do século XIX cons-

truíram suas teses adequando o propósito evolucionista ao objetivo da disciplina. Um

desses antropólogos de destaque foi Lewis Henry Morgan, que sustentava que todos

coletivos humanos teriam que passar pelas mesmas fases históricas, pois todos eram

determinados pela mesma natureza; Que as sociedades iniciariam sua trajetória no

patamar da selvageria, depois passariam para a barbárie e nalmente consumavam seu

percurso na experiência da civilização (MORGAN, 2005).

Essa perspectiva que entende o desenvolvimento da sociedade por etapas de evo-

lução proporcionou o surgimento de estudos mais efetivos sobre as sociedades primitivas1

com o propósito de colocar a prova se a teoria em que esses primeiros estudiosos se base-

avam – o evolucionismo social – tinha alguma validade cientíca. Os primeiros estudos

que temos acesso dentro do âmbito de nossa disciplina mostram claramente que esse era

o seu principal objetivo, tanto que se usou por muito tempo o seu discurso para legitimar

a colonização como forma de impulsionar o desenvolvimento das sociedades estacionadas

no atraso social, sendo essas consideradas a infância da humanidade. Portanto, o início

dos trabalhos de campo da antropologia caracterizou-se pela tentativa de encontrar nos

povos estudados as hipóteses cientícas do evolucionismo (ITURRA, 1990).

Até então não era prioridade para a antropologia exercer o afastamento do

modelo teórico-metodológico proposto pela sociologia, já que os antropólogos de gabi-

nete se conformavam em estruturar suas análises a partir de informações de terceiros,

tais como: viajantes, exploradores, missionários, que tinham contato direto com as

sociedades primitivas. Contudo, a partir de 1922, data em que as regras do trabalho de

campo são sistematizadas no início do livro de Bronislaw Malinowski sobre os Trobian-

deses (1922), o conjunto de conhecimento obtido até então passa a ser um tipo de co-

nhecimento não mais praticável (ITURRA, 1990). Esse movimento deixava claro que

se fazia necessário pensar numa proposta de intervenção cientíca mais aprofundada e

menos mediatizada com essas populações e que a reformulação da proposta cientíca

da antropologia deveria partir não somente do objeto, mas também do método.

Pautado nessa necessidade, alguns antropólogos (FIRTH, ([1936] 1998);

EVANS-PRITCHARD, ([1937] 2005); RADCLIFFE-BROWN, ([1952] 1973), entre

outros), baseados na proposta sistematizada por Malinowski (1922), passaram a rein-

ventar uma análise cientíca que conseguisse abarcar os pormenores das sociedades pri-

mitivas. Eles trouxeram uma novidade metodológica para o seio da disciplina, utilizan-

do o contato direto com essas sociedades para melhor descrevê-las e assim, entendê-las.

O trabalho de campo se apresenta para a Antropologia enquanto uma pro-

posta de transformação da disciplina no sentido da prática metodológica, o que levou

inevitavelmente à ressignicação de suas correntes teóricas. A partir dessa forma de

apreensão da realidade a disciplina passou a se desenvolver consideravelmente.

Na primeira parte desse artigo proponho analisar de que forma o trabalho

de campo foi decisivo para a antropologia. A ideia preliminar é de que o trabalho de

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campo foi fundamental para estruturar nossa disciplina, e a proposta dessa discussão

é esclarecer como essa técnica de pesquisa se organizou para enveredar essa ciência a

chegar à posição que hoje ocupa.

Para exigir tal análise é necessário reivindicar o entendimento que levaram alguns

pensadores a considerar na prática a importância do trabalho de campo. Esses intelectuais,

alguns deles com formação acadêmica teórica e metodologicamente diferente da Antropolo-

gia, foram os que tiveram a iniciativa de introduzir essa técnica de pesquisa. Portanto, dialo-

gamos com algumas guras importantes para o desenvolvimento do trabalho de campo na

Antropologia, de acordo com as três tradições antropológicas centrais2. Na Inglaterra des-

tacamos os nomes de William Halse Rivers Rivers (1924) e Bronislaw Malinowski (1922);

Nos Estados Unidos apontamos a contribuição de Franz Boas (1940); Na França destaca-

mos Joseph-Marie Degérando ([1969] 2012), Maurice Leenhardt (1979) e Marcel Mauss

(1925). Ao observarmos tais nomes percebemos que as três tradições antropológicas clássicas

passaram a garantir a importância premente dessa nova abordagem teórico-metodológica.

Portanto, na primeira parte desse artigo, evoca-se como um dos pontos centrais

a busca de diálogo objetivo com alguns teóricos da tradição antropológica da primeira

geração, utilizando a temática sobre o trabalho de campo como acesso a esse diálogo.

Neste sentido, é fundamental que se entenda que o trabalho de campo in-

uenciou e foi aceito e necessário em todas as tradições antropológicas, legitimando

sua atuação como melhor proposta em aproximar-se qualicadamente da realidade das

sociedades não ocidentais.

A segunda parte do artigo se ocupará em estender uma reexão acerca dos

meandros necessários que são percorridos para a construção das narrativas antropológi-

cas. Relatar os meios que surgem no decorrer do trabalho de campo pode ser um cami-

nho interessante para compor a redação do texto etnográco, pois traduz para o papel

a forma como foi conduzida a pesquisa, o que pode qualicá-la eticamente como uma

forma mais apropriada, portanto legítima, de representar o outro e a si mesmo no texto.

Assim, espero poder demonstrar neste artigo que há inúmeras possibilidades

de construção do fazer etnográco, pois esse é regido pelo confronto que o pesquisador

se depara no decorrer de sua experiência de campo, confronto este mediado por muitas

perspectivas, expectativas, olhares, experiências subjetivas, enm, pela densa teia de

relações e signicados que atravessam e constroem uma pesquisa etnográca.

Seguindo esse uxo de pensamento irei utilizar algumas reexões de minha pes-

quisa de campo com o povo indígena Palikur3, que foram meus colaboradores no projeto

de pesquisa para a construção da dissertação do mestrado em Sociologia e Antropologia.

A narrativa dos acertos e acordos que zemos para minha primeira experiência de campo

que tive com esses indígenas irá aparecer como demarcação da possibilidade do fazer

etnográco levando em consideração as experiências subalternas do campo, que muitas

vezes se tornam invisíveis e, portanto, esquecidas nos escritos etnográcos.

O TRABALHO DE CAMPO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O FAZER

ETNOGRÁFICO

Castro ao procurar denir a Antropologia, busca compreender sua autonomia

enquanto ciência não a partir de seu objeto, mas sim a partir do seu método. Segundo

ele, os antropólogos não “estudam as aldeias ou cidades, mas em aldeias ou cidades”.

A partir desse apontamento podemos entender que o discurso da antropologia se

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constrói a partir do contato direto, reexivo e estando em perspectiva dialogal com a

realidade que se propõe entender. O autor aponta que o trabalho de campo é de uma

importância fundamental para a antropologia. Para ele, “a monograa etnográca con-

tinua a ser a referência clássica da antropologia, e, ouso dizer, a raiz de sua autonomia

como disciplina” (CASTRO, 1992, p. 171).

Com esta armação entendemos que a metodologia do trabalho de campo é

para a antropologia a pedra angular, o ponto de armação de sua identidade, o processo

pelo qual se dá sua caracterização enquanto disciplina independente.

Deste modo, a pesquisa etnográca deve ser pensada de acordo com as diver-

sas possibilidades de rede de relações a que a sociedade pesquisada está envolvida. Para

isso é necessário adquirir uma metodologia de pesquisa que se preocupe em analisar

não apenas fatos grandes, relevantes, segundo uma escala epistemológica convencional,

mas que se comporte como uma ciência inclusiva, dando destaque também aos peque-

nos fatos, considerando-os como importantes porque se relacionam diretamente aos

grandes temas (GEERTZ, 2008).

Para se chegar aos pormenores do emaranhado de signicados que uma cultu-

ra contém, a pesquisa deve tentar construir uma leitura mais próxima possível da nor-

malidade dos sujeitos pesquisados. Ou seja, sob a orientação de Geertz (2008), não há

pretensão de fazer do lócus de estudo o objeto de estudo. Antes, estabelecer uma aproxi-

mação razoável com a normalidade dos envolvidos na pesquisa, capaz de providenciar

um estudo com eles, não sobre eles. Daí haverá inevitavelmente o desdobramento da

pesquisa em uma descrição densa, microscópica e interpretativa sobre aquilo a que o

antropólogo se propõe pesquisar.

Considero importante enfatizar também que o trabalho de campo, conforme

armamos linhas atrás, não foi um elemento que nasceu naturalmente dentro da antro-

pologia. Ele foi criado, pensado para suprir determinadas necessidades que essa ciência

social apresentava em seu início. Para tal iniciativa houve necessidade de contar com

a intervenção de alguns intelectuais que ampliaram o entendimento, sobretudo acerca

das sociedades ditas primitivas, a partir de uma proposta metodológica que conseguisse

satisfazer qualicadamente esse objetivo.

William Halse Rivers Rivers (1864-1922), ou simplesmente Dr. Rivers, foi

um médico inglês que se interessou em viajar nos navios britânicos atuando em sua

prossão, onde fez grandes expedições e conseguiu conhecer algumas sociedades que

até então tinham pouco contato com o mundo ocidental.

Para Korsbaek (2014, p. 45), Rivers foi fundamental para a antropologia pelos

três motivos que ele destaca:

En la antropología podemos buscar la actuación relevante de Rivers em tres campos sustan-

ciales: en el de la historia conjetural, el estudio del parentesco y la antropología psicológica,

pero también tenemos que considerar un campo más formal y práctico, aunque menos sus-

tancial: su inuencia en la transformación de la antropología de gabinete en una Antro-

pología basada en el trabajo de campo, o sea su contribución a la profesionalización de la

Antropología.

Portanto, temos aqui um personagem que contribuiu dentro da tradição bri-

tânica de Antropologia para que o trabalho de campo fosse congurado como um ele-

mento central na construção dessa ciência. E mais ainda, conforme aponta Korsbaek,

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a estruturação do trabalho de campo traz a ideia e o sentido de uma ciência prossio-

nalizada, com estatuto de legitimidade garantido a partir da etnograa. E ainda, para

enfatizar a importância do trabalho de campo para a Antropologia, Rivers destaca que

“el trabajo de campo era ya para la antropología lo que la sangre de los mártires para la

Iglesia católica” (RIVERS apud KORSBAEK, 2014, p. 49).

Portanto, com Rivers a Antropologia na Inglaterra deixa de ser uma ciência

meramente especulativa, de gabinete, construída a partir de relatos de terceiros, e se

transforma em uma ciência baseada no trabalho de campo, que busca concentrar em

apenas uma pessoa o papel de pesquisador no campo, como também analista de gabi-

nete dos dados e informações coletados.

Mas anal, como essa proposta metodológica se organiza e se fundamenta

dentro da Antropologia?

O trabalho de campo é construído e pensado de acordo com o grupo social

que se deseja entender. Ele se estrutura a partir do contato, a partir da experiência vi-

vida em campo. Ou seja, o antropólogo deve estar disposto a pensar a estrutura social

que pesquisa a partir de dentro de sua organização, e não a partir de fora, com ideias

pré-concebidas e estruturadas fora da realidade em que deseja pesquisar. Reforçando

tal princípio, Malinowski, considerado como um dos pais fundadores da etnograa (ao

lado de Franz Boas) aponta:

o moderno explorador antropológico, que vai para o campo cheio de teorias aprendidas,

cheio de problemas, de interesses e talvez de ideias preconcebidas, não é capaz nem aconse-

lhado a manter suas observações dentro dos limites de fatos concretos e dados pormenoriza-

dos (MALINOWSKI, 2008, p. 07).

A partir desse apontamento, entendemos que o trabalho etnográco se guia

pelas informações que serão geradas a partir do estabelecimento do contato com a

sociedade que o pesquisador se interessa em entender. E de antemão, o etnólogo deve

estar disposto em abrir mão de suas ideias e teorias que não dialogam com a realidade

pesquisada. E como esclarece Castro, citando Evans-Pritchard, “o antropólogo deve se-

guir o que encontra na sociedade que escolheu estudar” (EVANS-PRITCHARD apud

CASTRO, 1992, p. 179), ou seja, a partir do contato direto o antropólogo deverá orga-

nizar ou reorganizar sua pesquisa e seus interesses de acordo com os dados observados.

Malinowski nomeia tal metodologia de Observação participante, onde o antro-

pólogo deve manter suas relações estreitas com a população estudada e daí em diante a in-

vestigação das sociedades ditas primitivas se dá a partir da perspectiva do nativo, a partir

do contato direto e vivencial, porque para compreender os “nativos reais e próximos, (de

carne e osso) exigem-se etnógrafos reais e próximos (também de carne e osso)” (SILVA,

2006). Nesta perspectiva a pesquisa passa a exigir que o pesquisador aprenda a viver na

sociedade que decidiu pesquisar, como um indivíduo comum dessa sociedade, a falar sua

língua, a comer suas comidas, a sentir suas emoções de acordo com os costumes locais.

Chegando nesse ponto, passamos a entender que a pesquisa de campo não

está a serviço de uma teoria, que não se submete, a priori, a ideias construídas fora do

ambiente pesquisado. Ela está, ao contrário, interessada em captar a totalização, privi-

legiando o modelo de construção social dado pelo nativo, procurando estabelecer um

entendimento capaz de dar conta do todo estruturado pela própria sociedade, e não

pelo olhar do pesquisador.

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Vale ainda ressaltar que Malinowski, em suas pesquisas de campo, estava inte-

ressado em consolidar tal metodologia dentro do ambiente antropológico, por entender

que essa disciplina carecia de um roteiro que ajudasse outros antropólogos em pesquisas

posteriores (SILVA, 2006).

Desta forma, entendemos que a pesquisa de campo se consolida como uma

ruptura metodológica dentro da antropologia. Importante destacar que o método de

campo rompe com um entendimento considerado limitado para entender a complexi-

dade da vida social.

Contudo, se faz necessário distinguir a observação participante do trabalho

de campo, que é o envolvimento direto que o investigador de campo tem com o grupo

social que estuda, dentro dos parâmetros das próprias normas do grupo; já o trabalho

de campo é um processo que evolve mais aspectos da conduta social, dentro dos quais

o comportamento manifesto é observado. A observação participante é pontual, o tra-

balho de campo é envolvente (ITURRA, 1990).

Boas (2013) procura envidar esforços em buscar diretamente na pesquisa de

campo elementos sucientes para enveredar a pesquisa antropológica por outros cami-

nhos, capazes de interpretar de forma mais dedigna possível a realidade dos nativos.

Ao destacar sua proposta metodológica histórica, declara que:

o antigo método de construção de uma história da cultura humana baseada em pedacinhos de

evidência, arrancados de seus contatos naturais e colhidos de todas as épocas e em todo canto

do mundo, perdeu grande parte de sua inuência (BOAS apud BENEDICT, 2013, p. 11).

Essa perda de inuência que Boas chama atenção é sobre o evolucionismo,

que se valia principalmente do método comparativo como aporte fundante para a re-

construção histórica da cultura humana. Portanto, ele aponta a necessidade de intervir

na Antropologia a partir de uma proposta metodológica que propicie o entendimento

das várias possibilidades de construção social. Ou seja, para ele o trabalho de campo é

fundamental para entender as particularidades de cada sociedade, e assim desmanchar

a ideia de uma cultura total e generalizada da humanidade.

Segundo sua orientação, “no campo tudo deve ser anotado: desde os materiais

constitutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos esquimós, e isso deta-

lhadamente, e no detalhe do detalhe” (LAPLATINE, 2000, p. 77). Dessa forma, ele

aproxima o investigador de seu objeto e faz com que possa reproduzir uma cópia mais

próxima da realidade possível. Daí, Boas passa a entender que apenas o antropólogo

tem a legitimidade de interpretar os povos ainda desconhecidos na cultura ocidental.

Legitimidade essa que lhe é conada por sua técnica de investigação. Além do mais,

Boas considera que em campo nada pode ser considerado desprezível. Ou seja, segundo

ele, para a Antropologia não existe um objeto mais nobre que outro para ser investi-

gado. Tudo deve ser conhecido pormenorizadamente, tudo é passível de investigação.

Com relação à antropologia francesa, um dos primeiros sinais da importância de

desenvolver outra metodologia de estudo da humanidade se deu por meio de Joseph Marie

Degérando ([1969] 2012). Esse intelectual concentrou esforços em organizar um método

de observação que pudesse apreender de forma suciente e qualicada o estudo do homem.

e method of observation has a sure procedure; it gathers facts to compare them, and com-

pares them to know them better. e natural sciences are in a way no more than a series of

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comparisons. As each particular phenomenon is ordinarily the result of the combined action

of several causes, it would be only a deep mystery for us if we considered it on its own: but

if it is compared with analogous phenomena, they throw light each on the other (DEGÉ-

RANDO, [1969] 2012, p. 57).

O método acima citado por Degérando, mesmo sendo pensado para estar

a serviço de uma pesquisa com ns evolucionistas, pode ser considerado como uma

nova proposta de perceber o entendimento acerca da humanidade, porque adentra a

perspectiva da observação como proposta chave de entendimento do comportamento

do homem em sociedade, com o propósito de reunir fatos para melhor compará-los.

Ao lado de Degérando se enquadra o missionário francês Maurice Leenhardt

no pioneirismo em pensar uma proposta metodológica etnográca na França. Segundo

Cavignac (2001, p. 8), em 1902

Leenhardt já pratica a observação participante na Nova Caledônia. Tudo aquilo que a et-

nograa iria, posteriormente, reivindicar, isto é, um método fundado na observação direta

com estada prolongada em campo, conhecimento profundo da língua nativa, participação

na vida das populações estudadas levando a tecer relações afetivas duráveis com alguns de

seus informantes, etc.

Leenhardt em seu contato com os povos da Nova Caledônia elabora instru-

mentos de investigação para compreender e traduzir as categorias nativas. Para isto, ele

aproveita o seu trabalho de pastor cristão e pede aos seus informantes que escrevam

cadernos sobre suas experiências cotidianas, suas técnicas, costumes, ritos, etc. Mais

tarde tal conteúdo era discutido e sistematizado entre eles, para posteriormente ser

estudado e entendido.

No entanto, surge também na França a gura imponente de Marcel Mauss,

como o grande incentivador da implementação da pesquisa de campo como verdadeira

ferramenta para a construção de uma Antropologia séria.

Necessário destacar que uma das maiores contribuições de Mauss para a Antro-

pologia foi exatamente sua preocupação em instigar um movimento dentro da disciplina

para a realização de pesquisas etnográcas. Porque, segundo seu entendimento, o homem é

incapaz de conhecer os fenômenos do espírito pela introspecção. É no social que está a base

para esse conhecimento. Portanto, é nas relações sociais que o pesquisador deve debruçar

seus estudos para entender a trama inclusive daquilo que não se pode perceber visivelmente.

Dessa forma, ele foi um dos maiores impulsionadores da realização dos tra-

balhos antropológicos a partir do trabalho de campo, mesmo jamais realizando tal

atividade. Portanto, pode-se entender que “o fazer sociologia – melhor diríamos, An-

tropologia – parece ser o melhor ensinamento de Mauss” (OLIVEIRA, 1979, p. 23).

SEM CAMPO, SEM ETNOGRAFIA

Professor, vamos conhecer minha aldeia nesse nal de semana?

Propôs um aluno meu pertencente ao povo Palikur, que faz o curso de Licen-

ciatura Intercultural Indígena na Universidade Federal do Amapá, no campus de Oia-

poque. Estávamos nos despedindo de uma semana intensa de aulas, no nal da tarde de

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300

uma sexta feira do mês de janeiro de 2015, quando Ailton Batista lançou essa proposta

de conhecer sua aldeia naquele nal de semana.

Vamos, disse eu. Tenho muita vontade de ir ao rio Urucauá e conhecer onde os

Palikur vivem.

Naquele mês eu já havia passado pelos exames de seleção para o mestrado no

PPGSA/UFPA, e aguardava ansiosamente a chegada do mês de março para começar

as minhas aulas no Programa. O projeto que submeti à seleção tinha como proposta

central entender as relações dos indígenas urbanos em Oiapoque. Mas nada estava

muito claro para mim, iniciante no terreno da temática indígena. Uma visita à principal

aldeia Palikur poderia ajudar na elaboração de um projeto mais propositivo para minha

pesquisa, imaginei.

Como faremos para ir? Completei.

Vamos na minha voadeira, disse Ailton. A gente sai umas oito da manhã de

amanhã, sábado. Podemos dividir as despesas com o combustível. São 120 litros de gasolina,

60 eu pago e 60 você paga. Voltamos no domingo de tarde. Em média são quatro horas de

viagem da aldeia Manga4 até a aldeia Kumenê5.

Depois dessa fala de Ailton quei pensativo, pois 60 litros de gasolina equiva-

liam no Oiapoque, naquela época, aproximadamente R$ 250,00 (duzentos e cinquenta

reais). Um valor bem considerável para quem estava apertando os cintos para economi-

zar o salário de professor auxiliar I e conseguir sobreviver até o nal do mês.

E não precisa de autorização para entrar na aldeia, Ailton? Perguntei já com

o propósito de dicultar minha ida.

Vamos falar com Azarias, ele é o cacique do Kumenê e tenho certeza que ele

dará a permissão. Vamos agora, ele está hospedado no alojamento da FUNAI.

Vamos, respondi. Mas sem muita animação.

Chegamos ao alojamento da FUNAI, chamamos Azarias e nos informaram

que estava tomando banho. Esperamos na varanda por volta de quinze minutos até o

cacique aparecer já de banho tomado. Cumprimentamos-nos, Ailton nos apresentou,

mas já nos conhecíamos da Universidade. Azarias também é estudante da Licenciatura

Indígena. Eles começaram a falar em palikur. E pelas expressões faciais e impostação

de voz do cacique imaginei que a permissão não seria concedida. E de certa forma esta-

va torcendo para que não autorizasse, pois já estava entristecido pelo gasto inesperado

que ia fazer em troca de um passeio de dois dias para um lugar que não conhecia e que

aparentemente não dizia respeito para as minhas atividades acadêmica. Torcida em vão.

Tudo certo, professor! Disse Ailton com um tom bastante animoso.

Posso ir sem nenhum problema, cacique? Perguntei a Azarias.

Ele respondeu:

Pode sim. Só toma cuidado com os jacarés. Nessa época os rios estão secos e é pre-

ciso passar no rio tirando com as mãos os jacarés da frente da voadeira. Sorriram os dois.

Eu sorri também, desconando se tratar de uma piada.

Na saída do portão da FUNAI Ailton conrmou que era sim uma piada. No

entanto, a gente ia ver muito jacaré ao longo dos rios que íamos navegar, mas sem ne-

nhum perigo. Depois disso ele marcou o local e horário exatos da partida, em frente ao

banco Bradesco, às 8:30 da manhã. Disse ainda que não precisava levar rede, cobertor,

mosquiteiro. Ele tinha tudo na sua casa. Caso eu quisesse comprar biscoito, bolacha,

pão, suco ou refrigerante para comer na viagem seria bom, porque era longe e com

certeza ia dar fome.

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Vamos eu, você, Zélia (esposa de Ailton), Charle (lho mais novo) e Rhyana

(neta de quatro anos). Além dos 120 litros de gasolina ainda tem que comprar o óleo 2

tempos, que custará uns 80 reais, e ainda pagar o carro daqui da cidade para o Manga, que

é 60 reais. Vamos dividir tudo. Completou Ailton.

Tudo bem, respondi. Mas com uma angústia que me consumia. Contudo,

não queria decepcionar meu amigo que me lançou um convite generoso e sincero.

Resolvi encarar a viagem sem pensar nos gastos que iria ter que fazer, e passei

a enxergar as vantagens que tudo isso iria me proporcionar, tais como: a aproximação

com um povo indígena, a possibilidade de criar uma rede de relações com alguns Pa-

likur, principalmente com a família de Ailton, o contato com a Terra Indígena, com

a aldeia, com os indígenas de carne e osso. Entendi que tudo aquilo não seria em vão,

e reformulei minha viagem de passeio para uma viagem a campo. Fui para meu quar-

to, preparei minha mochila com alguma roupa, caderno de campo, canetas, lanterna,

câmera fotográca, enm, material mínimo para iniciar uma pesquisa antropológica.

No sábado de manhã cedo, depois do café, fui ao supermercado fazer uma

pequena compra para levar na viagem. Depois fui para o local combinado para par-

tirmos. Já estavam à minha espera, e tudo estava organizado para irmos ao rio Uru-

cauá. E assim se deu minha primeira aproximação com os Palikur em sua região de

inuência. E desta forma, a partir dessa viagem inusitada, passei a delimitar o grupo

indígena que queria pesquisar. Fiquei simplesmente encantado com o modo de vida, a

região, as relações interétnicas que estabelecem a alegria e abertura com que os Palikur

me acolheram, desde o convite de Ailton até os dois curtíssimos dias que passei junto

deles no Kumenê.

Passei a enxergar esse primeiro encontro como um rito de passagem, o mo-

mento em que me encontrei com aquilo que queria conhecer a partir da experiência da

pesquisa antropológica. Franco (2001, p. 20) fala do “mito fundador” da sua pesquisa,

que seria o momento em que nascem as relações entre o explorador, ou pesquisador, e

seus interlocutores. Para essa autora o marco fundador em sua pesquisa de doutorado,

intitulada Os Milton, se deu numa assembleia em 1991 na foz do rio Tejo, no Acre. Já

o mito fundador de minha pesquisa de mestrado foi essa viagem que aceitei a convite

de Ailton Batista.

Até então, ou seja, até minha primeira e rápida viagem ao centro da Terra

Indígena Uaçá, fazia elaborações distanciadas sobre os povos indígenas do Oiapoque,

sem me atrever a constituir uma aproximação com a realidade que vivem. Eu os

conhecia somente pelos artigos e textos acadêmicos e assim já me achava autorizado a

pesquisá-los e me autodenominava pesquisador dos povos indígenas do Oiapoque.

A partir daqueles dois dias de aproximação passei a entender que era inevi-

tável mudar completamente minha perspectiva. Daí, então percebi que a perspectiva

intersticial proposta por Malinowski a partir da observação participante, apontando a

necessidade de rompimento com a antropologia de gabinete (SILVA, 2006) é o princí-

pio norteador da pesquisa antropológica. O olhar do antropólogo a partir de dentro é

a necessidade que se impõe para a construção de um texto etnográco comprometido

e responsável, capaz de legitimar as diversas vozes que compõem o cenário da pesquisa.

Portanto, minha abertura em aceitar o convite de Ailton para ir ao Kumenê

fez com que surgissem relações subjetivas entre eu e alguns Palikur. Reconheço que es-

sas relações são fundamentais no terreno da pesquisa etnográca, haja vista são elas que

conduzem a mediação e a possibilidade de tornar a pesquisa um fato concreto. Essas

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articulações na construção da pesquisa, tais como os contatos iniciais, a forma que se

deu a escolha do campo de pesquisa, as mediações e acordos celebrados, as estratégias

no campo para conseguir informações, as percepções subjetivas do pesquisador, por

muito tempo dentro da antropologia privilegiou-se sua anulação em detrimento de

uma narrativa objetiva, que garantisse o maior grau possível de neutralidade, privile-

giando o rigor cientíco para garantir a “autoridade etnográca” do pesquisador (SIL-

VA, 2006, p. 25). Contudo, essa estratégia não se apresenta mais como uma proposta

unânime dentro da antropologia. No trabalho de campo e nos escritos etnográcos há

a emergência e a necessidade de entender como se constroem os bastidores da pesquisa,

de que forma as articulações são desenvolvidas.

Resolvi me aproximar dos Palikur e me tornar amigo deles. Decidi aceitar

seus convites, comer suas comidas, ir para a igreja com eles, enm, passei a intensicar

minhas relações pessoais com eles sem temer às prováveis consequências que poderiam

ocorrer no futuro. Contudo, isso não é suciente para que eu me tornasse um nativo.

Aliás, como defende Wagner (2017), o antropólogo nunca vira nativo, porque isso sig-

nica se despir, se desfazer de todo seu conjunto de signicado de sua própria cultura.

Mas esse comportamento foi suciente para eu entender que a experiência de estar com

o povo Palikur era fundamental para iniciar meu trabalho de pesquisa junto a eles.

A relação de intensa proximidade que envolve o pesquisador e pesquisado

pode ser uma técnica refutada por muitos antropólogos. Isso porque não é fácil estar

dentro do grupo que pesquisa, buscando se aproximar de sua perspectiva a partir de

uma relação subjetiva e ao mesmo tempo preocupado com o distanciamento reclamado

pelo rigor cientíco da neutralidade. Contudo, há possibilidade de explorar esse campo

da aproximação e da intimidade em favor do trabalho etnográco. Foi a estratégia que

Mariana Franco (2001) considerou para pesquisar a história familiar nos seringais do

Acre. A autora, no início do projeto de doutorado, se viu angustiada por estar muito

próxima intimamente ligada aos interlocutores de sua pesquisa. Mas o desao posto

para a tese de doutorado foi exatamente esse: Por que não tirar partido da profunda

intimidade que fora criada entre a pesquisadora e aquelas pessoas? Ou seja, a familia-

ridade com seus interlocutores fez com que aprofundasse o conhecimento e extraísse

dados e informações que de outra forma talvez fosse impossível obter.

O ANTROPÓLOGO NO TEXTO

Outro ponto fundamental para entender a construção do trabalho etnográ-

co é a manifestação das avaliações subjetivas que o próprio antropólogo tem em campo.

Ao decidir publicar os Diários de Malinowski em 1966, sua esposa, Valetta Ma-

linowski, aponta a importância de dar publicidade sobre a personalidade do antropólogo

em campo (MALINOWSKI, 1997), já que isso não aparece nas obras de seu marido até

então publicadas. Dessa forma, mesmo com todas as críticas que a publicação dos Diários

sofreu, essa atitude apontou a necessidade de perceber que tanto o pesquisador como o

nativo são pessoas de carne e osso. A pesquisa conduzida pelo antropólogo não são mani-

festações que surgem do dia para a noite, dando a parecer que tanto o pesquisador como

o pesquisado está em uma posição de engessamento subjetivo, onde não há manifestações

humanas visíveis. Dessa forma, a proposta de Silva (2006) sinaliza uma via propositiva

de encarnar no texto etnográco a gura do nativo e do pesquisador, demonstrando suas

percepções sobre a pesquisa e os caminhos que a zeram se desenvolver.

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Tris tes Tr ópi cos de Claude Lévi-Strauss (1996) carrega consigo esses elementos

tipicamente humanos, tanto do antropólogo quanto da realidade pesquisada que teve

acesso. Leyla Perrone-Moisés (1996), ao fazer um paralelo entre as narrativas de viagens

de Jean de Léry e a etnograa de Lévi-Strauss aponta que, mesmo havendo grandes

diferenças entre os escritos desses dois franceses, o primeiro do século XVI e o segundo

do XX, ambos demonstram em seus textos uma questão de fundo: descrevem práticas

e questões humanas que só as viagens ao Brasil puderam lhes proporcionar. A noite

entre os Nhambiquara experimentada por Lévi-Strauss e a aproximação com o ritual

Tupinambá narrada por Léry são exemplos dessa aproximação entre ambos os autores,

demonstrando a possibilidade do pesquisador acentuar os elementos humanos em seu

trabalho.

No entanto, nos trabalhos das ciências sociais construídos no espaço temporal

entre Léry e Lévi-Strauss é inevitável perceber a fuga da humanização desses textos,

trazendo para dentro do trabalho a encarnação por inteiro do ambiente e das noções

humanas do campo pesquisado. Lévi-Strauss busca retomar esse caráter em Tristes

Trópicos, o que lhe custou, inclusive, a acusação de ser um trabalho menor dentro dos

limites da academia. No entanto, a posição desse autor francês com relação à escrita,

segundo a interpretação de Frank Lestringant (2000), é de que é um trabalho de luto,

especicamente por não conseguir exprimir com exatidão a realidade observada nos fa-

tos. Essa percepção de Lévi-Strauss indica o rumo que a escrita etnográca deve tentar

perseguir: o da exatidão dos fatos, de acordo como eles são na realidade, sem omitir os

detalhes que os circundam, mesmo sendo uma tarefa impossível.

Talvez esse giro na forma de apreender a escrita etnográca, conduzida na

França por Lévi-Strauss, tenha ocorrido em decorrência da inuência que recebeu de

suas experiências com os surrealistas nos Estados Unidos, depois de sua primeira vinda

ao Brasil. Segundo o próprio Lévi-Strauss (1989), seu gosto estético foi enriquecido

e renado a partir do contato com os surrealistas e a possibilidade de lançar olhares

novos para os objetos antes possivelmente rejeitados. Tal armação sobre Lévi-Strauss

é também reivindicada por Castro (2009), onde propõe que Lévi-Strauss teve um pa-

pel fundamental na construção de uma nova sensibilidade cultural, expressa na forma

literária com que escreveu alguns de seus textos, coloquem-se aí Tristes trópicos, o que

signicou uma revolução para a Antropologia e para a própria ciência. Eis outro ponto

necessário para pensarmos a construção da escrita etnográca. A interdisciplinaridade

é substancial para construir novos olhares, sem preconceito de abertura para novas

possibilidades sobre o campo que nos propomos pesquisar.

Segundo ainda Lestringant (2000), ao escrever Tri ste s Tró pico s Lévi-Strauss

busca renovar na modernidade o Renascimento em suas dimensões mais generosas. Ou

seja, busca resgatar ou mesmo retratar, através de seu caráter de nostalgia e remorso, a

humanidade perdida desde a obra de Léry.

Portanto, descrever a personalidade do antropólogo em campo se torna im-

portante porque, no momento em que se conhece sua obra é importante conhecer

também seus anseios pessoais, assim como outras questões próprias do pesquisador que

possam ter inuenciado a construção de sua pesquisa. Foi esse um dos pontos impor-

tantes que Raymond Firth, escrevendo em 1966, destacou ao redigir a primeira intro-

dução para os Diários de Malinowski (MALINOWSKI, 1997). Firth orienta encarar

os Diários não como um texto de cunho teórico ou metodológico da antropologia, mas

sim como uma literatura necessária para demonstrar as diversas reações que o pesqui-

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sador teve em campo, mas que inevitavelmente fazem parte da pesquisa e não pode ser

considerada como uma questão menor.

Assim, o pesquisador passa a se fazer presente nos escritos juntamente com o

pesquisado, e isso assegura que o texto nal está sendo devidamente assinado, ou seja,

que o texto etnográco apresenta seu autor dentro de sua própria estrutura narrativa.

Dessa forma, seguindo as intervenções de Geertz (2005), o pesquisador passa de sim-

ples escritor para autor do texto, capaz de produzir discursividade, pois não é simples-

mente pela força da argumentação teórica, muito menos pela extensão descritiva dos

fatos que os textos antropológicos ganham credibilidade. Geertz (2005, p. 15) indica

que “é no “milagre” de haverem penetrado numa outra forma de vida, ou de terem sido

penetrados por ela, de realmente “estado lá”, que ocorre o convencimento nos textos

etnográcos.

As narrativas elaboradas pelos antigos viajantes apontam para uma forma li-

terária de escrita assentada na propositura de traduzir para o texto as experiências que

tiveram em suas viagens. Oliveira (1983) destaca que, para que esses textos narrados

pelos viajantes passassem a ajudar na pesquisa antropológica seria necessário também

que o antropólogo se libertasse das orientações funcionalistas que limitam o olhar do

pesquisador no objeto pesquisado e se fecha às demais questões que envolvem a cons-

trução do texto. A proposta de Oliveira é desenvolver uma análise do texto que permita

olhá-lo como produto de determinado autor, que também é fruto de diversas relações

sociais e desempenha algum tipo de papel na sociedade em que vivia. Ou seja, o que

está sendo proposto é a investigação a fundo das tramas que envolveram a construção

do discurso construído no papel, desenvolvendo assim uma antropologia interpretativa

ou hermenêutica, que possa garantir o entendimento do discurso a partir de suas diver-

sas possibilidades.

A discursividade, portanto, passa a ser a orientação central para ser alcançada

pelo antropólogo, o qual expõe e não omite o emaranhado das tramas que envolvem

sua pesquisa, buscando salientar o caráter colaborativo do fazer etnográco.

Esse posicionamento me levou a entender a importância de minha aproximação

com os Palikur no Oiapoque e acentuar a forma como se deu meu primeiro encontro

com a região de sua inuência na Terra Indígena Uaçá. De repente, sem nenhuma

formalidade, eu estava sendo convidado para conhecer a principal aldeia Palikur. Eu,

enquanto pesquisador, passei a car em uma situação razoavelmente confortável, porque

o convite para estabelecer uma relação de proximidade não foi lançado por mim, mas

sim por eles mesmos. E então, quem será o pesquisador e o pesquisado? Quem está

interessado na pesquisa, os nativos ou o antropólogo? Nesse ponto a estratégia é deixar-

se penetrar pelo campo pesquisado, e a partir daí colocar-se em perspectiva, ou seja,

colocar-se no lugar do outro. Essa autorização para falar sobre o outro só é concedida

a partir da observação direta. Portanto, no momento em que estive pela primeira vez

na aldeia Kumenê entendi que para falar sobre os indígenas daquela região não era

suciente conhecê-los pelos livros, mas estabelecer uma estadia prolongada no local em

que vivem, para construir um vínculo de proximidade com eles era a principal tarefa

que me levaria a elaborar um trabalho etnográco qualicado e responsável.

Depois que aceitei ir com Ailton para sua casa no Kumenê, quando me de-

parei com a realidade que estava diante de meus olhos, ao ver os famosos jacarés do

rio Uaçá, ao me encantar com a paisagem da Terra Indígena e com a aldeia, ao esta-

belecer um rápido, mas ao mesmo tempo intenso contato com os moradores da aldeia

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passei a perceber a pesquisa de campo com os olhos que ela merece. Entendi a partir

daí que a escrita etnográca não é nada sem a pesquisa de campo, pois é a partir do

estabelecimento dessa relação que se passa a construir o trabalho. Ou seja, é no campo,

que também pode ser entendido como a parte central do processo da pesquisa, que se

constrói e se consuma a tarefa antropológica. Portanto, estar mergulhado no campo é a

tarefa essencial que se impõe ao antropólogo na busca da construção da discursividade

etnográca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo armar a importância do trabalho de

campo para a construção da escrita etnográca, e para isso mencionamos, ainda que

rapidamente, alguns autores clássicos das tradições antropológicas inglesa, norte-ame-

ricana e francesa, que consideraram a importância e a centralidade do engajamento

da antropologia para com o trabalho de campo. Neste aspecto pudemos entender que

a pesquisa de campo ocupa lugar de destaque em nossa disciplina, pois é ela quem

legitima e autoriza a fala do pesquisador. É no campo que o fazer etnográco se torna

possível.

A partir desses apontamentos, descrevi meu primeiro contato com o povo

Palikur, na aldeia Kumenê. Ao ser convidado por Ailton para visitar e conhecer o Ku-

menê eu pensei em aproveitar o momento para solidicar minha proposta de projeto

para a dissertação do mestrado. Eu aceitei o convite imediatamente pensando já no

retorno que eu poderia ter. Ou seja, eu não estava aceitando o convite ingenuamente,

assim como Ailton também deveria ter suas pretensões com minha ida à sua aldeia,

pretensões essas que não me arriscarei a mencionar aqui. No meu caso, mesmo depois

que soube dos valores que teria que investir para chegar à maior aldeia dos Palikur, e

correndo o risco de passar por contenção nanceira até o nal do mês, eu concordei em

ir, justicando que a ida não seria em vão.

Depois quei pensando que, caso eu recebesse convite dos Galibi-Marworno,

dos Galibi-Kalinã ou dos Karipuna, antes dos Palikur, talvez eu passasse a me interessar

em construir minha pesquisa com esses outros povos. Isso pode dizer que eu estava certo

de que queria enveredar minhas pesquisas acadêmicas no campo da etnologia indígena,

mas não havia denido o foco da pesquisa. Assim sendo, volto a armar que o contato

com o campo (o primeiro campo que tive contato) fez com que eu denisse o povo com

quem eu passaria a estender minhas reexões. No entanto, destaco que não fui eu que

escolhi os Palikur, mas foram eles que me escolheram para aquela pesquisa. O que z foi

somente me deixar conduzir pelo percurso que eles escolheram para me adentrar.

Portanto, o texto etnográco nasce a partir das diversas intervenções que o

campo apresenta. Destaco preeminentemente o papel do campo porque o considero

como o principal condutor da pesquisa, é ele quem revela as vias que o pesquisador deve

percorrer para chegar às suas apreensões nalizadas no texto, e o pesquisador deve dar

a devida atenção em seu texto a esses espaços. Mas nesse trabalho foi possível apontar

algumas reexões sobre a importância que esses caminhos do campo têm na proposi-

tura de um texto antropológico.

O trabalho de campo é unanimemente considerado dentro de nossa disciplina

uma abordagem teórico-metodológica base. Independentemente das correntes teóricas

que atravessam a disciplina, sua aceitação é unânime. A impregnação do pesquisador

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nos diversos temas da sociedade pesquisada é fundamental para o seu entendimento.

Portanto, a pesquisa etnográca não reivindica somente a coleta de informações, mas

principalmente de poder proporcionar no pesquisador uma experiência pessoal e intrín-

seca com a realidade pesquisada.

Nesse sentido, o antropólogo não pode ir a campo pretendendo ensinar algo,

submetendo os sujeitos de sua pesquisa às suas teorias pré-fabricadas. O antropólogo

deve se colocar em uma posição de aprendiz, de aluno. E essa sua posição o transporta

para o patamar de conhecedor de outra cultura alheia à sua. O que não quer dizer,

como entende Wagner (2017), que o antropólogo aprenderá uma nova cultura para

colocá-la ao lado daquela que ele já conhece. A função do antropólogo é assumir a cul-

tura alheia, e assim experimentar a transformação de seu próprio universo, podendo,

inclusive, redenir sua própria vida e sua personalidade, pelo fato de ter-se deixado

afetar pelo campo de sua pesquisa.

AFTER ALL, HOW AN ETHNOGRAPHIC TEXT IS BORN? THE PLOTS

ALONG THE PATHWAY IN FIELD RESEARCH AND ETHNOGRAPHIC

WRITING

Abstract: Fieldwork is an indispensable tool for doing ethnographic. is article seeks to

reinforce the importance and reects the elements that make up the research scenario. e

rst part discusses with some classic anthropologists of the English, American and French

traditions that were fundamental in the recognition of eld work as essential in anthropo-

logy. From this analysis it is understood that the eld work contributed to the armation

of anthropology as an independent and autonomous science. In the second part of the article

I give a description of my approach to the Palikur indigenous people, who were my colla-

borators in the construction of the master’s thesis. In this part of the text is highlighted the

choice of the eld of research, which often exceed the expectations of the anthropologist. e

conclusion is that the eld is the stage of anthropological work capable of overcoming the

distanced notions that we have constructed throughout our research.

Keywords: Fieldwork. Ethnography. Palikur.

Notas

1 Importante destacar que os povos contactados pela cultura ocidental e por estes colonizados foram

inicialmente identicados pelo termo “primitivos”, no sentido de entendê-los como povos que es-

tavam situados no atraso social, de acordo com a hierarquia proposta pelo positivismo. Tal termo

foi utilizado por muito tempo como o mais adequado, inclusive dentro da antropologia, no entanto

atualmente não é o mais indicado para se referir a tais povos.

2 Utilizo o termo “tradições antropológicas centrais” emprestado de Roberto Cardoso de Oliveira

(1997) para indicar os centros “fundadores” da antropologia (Inglaterra, Estados Unidos e França), o

que contrasta com outras antropologias desenvolvidas no mundo, chamadas por Cardoso de Oliveira

de “periféricas”.

3 Os Palikur, habitantes da fronteira Brasil-Guiana Francesa, falam uma língua pertencente ao tronco

linguístico Aruaque, e estão localizados tanto no território francês, quanto no território brasileiro.

No lado brasileiro estão concentrados na Terra Indígena Uaçá, localizada no município de Oiapoque,

distante cerca de 600 quilômetros da capital Macapá, estado do Amapá. Organizam-se em onze

aldeias localizadas ao longo do médio e baixo rio Urukauá, auente do rio Uaçá.

4 Aldeia indígena Karipuna. É a maior aldeia dessa etnia na região do Oiapoque, com aproximadamente

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900 habitantes. Essa aldeia tem fácil acesso à cidade de Oiapoque pelo meio terrestre. Fica localizada

a 18 km da cidade e é referência para as demais aldeias Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur por

servir de porto para o trânsito desses indígenas que se locomovem de voadeira e estão em constante

contato com a cidade de Oiapoque.

5 Aldeia indígena Palikur. Está localizada, assim como a aldeia Manga, na região do Uaçá, no médio

rio Urucauá. É a principal aldeia dos Palikur, onde ca o Posto Indígena do Urucauá, duas escolas

e o posto de saúde. Também é a mais populosa aldeia Palikur do lado brasileiro, sendo habitada por

aproximadamente 800 pessoas.

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