Durante a revolta da vacina por que as pessoas

Durante o mês de novembro de 1904, o Rio de Janeiro, então capital federal, foi palco de uma das maiores revoltas urbanas ocorridas no país: a Revolta da Vacina. Milhares de habitantes tomaram as ruas da cidade em violentos conflitos com a polícia. O motivo era uma polêmica medida adotada pelo governo de então: a vacinação obrigatória.

Contando com uma população de mais de 800 mil habitantes, a cidade era constantemente vitimada por surtos de febre amarela, varíola, peste bubônica, malária, tifo e tuberculose. Na tentativa de pôr fim a esse triste quadro epidemiológico, o presidente Rodrigues Alves convocou o médico sanitarista Oswaldo Cruz, que, de imediato, pôs em marcha um ambicioso plano de saneamento e higienização da cidade. Seu projeto, porém, envolvia controvertidas medidas de controle da população e de seus hábitos de higiene.

Exército de mata-mosquitos

Por ter um caráter autoritário e invasivo, adentrando lares e desrespeitando privacidades, sobretudo da população mais pobre, a nova política sanitária foi alvo da mais hostil reação popular. Para o combate da febre amarela, organizou-se uma grande equipe de "mata-mosquitos", incumbida de perseguir os insetos nos lugares mais recônditos do Rio de Janeiro. Os funcionários tinham o poder de invadir as casas e quebrar a inviolabilidade dos lares cariocas.

Com a meta de controlar a peste bubônica, a prefeitura promoveu uma declarada guerra aos ratos na cidade. E chegou a comprar os animais mortos de quem se dispusesse a caçá-los. Aproveitadores e oportunistas não demoraram a entrar em ação. Há relatos de que moradores partiam de Niterói para vender roedores do outro lado da Baía de Guanabara. Além deles, havia os habituais esquadrões municipais, sempre truculentos, que invadiam cortiços, sobrados e casas de cômodos com a finalidade de exterminar aquela praga urbana.

A vacina e o "bota-abaixo"

No entanto, a medida sanitária mais polêmica foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola, o que descontentou grande parte da população. A obrigatoriedade da vacina era garantida por uma rede de compulsão social. A apresentação dos comprovantes de vacinação passaria a ser condição para matrículas em escolas, admissões em empresas e oficinas, casamentos e outras tantas atividades, de maneira que a vida social daquele que se recusasse a ser vacinado tornar-se-ia impossível.

Em paralelo, a tônica modernizadora da gestão do prefeito Pereira Passos já se fazia sentir desde 1903, quando da inauguração da avenida Passos. Em março de 1904, com a demolição de dezenas de casarões e sobrados, tiveram início as obras da avenida Central. Os objetivos de enquadrar a cidade nos preceitos recomendados pela higiene custaram a remoção de centenas de famílias pobres, transfigurando por completo a paisagem do centro. Essa política ficou popularmente conhecida como "bota abaixo". A vacinação obrigatória era, portanto, uma entre várias medidas que visavam disciplinar a população mais pobre, erradicando-a das áreas centrais.

Praças de guerra

Tão logo a nova lei foi anunciada, a insatisfação popular tomou forma de protesto. Os confrontos - que se iniciaram a partir da prisão de um estudante, numa manifestação no Largo de São Francisco - em pouco tempo se generalizaram, opondo os populares e as forças policiais. As cargas de cavalaria tentavam a todo custo conter a insatisfação dos amotinados, enquanto a massa popular não parava de crescer.

Em poucos dias, os conflitos atingiam diversos bairros pela cidade. As áreas compreendidas entre o Largo de São Francisco e a Praça Tiradentes converteram-se em verdadeiros campos de batalha. Barricadas eram erguidas na tentativa de conter as investidas da polícia. Muitas ruas tiveram seus calçamentos transformados em munição pelos populares que, escondidos por detrás dos bondes, alvejavam como podiam as forças policiais.

Lima Barreto

Em meio ao caos gerado pelos conflitos, as autoridades passaram a efetuar prisões de forma generalizada. Testemunha ocular das agitações que marcavam as ruas cariocas naquele tempo, o escritor Lima Barreto registrou em seu "Diário Íntimo" as inúmeras violências e arbitrariedades de que foram vítimas os populares revoltosos: "A polícia arrepanhava a torto e a direito pessoas que encontrava na rua. Recolhia-as às delegacias, depois juntavam na Polícia Central. Aí, violentamente, humilhantemente, arrebentava-lhes os cós das calças e as empurrava num grande pátio. Juntadas que fossem algumas dezenas, remetia-as à Ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedadamente".

Em 16 de novembro de 1904 a revolta foi sufocada pela polícia. O saldo da agitação que sacudiu as ruas do Rio de Janeiro foi trágico. Cerca de 110 feridos e 30 pessoas mortas. A ação policial resultou na prisão de 945 pessoas, das quais 461 foram deportadas para o Acre.

Truculência do poder público

Num regime republicano recém instaurado, onde a participação política da maior parte da população era nula, o levante representou uma reação legítima frente ao tratamento autoritário que o governo dispensava ao povo. Mais que um levante dos cariocas contra as medidas sanitárias do Estado, a Revolta da Vacina simboliza a resistência popular frente à truculência que historicamente permeia o contato do poder público com o povo. Anos mais tarde, o político paulista Washington Luís diria que no Brasil "a questão social é questão de polícia", reforçando a ideia de que a força e a arbitrariedade são os mecanismos corretos para conter os anseios populares.

A vacinação, em suma, foi mais uma medida para disciplinar a população pobre, vista sempre como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento. Sua revolta representou o protesto ampliado contra o projeto de modernização excludente que estava em marcha naquele momento.

Para enfrentar a pandemia da COVID-19, muitos governos e cientistas apostam no desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz contra o novo coronavírus (SAR-CoV-2). Na história brasileira, o país também já precisou recorrer, em outros momentos, a campanhas de vacinação em massa para controlar doenças epidêmicas, como a varíola, em 1904. Por uma série de conflitos e falta de diálogo, a vacinação contra a doença acabou por desencadear a Revolta da Vacina, na cidade do Rio de Janeiro.  

Antes de explorar os acontecimentos que levaram até a Revolta da Vacina, é importante entender o que vem a ser a varíola, uma doença que já é considerada como erradicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde os anos 1980, mas foi responsável pela morte de milhões de pessoas em todo o mundo.

Durante a revolta da vacina por que as pessoas
A Revolta da Vacina teve como principais motivos a vacinação contra a varíola (Imagem: Reprodução/ Wellcome Library London/ Wikipédia)

O que é varíola?

A varíola é causada pelo vírus Orthopoxvirus variolae, podendo se desenvolver em dois tipos, sendo um deles o mais fatal. Em geral, os sintomas iniciais da doença não parecem sérios e são similares aos de uma gripe. Isso porque incluem febre, dor de cabeça, mal-estar e dores musculares, por exemplo.

O problema começa a surgir depois, quando o vírus está se espalhando pelo corpo através do sistema linfático. Nesse momento, surgem manchas avermelhadas por toda parte do corpo do paciente. Por sua vez, essas manchas evoluem para pústulas e bolhas, como bexigas, repletas de pus por todo o corpo. Nem mesmo a mucosa nasal e da boca estão livres dessas formações que podem deixar marcas permanentes no corpo.

Durante a revolta da vacina por que as pessoas
Para conter a varíola, governo impôs vacinação obrigatória (Imagem: Reprodução/ JA Philip/ Wikipédia)

A origem desse vírus segue indeterminada, mas relatos históricos contam que a infecção acompanhou a população mundial durante muitos séculos, desde antes da era cristã, a partir de relatos da Ásia e da África sobre esse vírus mortal. Por esse motivo, a bexiga e soluções para essa enfermidade foram muito discutidas ao longo da história. 

No Brasil, a primeira vacina foi trazida, em 1804, pelo Marquês de Barbacena. Durante todo o século XIX, o governo se esforçou, em alguma medida, para ampliar o uso da vacina contra a varíola, de origem animal, mas sem avanços significativos no controle nacional da doença.  

Afinal, o que foi a Revolta da Vacina?

No combate à varíola, a vacinação era considerada obrigatória para crianças, em 1837, e para adultos, em 1846, no país. Só que as resoluções nunca foram cumpridas, já que produção do imunizante não era feita em escala industrial e, por isso, não estavam disponíveis para todos.

Até que, em 1904, o médico sanitarista Oswaldo Cruz — em sua homenagem, hoje, há o instituto de mesmo nome, que é popularmente conhecido como Fiocruz — incentivou o governo do Rio de janeiro a enviar um projeto ao Congresso que fizesse cumprir a obrigatoriedade da vacinação. Em 31 de outubro, o Congresso aprovava, enfim, uma lei tornando obrigatória a vacinação contra a varíola. De 10 a 16 de novembro daquele ano, aconteceu na cidade uma revolta popular contra medidas que visavam erradicar a doença viral.

"Sobretudo a população pobre dos arredores da capital reagia à vacinação obrigatória contra a varíola, operação liderada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. A manifestação era resultado da má informação, mas também da mistura apressada de tantas levas populacionais — com histórias, costumes e aprendizados distintos. A incompreensão de parte a parte provocou uma verdadeira explosão, com direito a quebra de meios de transporte, depredação de edifícios e ataque a agentes higienistas", explicam as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, no livro Brasil: uma biografia.

Durante a revolta da vacina por que as pessoas
Na Revolta da Vacina, a cidade do Rio de Janeiro entrou em colapso por causa da vacinação obrigatória (Imagem: Reprodução/ Wikipédia)

Na época, as camadas mais populares se recusavam a receber o imunizante — e ainda circulava um boato de que quem se vacinasse ficaria com feições bovinas. Como parte da campanha, casas foram invadidas para a vacinação obrigatória. Outra polêmica era a necessidade de as mulheres terem que mostrar o braço para as autoridades de saúde na hora da vacinação.

Inclusive, na instabilidade política causada pela revolta, houve a tentativa de um golpe de Estado para depor o presidente Rodrigues Alves. Diante das ameaças, "o governo reagiu com violência: decretou estado de sítio, suspendeu direitos constitucionais, prendeu os líderes dos movimentos sociais e os deportou para o atual estado do Acre", afirmam as historiadoras. No total, foram trinta o número de mortos durante a rebelião e 110 registros de feridos. E cidade viveu em colapso pelo tempo em que a medida vigorou. Entretanto, as autoridades precisaram retroceder com a medida da maneira com a qual foi imposta.

Uma curiosidade é que o sanitarista Oswaldo Cruz foi muito importante para que o Brasil conseguisse enfrentar outras duas doenças epidêmicas, além da varíola, que foram a peste bubônica e a febre amarela. Para controlar a peste, causada por uma bactéria e muito transmitida por pulgas contaminadas, o médico chegou a oferecer 300 reis por ratos e, assim, reduziu de forma efetiva a proliferação da doença em portos, como o do Rio de Janeiro. 

Revolta da Vacina e a COVID-19

Mesmo que o Brasil de 1904 e o de 2020 tenham semelhanças, o país não enfrenta um cenário parecido entre as epidemias. Isso porque, diferente da varíola, ainda não contamos com uma vacina eficaz e segura contra a COVID-19. No momento, laboratórios e farmacêuticas trabalham na terceira e última etapa no desenvolvimento de um imunizante eficaz contra o coronavírus. Como ainda se fala de aprovação, é impensável ter uma vacina contra a COVID-19 disponível para toda a população brasileira, o que inviabiliza a obrigatoriedade.   

Por outro lado, hoje, algumas vacinas já são obrigatórias para parte da população brasileira, com base na legislação nacional. No entanto, não se usa força policial e nem o risco de prisões para se impor decretos que visam proteger a saúde pública. Há outros meios para se promover a vacinação, principalmente, a partir do diálogo.