O que a gestão comparada a administração

RAP RIO DE JANEIRO 42(1):61-82, JAN./FEV. 2008

ISSN

0034-7612

Administração pública comparada: uma avaliação

das reformas administrativas do Brasil, EUA e União

Européia*

José Matias-Pereira**

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. As bases teóricas do surgimento e desenvolvimento do

Estado-providência; 3. As molas impulsoras da nova administração pública; 4. Os

distintos modelos de reformas sociais da Europa; 5. Avaliando as reformas da gestão

pública: uma perspectiva internacional; 6. Formas de operacionalização das reformas;

7. O sistema de previdência social nos EUA; 8. As motivações da reforma da adminis-

tração pública em Portugal; 9. Experiência de redução da informalidade na Espanha;

10. Avanços e distorções na administração pública do Brasil; 11. Conclusões.

SUMMARY: 1. Introduction; 2. Theoretical framework of the emergence and develop-

ment of the providential state; 3. The driving force of the new public administration;

4. The different social reform models in Europe; 5. Assessing the public management

reforms: an international perspective; 6. Ways for implementing the reforms; 7. US

Social security system; 8. The motivation for the public administration reform in

Portugal; 9. The reduction of informality experience in Spain; 10. Advances and

distortions of the public administration in Brazil; 11. Conclusions.

PALAVRAS-CHAVE: administração pública; reforma administrativa; modelos compa-

rados (EUA, União Européia e Brasil).

KEY WORDS: public administration; administrative reform; compared models (USA,

European Union, and Brazil).

Este artigo aprofunda o debate, no âmbito da ciência da administração pública — sob

o enfoque da administração pública comparada —, sobre a evolução e os problemas

* Artigo recebido em nov. 2005 e aceito em set. 2006.

** Professor e pesquisador do programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade

de Brasília. Pós-doutor em administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabi-

lidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Doutor em ciência política — área de governo

e administração pública — pela Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade

Complutense de Madri, Espanha. Endereço: Campus da UnB, ICC Norte, Subsolo, Programa de

Pós-Graduação em Administração Campus da UnB, Asa Norte } CEP 70910-970, Brasília, DF,

Brasil. E-mail: .

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recentes na gestão da administração pública no Brasil, EUA e União Européia. A

análise revela que as reformas administrativas chegaram à maioria dos países do

mundo impelidas pelo Consenso de Washington. Distintos estudos constatam que, a

new public management (NPM — nova gestão pública) pode ter afetado muitos paí-

ses, mas o teria feito em alguns de forma mais profunda. Observa-se que, tanto no

Brasil quanto nos países selecionados, fortes elementos de continuidade podem ser

identificados, depois de mais de 20 anos de reforma, demonstrando que as reformas

colaboraram muito pouco em termos de estabilidade ou satisfação.

Comparative public administration: an assessment of the administrative reforms

in Brazil, USA and the European Union

This article deepens the discussion, within the public administration science and

from the comparative public administration perspective, about the recent evolution

and problems in the management of the public administration in Brazil, USA and

the European Union. The analysis reveals that administrative reforms have arrived to

most countries impelled by the Washington Consensus. Distinct studies evidence that

the New Public Management (NPM) may have affected many countries, but it had a

deeper effect in some than in others. Both in Brazil and in the selected countries in this

article strong elements of continuity can be identified after over 20 years of reform,

showing that the reforms have helped very little in terms of stability or satisfaction.

1. Introdução

A existência de uma profunda diversidade cultural, regimes políticos diferentes e

formações históricas específicas que existem de país para país imprime em cada

um deles uma feição única, o que explica as variações sobre os objetivos, estilos

administrativos, funções e papel da administração pública no mundo. Obser-

va-se que na administração empresarial busca-se de forma incessante modelos

considerados universalmente válidos, enquanto no estudo da administração

pública ocorre, em geral, uma perspectiva comparada. Desde o parlamentarismo

ao presidencialismo, dos modelos de funcionários de confiança aos modelos

de burocracia plena e permanente, culturas e sociedades diferentes propiciam

opções e estratégias institucionais diferenciadas de organização política e de

ação pública.

As reformas administrativas chegaram à maioria dos países do mundo

impelidas pelo Consenso de Washington. Nessa orientação, em especial para os

países em desenvolvimento latino-americanos, o Banco Mundial, em 1997, já

ressaltava a importância das capacidades burocráticas para o desenvolvimen-

to. A implantação dessas reformas foi realizada por etapas. Para a teoria da

path-dependent (dependência de caminhos), os processos passados tendem a

influenciar o presente. Assim, instituições herdadas condicionam fortemente os

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

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caminhos a serem tomados, determinando, inclusive, a persistência de arranjos

institucionais pouco eficientes.

O neo-institucionalismo, por sua vez, na busca de entender a coopera-

ção voluntária, afirma a importância das instituições para o funcionamento da

economia, visto que as imperfeições do mercado requerem o estabelecimento

de regras que organizem a ação coletiva. Para North (1991), as instituições são

definidas como regras, formais ou informais, idealizadas pelos homens para

criar ordem ou reduzir a incerteza nas trocas. Assim, instituições e organizações

— respectivamente, as regras do jogo e a divisão de tarefas entre os agentes

que participam — afetam o desempenho da economia à medida que, ao dar

forma e estruturar as interações humanas, reduzem as incertezas e induzem a

cooperação, diminuindo os custos das transações.

Tendo esse quadro como pano de fundo, aprofundamos neste artigo o

debate, no âmbito da ciência da administração pública, sob o enfoque da ad-

ministração pública comparada, a evolução e problemas recentes na gestão da

administração pública no Brasil, EUA e União Européia.

2. As bases teóricas do surgimento e desenvolvimento do

Estado-providência

O surgimento do Estado do bem-estar está relacionado a três elementos essen-

ciais: a existência de excedentes econômicos passíveis de serem realocados pelo

Estado para atender às necessidades sociais; o pensamento keynesiano, que

estruturou a sua base teórica; e a experiência de centralização governamental

durante a II Guerra Mundial, que fomentou o crescimento da capacidade ad-

ministrativa do Estado. Apoiado nesses elementos básicos foram desenvolvidas

distintas teorias para explicar o surgimento e o desenvolvimento do Estado de

bem-estar social. Destacam-se, entre elas, além da teoria neo-institucional, a

teoria da convergência ou lógica da industrialização; a teoria da cidadania; e,

a teoria marxista.

A partir dessas considerações, torna-se possível avançar, a seguir, nos

aspectos essenciais das reformas administrativas implementadas no mundo

contemporâneo, que chegaram à maioria dos países do mundo, especialmente

nos países em desenvolvimento, impelidas pelo Consenso de Washington. Nessa

orientação se ressaltava a importância das capacidades burocráticas para o de-

senvolvimento. Deve-se ressaltar que, sua implantação se realizou por etapas.

A pergunta inicial neste artigo é: quais foram os resultados das reformas

gerenciais no Brasil, nos EUA e na União Européia, partindo de uma perspectiva

comparada?

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Este artigo é qualitativo e essencialmente bibliográfico. Possui diversas

limitações. A principal é decorrente da amplitude e complexidade dos problemas

que nele são abordados e debatidos. Apesar disso, esperamos que as reflexões

e observações feitas encorajem a realização de outras discussões e avaliações

úteis, que não foram aqui tratadas.

A middle-range theory é o principal referencial teórico deste artigo, enten-

dida aqui como a “nova administração pública”. Registre-se que a middle-range

theory busca encontrar respostas para enfrentar as questões decorrentes das

profundas mudanças que afetam a administração no mundo contemporâneo.

Entre os autores que cuidam do tema administração pública comparada des-

tacamos os trabalhos de Dwivedi e Henderson (1990); Khator e Garcia-Zamor

(1994); Guess (1998); Welch e Wong (1998); Pollitt e Bouckaert (2000); e

Brans (2003).

3. As molas impulsoras da nova administração pública

Observa-se, tendo como divisor a década de 1980, que o mundo caminhou de

uma administração pública comparada clássica ou tradicional para uma nova

administração pública. Esta última, apoiada na denominada middle-range theory

foi estimulada pela necessidade de encontrar respostas para problemas como:

eficiência, eficácia, efetividade, legitimidade democrática, impacto das tecno-

logias da informação na administração, entre outros e por avanços em uma

série de disciplinas ligadas à teoria organizacional, ciência política e economia

(neo-institucionalismo e public choice). A partir dessas novas idéias procurou-se

abandonar a generalização e aproveitar o grande número de informação publi-

cada sobre a administração pública dos mais diferentes países no mundo.

A administração pública comparada deve ser entendida aqui como o do-

mínio do saber que compara padrões de administração pública entre diferentes

Estados-nação. Nesse sentido, busca estudar as semelhanças e diferenças entre

várias unidades de análise, nos níveis da organização, da gestão e da política

(no sentido dado ao termo anglo-saxônico policy), com o propósito de se criar

uma base de conhecimento institucionalizado que possa auxiliar a tomada de

decisão (Guess, 1998:535; Heredia e Schneider, 2003).

Observa-se que os teóricos da administração pública, no passado, se preo-

cupavam em focar os seus estudos nos fenômenos administrativos dentro do

seu próprio país, no quadro do seu sistema político-administrativo específico.

Esse contexto foi profundamente alterado com a globalização, que trouxe no

seu bojo uma maior discussão dos problemas administrativos e das soluções

encontradas, bem como uma ampla difusão dos estudos sobre o tema, em es-

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

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pecial, os relatórios e trabalhos elaborados pela OCDE, FMI, BIRD, American

Society for Public Administration e European Group for Public Administration.

A globalização fomentou as mudanças na teoria e na prática da administração

pública, abandonando as tendências paroquiais que têm permeado a ciência da

administração nos diferentes países (Khator e Garcia-Zamor, 1994:10).

Para alguns autores, como por exemplo, Caiden (1994:45), essa tendência

a olhar para outras realidades traz ainda vantagens científicas já que, ao se adotar

uma perspectiva comparativa e global, evita-se o erro de tecer generalizações

apenas com base no estudo de uma realidade administrativa restrita (a admi-

nistração pública dos EUA, por exemplo). Registre-se que existe uma tendência

de que os problemas que muitos países possuem são comuns aos demais, para

os quais também se poderão encontrar soluções semelhantes. Assim, despesa

pública elevada na economia, baixo nível de eficiência, eficácia e efetividade

na administração pública, o crescente nível de insatisfação dos cidadãos com

a qualidade dos serviços prestados pela administração pública, são problemas

inerentes a quase todos os países. Nesse sentido, a utilização do método compa-

rativo nos estudos que visam à resolução desses problemas poderá ser bastante

útil na busca de resolver esses problemas comuns.

4. Os distintos modelos de reformas sociais da Europa

O “modelo europeu” vem sofrendo significativos impactos provocados pelos

reflexos das mudanças implementadas na administração pública da Grã-Bre-

tanha, nos últimos 25 anos. A constatação de que o liberalismo anglo-saxão,

supostamente selvagem, está atropelando a civilizada economia européia é

bastante perceptível para uma boa parte dos estudiosos do tema.

Observa-se que os efeitos provocados pela economia moderna na Europa

são distintos do que ocorreu nos EUA. Se nos EUA os efeitos benéficos provo-

cados pelos imigrantes entusiasmados são evidentes, na Europa conviveu-se

com camponeses desconfiados. Após uma sucessão de catástrofes, os europeus

conseguiram alcançar um adequado equilíbrio entre esforço individual e res-

ponsabilidade coletiva depois da II Guerra Mundial. Todos os europeus ociden-

tais compartilham um compromisso em relação ao que é, em comparação com

padrões mundiais, um generoso Estado de bem-estar social.

Essas constatações não significam, por sua vez, que a Europa tenha um

único modelo de reformas sociais. Ao contrário, é perceptível que a Europa

convive com distintos modelos de reformas sociais. Sapir (2005), ao tratar desse

tema, ressalta que:

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1. O “modelo nórdico” (Dinamarca, Finlândia, Suécia e Holanda) tem os mais

elevados gastos públicos aplicados em proteção social e provisão de bem-estar

universal. Os mercados de trabalho são relativamente desregulamentados, mas

existem políticas “ativas” visando ao mercado de trabalho, enquanto sindicatos

fortes proporcionam um grau elevado de igualdade salarial.

2. O modelo “anglo-saxão” (Irlanda e Reino Unido) proporciona uma assistência

social de última instância bastante generosa, com transferências de dinheiro

destinadas principalmente a pessoas em idade economicamente ativa. Os sindi-

catos são frágeis e o mercado de trabalho é relativamente desregulamentado.

3. O “modelo renano” (Áustria, Bélgica, França, Alemanha e Luxemburgo)

baseia-se em seguro social para os desempregados e na provisão de aposen-

tadorias. A proteção ao emprego é mais forte do que nos países nórdicos. Os

sindicatos também são poderosos ou desfrutam de apoio legal para a extensão

de resultados de negociação coletiva.

4. O “modelo mediterrâneo” (Grécia, Itália, Portugal e Espanha) concentra gas-

tos públicos no pagamento de aposentadoria de idosos. Forte regulamentação

protege (e diminui) o emprego, ao passo que generoso apoio a aposentadorias

antecipadas busca reduzir o número de pessoas em busca de trabalho.

Essas distinções não são absolutas, mas a tipologia é reveladora. Os

países europeus adotam níveis elevados de proteção ao emprego (no modelo

mediterrâneo), e uma elevada cobertura de seguro-desemprego (nos modelos

anglo-saxão e nórdico), sendo o modelo renano um meio-termo. Em termos

comparativos, verificamos que a posição dos EUA é totalmente diferenciada em

relação a essas questões.

Numa avaliação preliminar, Sapir (2005) afirma que essas diferentes

políticas funcionam adequadamente na consecução de dois objetivos europeus

fundamentais: elevados níveis de emprego e eliminação da pobreza relativa. Ob-

serva-se que, em relação ao primeiro objetivo, o modelo nórdico e o anglo-saxão

podem ser bem avaliados. O desempenho dos modelos renano e mediterrâneo

apresenta um funcionamento precário. Quanto ao segundo objetivo, os modelos

renano e nórdico têm bom desempenho e os mediterrâneo e anglo-saxão fun-

cionam de forma insatisfatória. Para Sapir a principal razão para o desempenho

insatisfatório do modelo anglo-saxão na redução da pobreza não é a insuficiência

de redistribuição fiscal, mas padrões educacionais insatisfatórios na base.

O modelo nórdico é bom tanto para o emprego como para reduzir a po-

breza, e o modelo mediterrâneo é mau. Por outro lado, o modelo anglo-saxão

é bom para o emprego e mau para a redução da pobreza, ao passo que com

o modelo renano ocorre o contrário. Os modelos anglo-saxão e nórdico são

eficientes (pelo menos para o mercado de trabalho), ao passo que os modelos

renano e nórdico são igualitários.

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

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Os modelos ineficientes podem também ser insustentáveis. Nesse sentido,

argumenta o autor que os países renanos e mediterrâneos têm proporções mais

elevadas de dívida pública em relação ao PIB, de 73% e 81%, respectivamente,

contra 36% no grupo anglo-saxão e 49% entre os nórdicos.

Registre-se que a importância dos países renanos e mediterrâneos é

muito grande: eles geram dois terços do PIB de toda a União Européia (UE)

ampliada e 90% do PIB, em comparação com a zona do euro. Para Sapir, eles

deveriam tornar-se ou mais nórdicos ou mais anglo-saxões. A essência da

mudança estaria na eliminação da proteção explícita ao emprego. Proteção

rigorosa do emprego é particularmente inadequada em um período de rápi-

das mudanças econômicas, quando velhas funções e práticas tradicionais já

não predominam. É melhor promover a empregabilidade do que proteger o

emprego e, simultaneamente, proporcionar seguro contra o impacto de curto

prazo do desemprego.

Por sua vez, não existem dúvidas sobre o êxito dos países nórdicos. Mas

todos esses países (relativamente pequenos) têm populações com alto nível

de escolaridade e um comprometimento compartilhado com níveis excepcio-

nalmente elevados de bem-estar social provido pelo Estado. Na Dinamarca,

Finlândia e Suécia, a proporção de gastos públicos em relação ao PIB é supe-

rior a 50%.

Assim, em primeiro lugar, é perceptível que o modelo pode ser rele-

vante para a Alemanha ou para a França, mas sua aplicabilidade aos países

mediterrâneos é discutível. Em segundo lugar, o objetivo (implícito) dos

modelos de bem-estar social renano e mediterrâneo é proteger os empregos e

rendas dos chefes de família. O modelo anglo-saxão não alcança tal objetivo

devido a desigualdades de renda bastante maiores. As evidências indicam,

em terceiro lugar, que a UE é, em larga medida, irrelevante quanto a essas

decisões, porque a estrutura dos Estados de bem-estar social e as regula-

mentações dos mercados de trabalho continuam, em maioria esmagadora,

nas esferas nacionais.

Conclui-se, dessa forma, que a Europa tem modelos de política econô-

mica que parecem funcionar toleravelmente bem e oferecem algo bastante

distinto de “capitalismo selvagem”. Isso é significativamente verdadeiro para

o modelo nórdico. A questão é em que medida outros países europeus podem

adotar quaisquer das alternativas aparentemente superiores. Uma questão pa-

rece evidente, simplesmente opor resistência a mudanças é — dos pontos de

vista econômicos e político — uma atitude inadequada. Pode ser difícil para os

europeus aprenderem uns com os outros. Deixar de fazê-lo poderá revelar-se

ainda mais doloroso (Sapir, 2005).

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5. Avaliando as reformas da gestão pública: uma perspectiva

internacional

Para Pollitt e Bouckaert (2000), a tarefa de avaliar as reformas da gestão pública

numa perspectiva internacional é um exercício científico difícil e problemático.

Para os autores cinco problemas parecem emergir: a unidade de análise para

uma comparação internacional é menos óbvia do que parece. Níveis de governo

são diferentes de setores e de instrumentos e processos específicos. A unidade

de sentido é o segundo problema, pois pode ser que uma agência não seja

uma agência. A ausência e a qualidade dos dados, além das séries temporais

constituem outro conjunto de problemas. A multiplicidade de critérios para

se definir a reforma e a imponderabilidade da mudança é um outro problema

metodológico. Por fim, desenham um quadro rústico e classificam os esforços

de reforma em termos de quatro estratégias principais (quatro Ms): manter,

modernizar, “mercadificar” e minimizar.

Pollitt e Bouckaert (2001) argumentam que a intenção de avaliar as

reformas de gestão em todo o mundo é, por várias razões, uma tarefa quase

impossível. Para eles é compreensível que ela tenha sido tentada, por tão pou-

cas vezes, e geralmente por pessoas, como políticos, consultores em gestão e

gurus, que se sentem livres das inibições científicas da academia. Argumentam

que a simples frase “comparações internacionais” parece pressupor que Estados

nacionais sejam a unidade de análise mais apropriada para uma avaliação das

reformas de gestão pública.

No estudo que fizeram sobre 10 países, Pollitt e Bouckaert (2000) encon-

traram fortes evidências das diferenças nacionais. Constatam que a new public

management (NPM) pode ter afetado muitos países, mas alguns teriam sido afe-

tados de forma mais profunda. Observa-se que mesmo aqueles países que estão

bastante influenciados por ela tendem a adaptá-la de forma quase individual,

para produzir receitas nacionais diversas. Essas diferenças são preocupantes,

pois países distintos têm diferentes pontos de partida, com histórias diversas, e

seguem trajetórias distintas.

Uma maneira de classificar os esforços de reforma é pensar em termos

das quatro principais estratégias que qualquer um pode usar. Elas são:

Tmanter — conservar a máquina administrativa tal como ela é, mas ajustar e

equilibrar sempre que possível;

Tmodernizar — realizar as mudanças mais fundamentais nas estruturas e

processos, por exemplo, mudando a orientação do processo orçamentário de

insumo para produto; criando novos tipos de organização do setor público,

como agências autônomas; modificando o contrato de trabalho dos servidores

públicos etc.;

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Tmercantilizar — introduzir mecanismos de mercado (market-type mechanis-

ms — MTMs) no setor público, acreditando que eles vão gerar eficiência e

melhor desempenho (OCDE, 1993);

Tminimizar — reduzir o setor estatal tanto quanto possível, fazendo o máximo

uso da privatização e da contratação externa. Os ativos públicos são vendidos,

e as atividades anteriormente desempenhadas por servidores públicos são

oferecidas aos setores comerciais e voluntários.

6. Formas de operacionalização das reformas

Na Grã-Bretanha os governos conservadores dos anos 1990 introduziram um

“mercado interno” para o Serviço Nacional de Saúde, de modo que os hospitais

tivessem que competir pelos pacientes em termos de preço e qualidade dos

serviços. Dessa forma, as atividades continuam dentro do setor estatal, mas

as organizações estatais são obrigadas a se comportar cada vez mais como

empresas do setor privado. Essa estratégia reflete a atitude pessimista com

relação ao potencial do setor público para a boa gestão e a legitimidade da

propriedade estatal.

Em termos gerais, os países “anglo-saxões” (Austrália, Estados Unidos,

Nova Zelândia e Reino Unido) foram além desses parâmetros e de forma mais

rápida pelos dois últimos caminhos (mercantilizar e minimizar) do que a maioria

dos países da Europa continental.

Verifica-se que ambas as estratégias tendem a criar maior resistência por

parte das organizações do setor público e sindicatos. A mercantilização e a mini-

mização são mais radicais e mais conflituosas do que a manutenção e a moder-

nização. Os ganhos possíveis são divulgados — por seus proponentes — como

maiores, mas os riscos de fracasso e de resistência são significativamente altos. Os

países da Europa continental preferiram um impulso central rumo à modernização,

temperado com uma pitada ocasional de mercantilização e privatização.

As reformas não-estruturais do modelo de proteção social europeu

O modelo europeu de proteção social (Solorio, 1998), baseado em princípios

pregados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Associação

Internacional de Seguridade Social (AISS), preconiza as reformas não-estrutu-

rais que operam principalmente dentro dos sistemas gerais de seguridade social

dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

(OCDE).

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70 JOSÉ MATIAS-PEREIRA

Essas reformas não-estruturais baseiam-se em sete características prin-

cipais:

Tredução das prestações gerais ou específicas, como forma de compatibilizar

os custos crescentes com redução da relação de dependência. Em geral,

atingem as aposentadorias de mais altos valores;

Tmodificação na fórmula para o cálculo das prestações, geralmente aumen-

tando os anos necessários para a aposentadoria;

Taumento da idade de aposentadoria, em combinação com aposentadoria

parcial, antecipada;

Treajuste das prestações pelo índice do custo de vida ou outros índices;

Taumento das alíquotas de contribuição, geralmente de um modo progressivo;

Tigualdade de tratamento entre homens e mulheres;

Taumento dos regimes complementares nos sistemas de seguridade social.

As reformas, em geral, são implantadas progressivamente, em médio ou

no longo prazo (por exemplo, na Alemanha, o processo está previsto até 2030),

ou de modo consensual, com um pacto entre diversos setores sociais (por exem-

plo, na Espanha, o Pacto de Toledo). O esforço que vem sendo desenvolvido é

para manter o sistema de bem-estar social estabelecido na Europa desde o final

da II Guerra Mundial. A certeza é que terá que ser reformado pelas condições

impostas pela globalização e pelas tendências demográficas.

Avaliação da previdência social na União Européia

As projeções indicam que os países da Europa (UE), em 2030, contarão com

20 milhões de pessoas a menos na sua força de trabalho. Os cálculos atuariais

mostram que o sistema previdenciário, mantida essa tendência, não poderá

suportar os gastos decorrentes dessas mudanças demográficas. Para as autori-

dades da União Européia não existe alternativa: trabalhar até mais tarde, ou

redução no valor das aposentadorias. Será preciso, ainda, gerar estímulos para

aumentar a natalidade.

A Holanda, Áustria e Dinamarca reformaram seus sistemas de previdên-

cia, com corte de alguns benefícios, mas mantiveram os direitos fundamentais

e têm na atualidade taxas baixas de desemprego e déficit. Entre os 15 países-

membros mais antigos da UE, os gastos médios variam de 25% a 30% do PIB

com benefícios sociais. A preocupação é com a qualidade do gasto.

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

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Tabela 1

Perfil da população da União Européia — maiores de 60 anos

(países selecionados, 2002)

País % da população total

Itália 24,9

Áustria 21,5

Alemanha 24,2

França 20,6

Holanda 18,4

Fonte: Eurostat Yearbook, 2005.

Tabela 2

% de aposentados e pensionistas na população total

(países selecionados, 2002)

País Aposentados e pensionistas

Itália 28,4

Alemanha 27,5

Fonte: Eurostat Yearbook, 2005.

Tabela 3

Gastos com benefícios previdenciários

(União Européia e países selecionados, 2002)

País % PIB

Itália 14,9

Áustria 14,6

Alemanha 13,4

Holanda 13,1

UE 15 12,6

Fonte: Eurostat Yearbook, 2005.

Tabela 4

Participação das pensões/aposentadorias nos gastos totais com benefícios

sociais (União Européia e países selecionados, 2002)

País Participação %

Itália 59,5

Áustria 51,6

Alemanha 45,7

França 45,3

Holanda 48,9

UE 15 47,1

Fonte: Eurostat Yearbook, 2005.

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Tabela 5

Déficit público (União Européia e países selecionados, 2002)

País % PIB

Itália 3,2

Áustria 1,0

Alemanha 3,7

França 3,6

Holanda 2,1

UE 15 2,6

Fonte: Eurostat Yearbook, 2005.

7. O sistema de previdência social nos EUA

Nos EUA a “previdência social” é apenas um pilar do sistema de aposentadoria

de “três pilares”, os outros dois são as previdências fornecidas pelas empresas

e as poupanças privadas. A utilização do termo “previdência social” na maioria

dos países latino-americanos — bem como nos países europeus — tem uma co-

notação de assistência médica. Muitos sistemas de aposentadoria fora dos EUA

oferecem seguro-saúde nacional, pensões por invalidez e seguro-desemprego.

O trabalhador, nos EUA, aplica o seu dinheiro em um plano de previdência,

a empresa patrocinadora para qual ele trabalha costuma desenvolver o plano

e depois lhe dizer quais são suas opções de investimento. Nesse sentido, os

empregadores americanos assumem uma enorme responsabilidade ao traçar os

planos. É sabido que um sistema previdenciário bem estruturado deve ofertar

contas de baixo custo diversificadas e indexadas, além de uma administração

pouco dispendiosa. É a melhor proteção para o participante. A questão nos EUA,

em especial recentemente, tem sido como se proteger contra os denominados

“canalhas” do mercado.

8. As motivações da reforma da administração pública em Portugal

Portugal é um dos países da União Européia que aplica mais recursos na sua

administração pública, sem que sejam visíveis, em termos de eficiência e eficá-

cia, os resultados correspondentes. Apoiado nessa constatação é que o governo

português está propondo reformas na administração pública do país. A elabo-

ração de um diagnóstico recente foi o ponto de partida para a reforma que tem

de ser feita. Ele condensa o conjunto das grandes orientações que presidirão a

reforma da administração pública em Portugal.

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

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A reforma visa prestigiar a missão da administração pública e os seus

agentes, na busca da exigência e da excelência; delimitar as funções que o

Estado deve assumir diretamente, com vantagem para o cidadão; promover

a modernização dos organismos, qualificando e estimulando os funcionários,

inovando processos e introduzindo novas práticas de gestão; introduzir uma

nova idéia de avaliação dos desempenhos, seja dos serviços, seja dos funcio-

nários; apostar na formação e na valorização dos funcionários públicos. Em

síntese, o que se pretende é uma administração ao serviço do cidadão, uma

administração amiga da economia, uma administração motivadora de todos

quantos nela trabalham.

Portugal 2010: acelerar o crescimento da produtividade

em Portugal

O objetivo do estudo “Portugal 2010” foi identificar as principais barreiras à

produtividade com base em uma análise aprofundada de nove setores selecio-

nados. A principal barreira identificada é a da informalidade, descrita como o

não-cumprimento das obrigações por parte dos agentes econômicos. Ela repre-

senta perto de 28% do diferencial global de produtividade identificado como

“atacável”, produzindo impactos muito significativos não apenas ao nível de

setores não-transacionáveis como a construção civil, mas também em setores

transacionáveis como a indústria automobilística.

A informalidade deve ser entendida como o conjunto de distorções ao

enquadramento competitivo e empresarial da economia resultantes da evasão

por parte de empresas e agentes econômicos a um conjunto de obrigações.

Não se trata apenas da existência de fenômenos de “economia paralela”, mas

de um conjunto mais amplo de comportamentos freqüentemente verificados,

como os seguintes:

Tevasão fiscal, principalmente a impostos sobre o rendimento das empresas

e particulares (IRC e IRS) e ao imposto sobre o valor adicionado (IVA);

Tevasão a obrigações sociais, como o não-cumprimento dos pagamentos de-

vidos à Segurança Social ou o não-pagamento de níveis de salário mínimo;

Tevasão a normas de mercado, designadamente o não-cumprimento de exigên-

cias de níveis mínimos de qualidade dos produtos, de normas de segurança,

de restrições ambientais, de direitos de propriedade etc.

Esta barreira tem impactos profundos na economia, muito para além dos

habitualmente discutidos nas receitas do Estado e da Segurança Social:

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74 JOSÉ MATIAS-PEREIRA

Ttrabalho retido em atividades pouco produtivas. Agentes econômicos menos

eficientes detêm uma presença de mercado (quota de mercado) superior à que

obteriam se não se beneficiassem das vantagens de preço e margem permitidas

pela evasão fiscal e às obrigações sociais. Por exemplo, no setor do varejo

alimentar, os varejistas informais beneficiam-se de seis pontos percentuais

(cerca de 50% da margem) suplementares em termos de rentabilidade das

vendas face aos seus concorrentes formais;

Tmaior produtividade do trabalho, resultando da distorção no custo relativo

dos fatores (tornando-se o fator trabalho mais barato pela evasão às normas

laborais e aos compromissos de Segurança Social);

Tdistanciamento das melhores práticas domésticas e internacionais por receio

ou incapacidade de convivência dos agentes econômicos internacionais com as

práticas de informalidade e com a falta de transparência vigente no mercado.

Por exemplo, no setor da construção civil, os players internacionais detêm

uma quota de mercado residual, representando menos de 3% do total do

mercado;

Tdificuldade em estabelecer as condições e dimensões necessárias à inovação e

disseminação de melhores práticas, uma vez que os agentes informais evitam

o crescimento ou relacionamentos profundos com parceiros ou financiadores,

como forma de mais facilmente evitarem o escrutínio externo de práticas de

informalidade.

9. Experiência de redução da informalidade na Espanha

Na Espanha os níveis de informalidade eram significativamente elevados na

década de 1990. O governo espanhol desenvolveu um intenso programa de

redução da informalidade nas pequenas e médias empresas. Dessa forma con-

seguiu aumentar de 75% a 100% a arrecadação dos tributos dessas pequenas

e médias empresas.

A criação do programa integrado espanhol de combate à informalidade

teve como base o seguinte conjunto de iniciativas:

Tracionalização do sistema fiscal, mediante simplificação do Código Fiscal, fa-

cilitando a sua implementação e reduzindo os custos do seu cumprimento;

Treforço dos mecanismos de auditoria (fiscal, segurança social, laboral etc.),

assegurando a integração das fontes de informação, e automatizando os

processos de verificação e referenciação cruzada de dados;

Taplicação de penalidades acrescidas (monetárias e não-monetárias) nos casos

de evasão;

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Treforço da conscientização da opinião pública e empresarial para a impor-

tância do cumprimento;

Tredesenho organizativo da administração pública, com vista a uma maior

especialização e integração das atividades de fiscalização e prevenção, par-

ticularmente em setores com maior peso de informalidade.

10. Avanços e distorções na administração pública do Brasil

O processo de modernização da administração pública no Brasil, entre as décadas

de 1930 e 1990, seguiu alguns padrões, entre eles a fragmentação institucional

e a separação entre a formulação e a implementação política. A retórica da

reforma dos anos 1990 avançou do ponto de vista da utilização do conceito de

governança e dos princípios políticos que orientaram as propostas, quais sejam:

participação, accountability, controle social.

Apesar de ter ocorrido a transposição de técnicas de gestão do setor

privado para o setor público, a agenda mostrou-se bastante restrita, uma vez

que a lógica do processo decisório, que inclui formulação e implementação,

não foi objeto da reflexão política. A forma como a reforma foi idealizada e

conduzida mostrou-se falha, em especial pela insuficiência de mecanismos de

coordenação política. Isso contribuiu para manter a fragmentação de ações no

campo da gestão pública.

A reforma do Estado brasileiro deflagrada em 1995 teve como objetivo

— tendo parte integrante a reforma administrativa — manter equilibradas as

contas públicas e, ao mesmo tempo, elevar a capacidade da ação estatal. A refor-

ma propõe uma reconfiguração das estruturas estatais baseada na substituição

do modelo burocrático de administração pública por um modelo gerencial.

Por tratar-se de um modelo pós-burocrático, buscou importar ferramentas

de gestão provenientes do setor privado, bem como a aplicação da lógica de

mercado dentro do setor público, focalizando o aumento da eficiência econômica

do Estado. Em harmonia com as experiências internacionais que estavam em

curso, inicia-se, assim, um amplo processo de revisão das formas de prestação

dos serviços públicos no Brasil.

A reforma gerencial no Brasil, inspirada no gerencialismo britânico,

também recebeu influência dos princípios da new public management (NPM).

Assim, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, coordenado pelo

Ministério da Administração e Reforma do Estado (Brasil, 1995), fortemente

apoiado na new public management e na progressive governance, incorporou

muitos elementos do paradigma neodesenvolvimentista. A implantação da NPM

no Brasil procurou delinear um novo padrão de gestão pública, a denominada

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76 JOSÉ MATIAS-PEREIRA

“administração gerencial”, apoiada nos princípios da flexibilidade, ênfase em

resultados, foco no cliente e controle social.

Observa-se que no processo de transformação institucional no setor público

brasileiro, orientado nos últimos 15 anos, prevalece a visão do paradigma neoli-

beral, tendo como referência a preocupação com o “ajuste fiscal”. A face pouco

visível dessas recomendações é a geração de estímulos para promover o desman-

telamento do Estado brasileiro. Esse quadro evidencia, de forma preocupante, as

enormes dificuldades para encontrar novas alternativas e corrigir disfunções de

um Estado de direito inacabado. Esse Estado de direito, sobre o qual se erigiram

nossas instituições republicanas, federativas e democráticas, apresenta enormes

imperfeições estruturais, especialmente nos âmbitos da Justiça, das instituições

políticas, da forma e regime de governo, e em especial no campo social, onde não

tem sido capaz de reduzir as desigualdades e promover a inclusão social.

O efetivo exercício do poder no Brasil depende da capacidade do Poder

Executivo de propor e implementar uma agenda de governo. No Brasil a para-

lisia do Executivo — diferente do que ocorre no parlamentarismo tipicamente

europeu, no âmbito do qual a integração Executivo-Parlamento é patente; e di-

ferentemente do presidencialismo norte-americano, onde o Legislativo compete

com o Executivo na formulação e supervisão da implementação das políticas

públicas — conduz ao vácuo ou à predação política.

Na gestão pública, o país nunca chegou a ter um modelo de burocracia

pública consolidada. Constata-se a existência de um padrão híbrido de burocracia

patrimonial. Há uma trajetória de construção burocrática e outra de constru-

ção democrática, mas ambas parecem reciprocamente disfuncionais (Martins,

1997). É perceptível que o Estado patrimonialista está fortemente presente na

cultura política brasileira e se manifesta no clientelismo, no corporativismo, no

fisiologismo e na corrupção.

A crise da burocracia pública brasileira permeia as dimensões da estratégia

(foco e convergência de programas e ações), da estrutura (lenta, excessiva em alguns

setores, escassa em outros), dos processos (sujeitos às regras padronizadas altamente

burocratizadas), das pessoas (com inúmeras distorções relativas à distribuição, ca-

rência, qualificação e remuneração), dos recursos (inadequados, desde os logísticos

e instalações à tecnologia da informação, embora haja focos de excelência) e da

cultura (excessivamente burocrática e permeável às práticas patrimonialistas).

O processo de formulação e implementação de políticas públicas

A capacidade da administração pública de realizar e obter resultados em

benefício da sociedade depende, em geral, do modo como se encontra estru-

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turada. É sabido que a organização é o ponto de partida para o sucesso da

administração pública. Nesse esforço de se organizar está implícita a neces-

sidade de definir com clareza a dimensão, o papel e as funções do Estado.

Um Estado com dimensões excessivas e que interfere em todas as áreas tende

a não cumprir adequadamente as suas funções. Nesse contexto, um Estado

moderno é aquele que tem a capacidade de distinguir as funções essenciais

que somente cabe ao Estado executar, das funções acessórias, que podem ser

exercidas por outras entidades, sob a supervisão do Estado, bem como as fun-

ções inúteis que, como tal, não faz sentido nem têm razão de ser executadas

(Matias-Pereira, 2003).

Na análise de políticas de gestão pública é essencial levar em consi-

deração o exame do processo de formulação e de implementação de políti-

cas. Os aspectos que envolvem a fragmentação e a formação de consensos

para reformas da gestão pública tendem a conduzir à preocupação com a

racionalidade que permeia o processo de formulação e de implementação

de políticas.

Os temas que integram a agenda da gestão como, por exemplo, recursos

humanos, logística, planejamento e orçamento, são entendidos como de domínios

técnicos especializados. Essa especialização, por sua vez, vem sendo reproduzida

na definição de funções e na estrutura organizacional que apóia o processo de

decisão política nesse campo. É sabido que a especialização do conhecimento

não é obstáculo a uma ação articulada de diversos atores individuais, portadores

de conhecimentos especializados. Uma enorme rede de atores e de organizações

integra os esforços de implementação do processo de políticas. Isso é salutar no

âmbito da gestão pública, visto que a definição de problemas e as aplicações

de soluções resultam de uma ação coletiva. À medida que aumenta o número

de atores, maior será a complexidade do processo político e o desafio de coor-

denação das ações.

Observa-se que o tema “reforma da administração pública no Brasil” tem

estado presente, especialmente após 1995, nos debates e na agenda política

do país. Essas reformas, que deixaram muito a desejar, retomam com maior

intensidade na primeira década do século XXI, visto que uma nova sociedade

e uma nova economia exigem uma administração pública mais competitiva,

eficiente e transparente.

Tendo como base de apoio uma estrutura pesada, burocrática e centra-

lizada, a administração pública brasileira não tem sido capaz de responder,

como organização, às demandas e aos desafios da modernidade. As evidências

disponíveis sinalizam como resultado dessas deficiências e distorções:

Tuma reconhecida incapacidade de satisfazer, de forma eficaz e tempestiva,

as necessidades dos cidadãos;

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78 JOSÉ MATIAS-PEREIRA

Tuma forma de funcionamento que prejudica a concorrência e a competitivi-

dade internacional do país e das empresas;

Tfalta de coerência do modelo de organização global;

Tprocessos de decisão demasiado longos e complexos, que impedem a reso-

lução, em tempo útil, dos problemas dos cidadãos e que criam desconfiança

em matéria de transparência e de legalidade;

Tfalta de motivação dos funcionários e desvalorização do próprio conceito de

missão de serviço público.

Choque de gestão na administração pública: diagnóstico

É perceptível, na atualidade, que a intenção do governo federal de implementar

um novo processo de planejamento, com participação social, não conseguiu

atingir os seus propósitos de estimular a modernização da administração pú-

blica. Na medida em que essa modernização não se efetivou, e na tentativa de

retirar o governo da inércia instalada no governo federal — em grande parte

provocada por inúmeras denúncias de corrupção —, destaca-se a proposta de

realizar um choque de gestão na administração pública.

Por sua vez, observa-se que o governo federal encontra-se num dilema,

diante de suas próprias contradições e ineficiências. Tomar decisões corretas,

principalmente sobre assuntos técnicos, exige uma administração pública pro-

fissional. Os sinais de que isso não ocorre na atualidade está evidenciado em:

debates estéreis, criação sistemática de grupos de trabalho, conselhos e disputas

políticas localizadas, que são divulgados pela mídia diuturnamente. Evidencia-se

que a decisão do governo de nomear seletivamente os dirigentes sindicalistas

e os membros do Partido dos Trabalhadores para ocupar a maioria dos cargos

de direção na máquina pública do Estado — com 34 ministérios, 189 órgãos

da administração indireta, 11 agências e 11 bancos, e 1,8 milhão de servidores

civis e militares —, sem levar em consideração a competência técnica, foi uma

decisão política equivocada. É sabido que qualquer governo, para atender ade-

quadamente às demandas da sociedade, necessita contar com uma administração

pública profissional. Com a politização da administração pública direta e indireta

brasileira verifica-se que o desempenho governamental foi prejudicado.

As avaliações recentes sobre o desempenho da administração pública no

Brasil indicam que o ponto de estrangulamento do governo federal encontra-se

no campo operacional, visto que a administração pública para obter sucesso nas

suas políticas públicas depende da competência de seus funcionários. Programas

e projetos com deficiências de “gestão” tendem a dificultar o alcance dos objetivos

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das políticas públicas, além de propiciar a geração de corrupção. Um choque

de gestão na administração pública deve ter como propósito a modernização

do Estado, para torná-lo menos burocrático e mais competitivo. Por meio da

eficiência na administração dos recursos públicos, buscará o governo solucionar

um maior número de demandas da sociedade, que devem estar traduzidas nas

suas políticas públicas contidas no orçamento da União.

Assim, o propósito do governo federal de realizar um “choque de gestão”

em curto prazo não é uma medida factível. A complexidade e extensão de ações

que serão necessárias para viabilizar um projeto dessa envergadura, que necessita

ser discutido intensamente com a sociedade organizada, somente irão produzir

resultados em médio e longo prazos. Um choque de gestão no Brasil exige que

sejam reexaminadas as distorções provocadas pelos custos de uma carga tribu-

tária próxima de 40% do PIB — nos três níveis de governo: federal, estados e

municípios —, com baixo retorno dessa arrecadação para a sociedade. Exige,

também, que sejam adotadas medidas para reduzir as dificuldades na vida dos

cidadãos, com imposições burocráticas perversas e injustificadas.

A demora de quase seis meses para a abertura de uma empresa ou a

cobrança de 61 diferentes espécies de tributos — fatores que prejudicam o

funcionamento da economia — evidenciam que o Estado brasileiro não está

contribuindo de forma adequada para estimular o país a avançar rumo à moder-

nidade econômica. É irreal imaginar que um “choque de gestão”, apoiado apenas

na imposição de seletividade nos gastos públicos e na definição de metas fiscais

— como o aumento do superávit primário para 4,75% do PIB nos próximos três

anos —, será suficiente para viabilizar um programa de estabilização e cresci-

mento. Não se pode ignorar que a busca de um Estado moderno e inteligente,

menos burocrático e que incentive a competitividade, passa pela continuidade

da reforma do Estado, redução drástica da burocracia e realização de reformas

estruturais nos campos: tributário, previdenciário, judiciário e político, entre

outros. Essa é uma tarefa permanente, que perpassa vários governos.

11. Conclusões

Este artigo buscou responder a questão: quais foram os resultados das reformas geren-

ciais no Brasil, nos EUA e na União Européia, partindo de uma perspectiva comparada?

Existem evidências de que o modelo de reforma administrativa implementado nos

países selecionados neste artigo, sob a ótica neoliberal, não se mostrou capaz de

resolver adequadamente os problemas da administração pública.

A experiência da reforma administrativa que vem sendo implementada na

Grã-Bretanha mostra que a reforma naquele país não tem fim. Apesar da intensa

reforma gerencial realizada nas duas últimas décadas, os resultados não podem

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80 JOSÉ MATIAS-PEREIRA

ser aceitos como satisfatórios. Isso fica explícito nas declarações do governo traba-

lhista de Tony Blair, que tem sinalizado que é necessário mensurar mais, desenhar

melhor as metas, mais avaliação, mais tecnologia da informação, mais mudança

cultural para o servidor público (White Paper). Por sua vez, as inúmeras reformas

administrativas implementadas na França evidenciam que houve mudanças, mas os

elementos de continuidade, como a centralização dos grands corps e seu tipo parti-

cular de profissionalização tecnocrata, ou a força política dos sindicatos do serviço

público, continuam presentes. A mudança negociada, seja incremental ou gradual,

tem sido a norma na Alemanha, nos Países Baixos e nos Estados nórdicos.

Existem indícios de que a NPM, na prática, tenha sido prejudicada pelo

amadorismo dos seus proponentes no seu próprio campo de desempenho. Em

teoria, a NPM está totalmente ligada à melhoria do desempenho — fazer os

governos mais conscientes em relação a custos, eficientes, eficazes, compre-

ensivos, voltados à satisfação do cliente, flexíveis e transparentes. Na prática,

porém, os esforços orientados para mensurar se realmente houve melhoria no

desempenho ficaram muito abaixo do esperado. Isso pode ser constatado no

caso britânico, onde o governo não realizou diversas avaliações no conjunto de

reformas orientadas por desempenho.

Uma avaliação, sob um prisma mais amplo, evidencia que houve mudan-

ça estrutural e uma evolução cultural nos países que deram mais impulso às

idéias da NPM — Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Mesmo neles, fortes

elementos de continuidade podem ser identificados, depois de mais de 20 anos

de reforma, demonstrando que colaboraram muito pouco em termos de esta-

bilidade ou satisfação. A especulação sobre a existência de uma nova cultura

ainda não está comprovada.

No que se refere ao Brasil, podemos argumentar que o modelo de refor-

ma do Estado — dual e linear —, implementado sob a ótica neoliberal, não se

mostrou capaz de resolver adequadamente os problemas socioeconômicos do

país. Ficou evidenciado que, em geral, além da ausência de vontade política

dos governantes, as reformas — apoiadas em decisões pontuais e casuísticas

— se apresentaram desarticuladas e incoerentes. Os custos dessas distorções se

refletem na capacidade de competitividade do país, na vida dos cidadãos e na

motivação dos funcionários públicos.

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