MÍNIMA MORALIA Ari Fernando Maia Depto. de Psicologia - UNESP - Bauru O artigo reflete sobre os conceitos de ética e de individualidade a partir da Mínima Moralia de T. W. Adorno para pensar as dimensões ética e normativa da Psicologia. Para isso recupera alguns elementos históricos do conceito de ética segundo Aristóteles, Hobbes, Rousseau e Kant para esclarecer a reflexão adorniana. A partir desta faz-se uma crítica as noções de individualidade e de autonomia no âmbito da Psicologia. Descritores: Ética. Individualidade. Razão. Psicologia. Psicanálise. Capitalismo. Adorno, Theodor Wiesengrund, 1903-1969. 1. Introdução Refletir sobre a vida quando a vida se arrasta, danificada, como apêndice do capital. Olhar para dentro e para além da configuração alienada do sujeito atual que o reduz a uma condição desumana. Resgatar a vida onde ainda ela é possível- na consciência, no "eu" que pode utilizar a razão para resistir ao mundo, atentando para as contradições dessa razão e de sua própria condição. Contra os apologistas do fim da história ou para aqueles que descobriram que o mundo é complexo há pouco, o texto Mínima Moralia de Adorno (1993) oferece desafio, incômodo e esclarecimento. O subtítulo não deixa dúvidas: reflexões a partir da vida danificada. É a partir dela, mas para além dela, que nos fala o autor. Escrito entre 1944 e 1947, portanto sob o impacto da guerra, o texto continua sendo uma obra crítica importante. A Teoria Crítica construída por Adorno fez uma leitura da realidade que continua atual, pois pode-se entender que os elementos principais que foram alvo de sua crítica permanecem presentes atualmente: o capital monopolista radicalizou os monopólios instituindo um "capital financeiro" internacional, que viaja de país em país gerando riqueza - para alguns - ou miséria - para muitos - quase instantâneas, instituindo o "neo" liberalismo; a indústria cultural aumentou ainda mais seu poder, pois não há casa em que não haja um aparelho de televisão ou um computador em que o sujeito não possa "navegar" pela internet; os sujeitos continuam sendo apêndices da maquinaria, cada vez mais parecidos com ela, e no entanto "felizes" com a instituição de "reengenharias" e dinâmicas de grupo, ajudados pela Psicologia ou por "metafísicas" ocultistas. Esses e outros temas permanecem na ordem do dia, e o texto faz uma crítica aguda à situação do sujeito contemporâneo. A "triste ciência" que é o objeto das reflexões é a "doutrina da vida reta", isto é, a vida segundo a virtude, a vida feliz orientada pela ética. Mas esta é uma ciência da práxis e isso significa que o agir ético é algo que diz respeito a um indivíduo autônomo, pois somente a este é facultado realizar conscientemente uma atividade cujo fim é imanente à própria ação, à sua própria vida e que a projeta para algo além dela e que lhe dá sentido. Mesmo a teoria, que atualmente é quase que o último refúgio da práxis, encontra-se sujeita às mutilações decorrentes da alienação objetiva do sujeito. No mundo do capital, a vida adquire um caráter pálido, prejudicado, ou como afirma Adorno (l993):
Não se trata de um indivíduo vazio, mas de um indivíduo preenchido pelo todo, pela sociedade, de um modo que o impede de se dar conta de sua heteronomia e, o que talvez seja pior, reforça nele sua ilusão de identidade consigo mesmo. Quanto menos se comporta como indivíduo, mais aparece como indivíduo. Por isso o autor avança para além da aparência, demonstrando a determinação da sociedade alienada em suas mais inusitadas ações. Esse tema é de fundamental importância para todas as ciências, em especial para a Psicologia pois, de um modo geral, podemos considerar o indivíduo como o seu objeto de estudo. Uma ciência que não reflete sobre sua prática, seus fundamentos, sua história, seu caráter ético - ou anti-ético -, e sobre a natureza de seu objeto ou perde o bonde da história ou, de má-fé, não é nada mais que ideologia a serviço da justificação da ordem existente. Esse texto não tem a pretensão de realizar uma análise pormenorizada da reflexão adorniana. Procurou-se refletir, a partir do texto de Adorno, sobre dois conceitos: Ética e Individualidade, e assim lançar algumas luzes sobre uma ciência - A Psicologia - a partir dessa reflexão. 2. Alguns elementos sobre Ética Está além do alcance deste texto rever historicamente o conceito de Ética. No entanto, alguns elementos são importantes para a própria compreensão da crítica adorniana e também para servir de base a algumas análises. O conceito surge na antiguidade clássica, entre os gregos, a partir do momento em que as questões socráticas colocam em pauta a natureza do bem e da virtude, e assim questionam o ethos. Mas talvez seja com Aristóteles que o conceito adquire uma importância central para a reflexão filosófica. Aristóteles inicia seu texto Ética a Nicômaco afirmando que todas as ações humanas visam a um bem e em seguida lança uma questão: "... que bem é aquele a que todas as coisas visam?" (p.118). A respeito desse bem, afirma que é objeto da "ciência política", pois é ela que legisla sobre o que se deve fazer ou não, e sua finalidade inclui a finalidade das outras ciências, que é o bem do homem. Este, finalmente, segundo Aristóteles, "equivale a ser feliz." (p.120). Mas há divergências sobre o que se considera ser o bem. Para resolver essa questão, Aristóteles afirma que há bens que não são fins em si mesmos, mas apenas meios para atingir outros bens, instrumentos para preservar nossa vida, por exemplo. Qual seria, então o bem supremo? Segundo o filosofo:
A felicidade está ligada à atividade humana, isto é, ela mesma é um tipo de atividade em conformidade com a "razão reta" e com a virtude (areté). A razão é "razão reta" quando lida com questões em que há a possibilidade de escolha: a razão nesse contexto se converte numa capacidade de deliberar, de escolher. É portanto uma razão prática no sentido de que diz respeito aos assuntos humanos na polis, em contraposição à razão teórica, voltada para a compreensão dos seres ou fatos que existem independentemente da vida política. Mas o saber prático pode ainda ser técnico (poiesis) ou práxis. Dizer que a ética refere-se à práxis significa que o sujeito que pensa e age, a ação praticada e a finalidade do agir (telos) são inseparáveis. Nesse sentido, a escolha é feita numa ação do sujeito e a virtude seria uma força do caráter que implica a consciência do bem e uma conduta condizente com esse conhecimento, isto é, implica que a vontade seja guiada pela razão. A conduta ética afirma, assim, a independência e a autodeterminação do sujeito face à vontade alheia e às suas próprias paixões. Entregar-se a outrem para satisfazer seus desejos é ignóbil, assim como entregar-se a suas próprias paixões, pois nesses casos o sujeito não escolhe autonomamente. A razão reta guia a excelência moral e esta é uma disposição para escolher o meio termo adquirida, tal qual a aprendizagem de uma arte, pela repetição dos atos em conformidade com ela. A virtude, portanto, é uma força de caráter, pois é a vontade "treinada", pela mediação da razão, para a conduta virtuosa. Podemos então, sumariamente, destacar alguns elementos: a vida virtuosa é racional, implica a educação da vontade em conformidade com os princípios racionais da moderação e, finalmente, está fundamentalmente ligada à política, uma vez que o homem é definido como animal político e sua conduta ética tem expressão na polis e a partir dela é julgada. É na sociedade - na polis - que os homens podem alcançar o bem supremo: a felicidade. Ética e política são inseparáveis. Esse entrelaçamento entre ética e política é sumariamente rompido no século XVII, e a obra de Thomas Hobbes dá um testemunho eloqüente desse rompimento. Sua concepção mecanicista do homem e da natureza coloca a ética, dentro de um quadro geral das ciências, como um ramo da Física que estudaria as "Conseqüências das paixões dos homens." (Hobbes, 1997, p.82). Os homens são concebidos como corpos em entrechoque, submetidos ao mesmo determinismo mecânico a que estão sujeitos os animais. A medida para a ação "política" dos homens é o estado de natureza, que caracteriza o homem antes de seu ingresso no estado social. No estado de natureza todos os homens são iguais quanto às suas capacidades do corpo ou do espírito. Além disso, "da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins." (Hobbes, 1997, p.108). A conseqüência dessa igualdade de forças é que, se dois homens desejam a mesma coisa, tornam-se inimigos, e para alcançar seu intento, "que é principalmente sua própria conservação." (Hobbes, 1997, p.108), tentam destruir ou subjugar um ao outro. Essa situação não deriva do estado social do homem, mas é sua condição natural! Destruir e subjugar tanto quanto necessário para garantir a própria vida não é mais do que uma exigência da própria autoconservação. Como dar conta de tal situação? Segundo Hobbes, a esta miserável condição a que estão submetidos os homens - por obra de sua própria natureza - pode-se escapar, com ajuda da razão e das paixões - principalmente do medo -, através da criação de um "contrato" que institua um poder superior, baseado nas "leis naturais", e que regule suas ações. Hobbes entende por leis naturais um preceito ou regra geral estabelecido pela razão que proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou ainda omitir o que ele julgue melhor contribuir para preservá-la. Isso porque Hobbes entende por liberdade, simplesmente, a ausência de impedimentos externos. Nessas condições, ainda segundo Hobbes (1997):
Mas, como em tal condição não é possível haver segurança ou garantia de conservação da vida, é um preceito ou regra geral que todo homem deve se esforçar pela paz e, caso não a consiga, pode e deve utilizar-se do "recurso" da guerra. Assim, Hobbes propõe algumas leis naturais necessárias para a existência da sociedade: a primeira lei natural é que os homens procurem a paz e a sigam e ainda que, por todos os meios possíveis, os homens garantam sua autoconservação. A segunda lei é que os homens concordem, em favor da paz e da autoconservação, em renunciar a seu direito a todas as coisas, "contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo." (Hobbes, 1997, p.114). Assim os homens, por medo e pela razão, instituem contratos, isto é, transferem mutuamente direitos - pois não há nada a que, em sua condição natural, um homem não tenha direito - criando vínculos diante dos quais ficam, a partir de então, obrigados. Essa descrição sumária de alguns elementos da filosofia hobbesiana já permite um breve confronto com Aristóteles, em termos de sua concepção de ética e de indivíduo, e também da relação da ética com a política que espelha a época e o modo de produção emergente. Para Aristóteles, o homem poderia ser caracterizado como "animal político", e sua conduta ética diria respeito a suas relações sociais na polis, mediada pela razão na constituição de uma educação da vontade, visando a ação virtuosa e assim à felicidade. Para Hobbes, o homem não é um ser político. Ao contrário, sua condição natural é de "animal de horda", em uma luta que é a guerra de todos contra todos. Nessas condições, a razão é meramente um artifício da autoconservação e esta é o objetivo do contrato social. A "filosofia moral" é a ciência das leis da natureza e, segundo Hobbes (1997), "... não é mais do que a ciência do que é bom e mau, na conservação e na sociedade humana." (p.132). Para Aristóteles, o indivíduo é "governado" pela polis, ao mesmo tempo em que, como cidadão livre, constrói a polis. Paralelamente é ela que julga suas ações e, além disso, o ethos que dela emana é a base da razão. Por isso, a ética é fundamentalmente política. Para Hobbes, o direito ilimitado garante a existência de indivíduos "egoístas"; a sociedade não é parte da natureza do homem, e só com custo os homens se suportam uns aos outros. A razão e a ética migram da polis para a intimidade egoísta dos sujeitos. Aristóteles representa o auge da cultura helênica, constituída sobre a base da polis; Hobbes prepara a ética burguesa na medida em que o indivíduo deve buscar sua própria conservação, por si mesmo e para si mesmo. Além disso, o que para Aristóteles era considerado híbris, a entrega de si a outrem, a heteronomia, em Hobbes é simplesmente uma condição natural: se todos tem direito a tudo, para que não haja guerra é preciso ceder direitos ao outro, e essa cessão inclui "os corpos dos outros". A alienação do sujeito passa a fazer parte da ética como um princípio desta! Dado que esta é uma condição natural, não há nada a fazer a respeito. Mas se é um erro tomar a "guerra de todos contra todos" como uma condição natural, é preciso dizer que Hobbes acerta na medida em que a esta condição estão submetidos todos os homens a partir do momento em que o capital se instala como modo de produção predominante. A razão calculadora voltada para a autoconservação é uma exigência lógica para aqueles que querem sobreviver na "economia de mercado". A atualidade de Hobbes se deve à visão aguda das características do sujeito adequado ao capital e de como são mobilizadas suas paixões para mantê-lo submetido. Esse sujeito vai ser, um pouco mais tarde, posto literalmente a nu pelo Marquês de Sade que, como Hobbes, não tinha ilusões. Segundo Adorno e Horkheimer (199l): "A obra do Marquês de Sade mostra o "entendimento sem a direção de outrem", isto é, o sujeito burguês liberto de toda tutela." (p.83). A razão sadiana é maquinadora e totalitária, e expressa, como na obra de Hobbes, a qualidade da constituição social do sujeito moral. Os heróis sadianos procedem com precisão científica a utilização de seus objetos numa atividade ordenada em que "... nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inativa." (p.87). A linha de produção e a indústria cultural em nossos dias cumprem a função de habituar os indivíduos a esta lógica sádica, que eles, sem atinarem, aplicam a si mesmos e a outrem. Mas a responsabilização da natureza agressiva do homem pelos males a que está submetido não é consensual. Contra as idéias de Hobbes, mas também preparando terreno para o mundo burguês, Rousseau afirma que os homens não são "naturalmente" maus. A piedade, definida como "uma repugnância inata ao ver sofrer seu semelhante" (Rousseau, 1989, p.74), é um dom natural nos indivíduos, e estes só parecem ser agressivos porque esses dons naturais foram pervertidos pela sociedade quando esta criou a propriedade privada. A possibilidade de uma ação ética não teria como fonte a razão, pois esta é justamente a responsável pela sociedade, pela noção de propriedade e, portanto, pelos males do mundo. Além disso, é dela que provém o "individualismo" identificado por Rousseau (1989) como uma impossibilidade de identificação com o ser que sofre, de comiseração. Nas palavras do filósofo genebrino:
A ação ética seria individual, na medida em que a compaixão e a bondade são características naturais do indivíduo. A ética é uma ética do coração! É Kant quem recupera a razão como elemento fundamental da conduta ética. Ele recupera a questão da autonomia ou da heteronomia da ação ética. Respondendo a Hobbes, Kant parte da seguinte questão: se o homem é um ser da natureza guiado por instintos, então não é dotado de liberdade, não tendo, portanto, leis próprias no agir. Mas Kant argumenta que a vontade humana está determinada pelas leis humanas e por isso consegue se lançar para além dos determinantes naturais e biológicos. O homem é um ser biológico mas, sendo humano, está lançado para além de sua condição meramente biológica. Se a vontade é livre e autônoma, então o ser humano é um ser moral e político. Para chegar a essa conclusão o filósofo parte de duas distinções: entre a razão pura e a razão prática e entre a ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade. As duas primeiras estão ligadas à condição natural do homem. Mas o homem é um ser da natureza e também um ser da liberdade, um ser político. A razão prática, como reino da liberdade no qual os homens podem criar normas, é de onde emana a ética. Os homens, através da razão prática, criam normas morais e as impõem a si mesmos e, portanto, devem obedecer a essas normas. Mas os homens são também seres naturais, que tem apetites e desejos que os levam a agir em causa própria e a utilizar a outrem como objeto. Cabe à razão prática dominar esses impulsos e, nesse processo, o indivíduo torna-se autônomo na medida em que pode seguir essa lei moral interior e dominar sua vontade. À lei moral racional, em sua forma perfeita, Kant chamou "imperativo categórico", e este pode ser resumido na afirmação: "Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal". Através do imperativo como forma última da lei moral o indivíduo torna-se autônomo, na medida em que compreende racionalmente a norma, e está para além da natureza, pois tem domínio sobre seus apetites. Kant recupera a noção de racionalidade da conduta ética e também a noção de autonomia do sujeito. Assim, de outro modo, ele também contribui, ao afirmar a possibilidade de autonomia do sujeito - sem considerar as condições objetivas - e a comunhão entre seus interesses e os interesses da sociedade através da razão, para a constituição de uma idéia de indivíduo condizente com o mundo burguês. Segundo Adorno e Horkheimer (199l), os conceitos kantianos são ambíguos, isto é, expressam uma contradição dada para o indivíduo burguês. Para os autores:
As verdadeiras razões da ação do sujeito lhe permanecem ocultas. Elas apontam para as condições materiais da existência desses sujeitos, submetidos a elas. Nessas condições o a priori oferecido pelo aparelho conceitual internalizado pelo sujeito já lhe tolhe a experiência do mundo, tornando-a uma experiência técnica. A respeito da constituição do sujeito burguês Horkheimer (1990) afirma:
A vontade dirigida para o bem não é possível, pois já é preformada, dirigida para a propriedade. Não há, dentro dessas condições que se formaram historicamente, condições para uma autonomia nos termos imaginados por Kant. Pois o indivíduo é heteronomamente condicionado mesmo quando acredita estar agindo por sua própria vontade, e a direção de suas ações é contrária aos seus interesses, na medida em que o capital reduz os indivíduos em sociedade ao que Hobbes descreveu: a guerra de todos contra todos. Ainda sobre essa questão, Horkheimer (1990) afirma:
A vida "cega e acidental" bloqueia a possibilidade da ação política como ação coletiva, assim como impede ao pensamento ir além dos limites postos ao sujeito pela sua própria constituição como indivíduo. Também a reflexão sobre a práxis que tinha lugar na filosofia foi abandonada como especulativa, em favor da ciência baseada nos fatos, espelhando a economia de mercado. Evidentemente, todo fato já é mediado pela experiência do sujeito, mas a intenção de ater-se a eles de forma "pura" já é um índice da impossibilidade da experiência. Nesse sentido, Kant ainda leva vantagem sobre nossos tempos. Segundo Adorno e Horkheimer (199l):
Como pode existir um sujeito moral dentro dessas condições, que por sinal persistem e se radicalizam atualmente? Uma vez que a autonomia seja somente uma ilusão para o sujeito e a razão se perverteu em uma razão instrumental, como se pode falar em ética ou em conduta moral? Se não há mais o indivíduo autônomo deve-se então descartar a ética em favor da "ciência"? E as ciências que tentam dar conta do indivíduo, como podem se pautar eticamente dada essa realidade? Bem, essas questões não deixam de ser importantes, embora não se tenha a pretensão de respondê-las todas. É necessário, no entanto, ressaltar que a conduta ética permanece sendo uma questão essencial, nem que seja como negatividade. Novamente a afirmação de Horkheimer (1990) ilustra o que se quer dizer: "... a moral não é de modo algum descartada do materialismo como sendo mera ideologia, no sentido de falsa consciência. É tida como um fenômeno humano, que não pode ser dominado enquanto durar a era burguesa." (p.65). Se a era burguesa confinou o indivíduo nos estreitos limites de sua própria interioridade e constitui esta segundo seus ditames, ao contrário do que pode parecer, a reflexão sobre a moral é mais urgente do que nunca, pois torna-se imperativo resistir a essa ordem de coisas que, no fim das contas, impede a plena realização do indivíduo como ser autônomo. A análise de alguns elementos da Mínima Moralia (Adorno, 1993) são importantes ao prosseguimento dessa reflexão. 3. A Ética do mínimo "eu": crítica e resistência As idéias sobre a ética, a partir do século XVII, identificam-na como uma atribuição do indivíduo sem se questionarem sobre sua constituição. Os primórdios da constituição do indivíduo ao redor da noção de "eu", isto é, de identidade consigo mesmo, remontam aos mitos. Nesta época, como o demonstra a Odisséia, o recurso do "eu" para conservar-se é a astúcia da razão. Ao contrário da mera mimese que é a base dos mitos, o sujeito astuto se enrijece através da oposição à natureza que ele quer dominar. Mas nesse processo ele retira dela seus elementos idiossincráticos: ela se torna material de manipulação e o "eu" aliena-se dos elementos de natureza que o compõem. Nessa época a constituição da individualidade era tênue e o domínio sobre a natureza, mínimo. Segundo Adorno e Horkheimer (199l):
Atualmente a constituição do sujeito novamente o torna frágil diante da poderosa maquinaria do capital. O domínio sobre a natureza se expandiu enormemente e progride cada vez mais, enquanto regride o humano nos homens. A identidade do "eu" está marcada pela "sucessão dos cenários, sítios e divindades locais", não mais das potências míticas - elas mesmas forças da natureza -, mas da própria razão instrumental aplicada à produção material e à indústria cultural. Essa poderosa maquinaria constitui a experiência dos sujeitos, fazendo-os acreditar que são, como que por natureza, idênticos a si mesmos, autônomos, indivíduos, quando na verdade eles constituem apêndices dessa maquinaria. É sobre a "vida reta" que fala Adorno, em meio às condições descritas acima. Mas sua fala não é a do moralista, de alguém que propõe normas ou imperativos. Dada a própria configuração histórica, as possibilidades se colocam como resistência: resistência à barbárie silenciosa e asséptica, aos sofismas esclarecidos dos "intelectuais" no poder, à idéia de que "as coisas são assim mesmo" e a toda justificativa para a violência técnica, instituicionalizada, totalitária. Ou, nas palavras do próprio Adorno (l993):
Mas é na aparência de vida, quando ela perece, que ainda se pode resistir. Adorno fixa seu olhar no indivíduo, identificando nele suas rupturas e contradições, e isso como uma exigência lógica, a de "penetrar o conteúdo imanente", dentro do objeto, para descobrir algo sobre ele. Em suas próprias palavras: "Hoje, com o desaparecer do sujeito, os aforismos levam a sério a exigência de que 'aquilo mesmo que desaparece' seja 'considerado como essencial.'" (Adorno, 1993, p.9). A forma do texto em aforismos também segue a exigência de resistir à "pretensão de totalidade do sistema" e de anulação do particular. Assim, tentar escrever sobre esse texto de Adorno de forma uniforme seria falsificar o próprio intuito do autor. Por isso serão tomados os conceitos de razão e individualidade a partir de alguns aforismos, e tentar-se-á refletir a partir deles. 3.1. Razão e individualidade A partir da emergência do modo de produção capitalista se desenvolveu a idéia de indivíduo como um "em si". A despeito de seu evidente conteúdo ideológico, é preciso olhar criticamente para o indivíduo que se constituiu a partir de então, pois alguns elementos que estão associados à idéia, como a noção de autonomia, de auto-reflexão e de liberdade são indispensáveis para o pensamento que pretende ultrapassar o meramente dado. Além disso, Adorno (1993) aponta que: "É na persecução dos interesses absolutamente particulares de cada indivíduo que se pode estudar com a maior exatidão possível a essência do coletivo na sociedade falsa." (p.38). Na expressão individual subjetiva da violência objetiva se mostra a tragédia da ordem social. O conceito de indivíduo, assim como as condições postas para a constituição dos sujeitos humanos, está intrinsecamente ligado às condições objetivas presentes historicamente. O trabalho, que em sua forma original, como "fermento vivo", relação dos homens com a natureza e consigo mesmos, como práxis, permitiu a sobrevivência e o desenvolvimento da forma humana, torna-se no capital uma fonte de miséria e sofrimentos. No modo de produção capitalista, como será exposto adiante, a forma da razão instrumental imperante impõe violência a todo particular, à natureza e aos indivíduos, que são vistos apenas como mercadorias, fungíveis e substituíveis. Paradoxalmente, na mesma época em que os indivíduos passaram a ter a posse de sua força de trabalho, e assim tornaram-se substituíveis e seu trabalho tornou-se abstrato, nasceu a noção de indivíduo como a conhecemos. Essa idéia, evidentemente, serve para justificar a ordem existente, e corresponde à aparência da ordem objetiva – sendo, portanto, em alguma medida, verdadeira -, enquanto que, observando para além dessa aparência, nota-se o caráter abstrato e falso da idéia. A noção de indivíduo é ideologia. Como tal, é importante preservar seu elemento de verdade e demonstrar seu elemento de falsidade, para poder "fazer falar o objeto". Segundo Adorno (1993):
Não é apenas a idéia de indivíduo que se constituiu segundo essas condições, mas a própria constituição interna dos indivíduos se dá segundo as exigências tecnológicas do processo de produção, e isso afeta não somente seu desempenho no processo produtivo, mas também, e talvez principalmente, aspectos considerados "naturais" como suas necessidades, afetos, desejos, seu pensamento e a forma de interpretar o mundo, a forma como lida consigo mesmo, a forma como trata outras pessoas, etc. Nessas questões, não há nada natural. Em todas elas a mediação do modo de produção se faz notar, e tanto mais quanto mais aparentemente "imediata" e espontânea é a reação do sujeito. A própria noção de capacidades "psicológicas" mensuráveis, como expressão individual das potencialidades humanas encontra-se mediada pela forma equivalente. Segundo Adorno (1993):
As qualidades psíquicas do indivíduo se convertem em "mercadoria", em coisa para ele, como o trabalho vivo torna-se mercadoria para o capitalista. Mas essa forma de relação do indivíduo consigo mesmo não é menos que esquizofrênica, cindida, alienada. "A consumação da divisão do trabalho no indivíduo, sua objetivação radical, conduz à sua cisão doentia." (Adorno, 1993, p.202). Essa forma "esquizofrênica" de composição do indivíduo é reforçada pela Psicologia quando separa as qualidades psíquicas dos sujeitos, ou quando desconecta as características cognitivas da base pulsional, ou ainda quando considera naturais algumas dessas qualidades sem considerar a mediação histórica em sua constituição. A mediação social pode ser vista com clareza na expressão das pulsões, como demonstra Adorno em seus aforismos sobre a avareza e o casamento - que serve hoje ao "ardil da autoconservação" e, tendo retirado o solo do sagrado sobre o qual se fundava, ao mesmo tempo em que não mais se apóia sobre o desejo erótico, desmoronou. Segundo Adorno (1993):
No caso da avareza, ela se encaixa no rol de certas condutas consideradas naturais, e revela também, a um olhar mais atento, a mediação social na composição do indivíduo. A identificação de um novo tipo de avareza é eloqüente na demonstração desse fato. Adorno (1993) aponta que:
A pulsão erótica nos dois casos apontados encontra-se submetida à lei do equivalente, o que impede o indivíduo de tomar contato com seus pares como sujeitos. Eros, nesses casos, encontra-se aviltado, pois ama quem dá mais, enquanto que a avareza e a lógica do equivalente implicam a avaliação do outro em termos do que ele pode oferecer. A idéia de posse do objeto amado é também estranha ao amor. A rigor, o possuído não é mais amado e a defesa neurótica da posse do que não pode ser possuído descamba, no plano objetivo, na exclusão violenta de tudo o que vier depois, de tudo o que puder "tomar o lugar na hierarquia temporal da propriedade". A contaminação do "eu" pela noção da mercadoria, que o reduz a coisa, seu narcisismo exacerbado, impedem que o amor possa se concretizar no mundo burguês. Segundo Adorno (1993):
A rigor, o impulso erótico não é mais suficiente para ligar as pessoas. O que as mantém juntas é a pressão da sociedade, não seus próprios impulsos eróticos. Os indivíduos tornaram-se aquilo que Hobbes imaginou: lobos, uns contra os outros; e somente em função de sua autoconservação permanecem juntos. Se os impulsos eróticos estão enquadrados na lógica do capital, o pensamento, instância básica da autonomia do indivíduo, não se encontra menos deformado pelas condições objetivas. As conseqüências da ordem capitalista para a razão e para o pensamento são devastadoras. Principalmente o fato de que todas as qualidades específicas dos objetos, naturais ou humanos, fiquem em segundo plano face à avaliação de valor imposta pela forma da mercadoria, expressa no equivalente universal, incide como um triturador sobre a subjetividade dos indivíduos. O tipo de desempenho exigido dos indivíduos para se adequarem ao processo produtivo tem conseqüências diretas para o modo como pensam e percebem o mundo. Se o indivíduo não é algo imediato, auto-dirigido e auto-diferençado a priori mas um ser de relações, que somente em sociedade alcança sua possível autonomia, é fundamental para sua constituição a apropriação da Razão historicamente constituída. Além disso, é importante que o indivíduo possa ter, com relação a essa razão, uma autonomia relativa, isto é, que ele possa avaliar conscientemente a validade dos preceitos e das normas propostas pela razão, e assim possa contribuir para sua construção e para sua negação, através do exercício da razão no plano particular mediado pelo pensamento. O indivíduo para se constituir depende tanto da apropriação da Razão historicamente constituída quanto do distanciamento necessário para o questionamento dessas formas da razão pelo pensamento. Mas a Razão histórica perverteu-se em ratio, em uma razão instrumental que está na base da ordem social que tritura o particular. Ela só reconhece nos objetos da realidade suas qualidades utilizáveis, na natureza seus elementos sobre ela projetados. O pensamento que segue esse esquema tenta se purificar de toda "subjetividade", com o que acaba sendo cada vez mais "subjetivo". Ele recalca os impulsos, que antiteticamente o constituem, como um estorvo, quando na verdade o pensar sem aqueles se torna meramente técnica que se projeta sobre a realidade. Segundo Adorno (1993):
A incapacidade do sujeito de ter uma experiência não mediatizada pela ratio é também uma deficiência moral, que se esconde por detrás da máscara da individualidade sem autonomia e sem responsabilidade. O pensamento que poderia livrá-lo desse emaranhado tenebroso se constitui a partir do desejo, incorporando-o e superando-o. Mas o desejo tem sido impelido de volta para o sujeito narcisicamente orientado, de forma que o pensamento já não pode atingir o objeto que, livre da subjetividade nele projetada, torna-se, por isso mesmo, totalmente subjetivo. Segundo Adorno (1993):
Não se trata de eliminar o desejo, nem tampouco de permitir seu fluxo livre de inibições. A rigor, os sujeitos "têm inibições de menos e não demais". O desejo é suprassumido no pensamento que vai além do dado pela realidade, e na verdade, é somente nesse movimento que ele merece seu nome. E é somente na integridade do "eu" que pode contemplar de modo uno seu desejo e a razão internalizada da cultura que há a possibilidade real de um pensamento que ultrapasse o existente. No entanto é preciso lembrar que a possibilidade da ação ética e da reconciliação entre os indivíduos e a cultura, se implica a ação do pensamento, só se dá na medida em que se modifiquem as condições objetivas da sociedade. "Enquanto existir um único mendigo (...) existirão mitos; só a desaparição do último deles significaria a reconciliação do mito." (Adorno, 1993, p.175). Isso não significa que se possa esquecer a violência imposta historicamente a todos, sem exceção, talvez mais radicalmente aos mendigos. Reconciliação significa elaboração do passado, não seu esquecimento; quem se esquece da violência sofrida ou infringida a outrem inevitavelmente a reproduz. Somente o agir que não reproduz mediatamente a violência sofrida pode ser considerado racional, na medida mesmo em que resiste à "roda viva" da vida morta. Se os sujeitos não são mais capazes de pensar para além do dado e, portanto, de resistir à barbárie, como se pode falar em conduta ética? No plano particular, somente a auto-reflexão do sujeito sobre os elementos irracionais da razão permite a resistência. Mas o que se passa se pensarmos sobre a ética com relação a uma ciência como a Psicologia? 4. À guisa de conclusão: Ética e Psicologia Se a possibilidade de conduta moral está ligada à resistência à ordem existente, então os procedimentos, técnicas ou teorias científicas precisam ser avaliados em termos de seu caráter ideológico – e, portanto, justificador - ou crítico. A Psicologia nasceu como "ciência independente" no mesmo solo social que gerou a idéia do indivíduo como "mônada", e sua função social tem sido, grosso modo, aumentar as ilusões dos indivíduos sobre si mesmos, ou permitir um melhor controle social das crises e inadaptações dos indivíduos. Segundo Adorno (1993):
Além disso, dada a penetração da ratio em todas as esferas da sociedade, é esta quem tem a primazia na explicação da conduta dos indivíduos, não sua "psicologia" individual, embora seja necessário ater-se a ela para identificar a inverdade do todo. Mas o conhecimento psicológico também gerou elementos esclarecedores que não podem ser esquecidos. Freud, por exemplo, segundo Adorno (1986), ao elaborar a psicanálise contribuiu com a crítica à sociedade. A psicanálise seria: "a única que investiga seriamente as condições subjetivas da irracionalidade objetiva." (p.36). Além disso, tomar a Psicologia como um todo sem considerar a diversidade teórica presente nesse campo da ciência seria novamente fazer violência ao particular. Por outro lado, analisar cada uma das teorias psicológicas seria impossível nesse momento. Optou-se, então, por destacar alguns elementos da ciência psicológica com relação a suas características ideológicas ou críticas. Primeiramente, pode-se destacar que a matriz positivista gerou várias teorias psicológicas e, em todas elas, a dimensão normativa deriva diretamente da ratio instrumental e projeta para o espaço interno ao sujeito as características da divisão do trabalho. "A psicotécnica não é meramente uma forma degenerada da psicologia, mas é imanente a seu princípio." (Adorno, 1993, p.54). Assim, conceitos como o de capacidades, inteligência, motivação e mesmo personalidade, nessas teorias, se vêem despidos de sua condição moral, histórica, e são hipostasiados como característicos do próprio sujeito, com o que se faz novamente injustiça a ele. Nessa matriz, mas não somente nela, também se estabeleceram critérios fixos, a partir da solidificação da interioridade psíquica dos sujeitos, para a classificação daquelas capacidades, inteligências, etc, enquadrando-os nas categorias normal-patológico, melhor-pior, mais-menos, etc. Essa dimensão normativa da ciência tem que ser criticada em seus fundamentos históricos pois hoje, segundo Adorno (1993): "a doença própria de nossa época consiste precisamente no que é normal." (p.50). E no entanto:
Ao controle social dos indivíduos a Psicologia contribuiu significativamente na medida em que justificou sua existência alienada como um fato em si e, o que é pior, atribuiu a culpa ao próprio indivíduo. Também na medida em que contribuiu para a caracterização fixa das noções de normal-anormal, saúde-doença em termos de sua constituição como ser em si. No entanto, a Psicologia encontrou um solo fértil para a classificação dos indivíduos. Ela sempre foi necessária ao capital para aumentar a produtividade e o controle sobre eles. Além disso os indivíduos se prestam à classificação, na medida em que se encontram pré-formados segundo as características da sociedade. Segundo Adorno et al. (1965):
Mas se se reforça essa idéia sem criticá-la, reforça-se a incapacidade do sujeito de resistir. É importante identificar os traços estereotipados nos homens justamente para poder reverter a tendência geral à classificação e ao agrupamento, para tornar claro aos indivíduos as marcas do social neles. Juntamente a um formidável conjunto de técnicas, testes e instrumentos de medição e controle, as psicologias de matriz positivista reforçaram, ao longo de mais de um século, a generalização da idéia de indivíduo como "natural", com o que contribuíram para a ideologia individualista. No outro lado das psicologias de matriz positivista, a psicanálise, é fundamentalmente uma psicologia esclarecedora e crítica, já que Freud aceita deixar irresolvidas algumas contradições presentes em sua época. Talvez a mais importante, a contradição entre os interesses do indivíduo e da cultura. Mas se há elementos críticos, como a não identidade entre o indivíduo e a cultura presente nos escritos de Freud, a psicanálise também se converteu em uma prática do conformismo, principalmente a partir dos revisionismos a que foi submetida e em sua atuação clínica. Nesta, segundo Adorno (1993):
A noção de narcisismo também precisa ser revista pois: "O narcisismo, que com o desmoronamento do Eu se vê privado de seu objeto libidinoso, é substituído pelo prazer masoquista de não ser mais um Eu" (Adorno, 1993, p.56). O narcisismo patológico como amor voltado para o próprio eu na idade adulta tal como Freud o descreveu, como característico da esquizofrenia, ainda não é tão mau quanto a simples identificação dos sujeitos com as constelações psicológicas aceitas publicamente. Em nosso tempo, a divulgação de teorias psicológicas na indústria cultural gera uma situação em que:
Os erros da psicanálise estão ligados ao fato de Freud tomar o indivíduo em si mesmo e tentar explicar a ordem social a partir da dinâmica psíquica individual, o que justifica a ordem irracional a partir da dinâmica pulsional considerada antropologicamente, ou ainda ao fato de reconhecer a necessidade de repressão sem dar-se conta de sua irracionalidade, o que torna irracional o princípio atribuído ao "eu": o princípio de realidade. Este culmina na criação de uma instância crítica no sujeito - o superego - que ao mesmo tempo revela a inserção da sociedade no psíquismo e, com o desdobramento dessa elaboração teórica para a prática clínica, converte a psicanálise em técnica de generalização do conformismo na medida em que propõe buscar o "equilíbrio saudável" entre as três instâncias: id, ego e superego. Exige-se do indivíduo um equilíbrio de forças entre elementos antagônicos: seus impulsos e a ordem social. A segunda tópica, portanto, representa uma regressão com relação à formulação anterior, pois a radicalidade da proposta de tornar conscientes os conteúdos inconscientes é substituída pela intenção de tornar o indivíduo saudável, capaz de "trabalhar e amar", sem considerar que o trabalho é fonte de aniquilação para o indivíduo e que sua estrutura alienada penetra as manifestações eróticas. Até mesmo os conteúdos do inconsciente não podem ser tomados como elementos ônticos no sujeito: segundo Adorno (1986): "no inconsciente se sedimenta o que nunca progride no sujeito, o que tem que pagar a conta do progresso e da ilustração." (p.53). No inconsciente se alojam os impulsos incompatíveis com a cultura. A explanação de todas as críticas feitas à psicanálise por Adorno está além dos objetivos desse trabalho. As críticas que foram expostas, no entanto, servem como ilustração ao que se quer dizer sobre a relação entre ética e psicologia: esta, se não quiser ser meramente ideologia a serviço da justificação do todo, e portanto, servindo para manter os indivíduos submetidos a uma ordem social que os aniquila, precisa necessariamente ser crítica. Isso implica tomar seriamente duas questões fundamentais em sua constituição: a noção de razão que subjaz a suas teorias e o conceito de indivíduo de que se servem. Somente como crítica da ratio e da "pseudo-individuação" a psicologia pode concretizar ações éticas, isto é, práticas ou teorias que funcionem com resistência ao processo de incorporação dos indivíduos ao todo. MAIA, A.F. Appointments on Ethics and Individuality Based on Mínima Moralia. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.151-177, 1998. Abstract: This article reflects upon the concepts of ethics and individuality of Mínima Moralia by T.W. Adorno, to consider the normative and ethic dimensions of Psychology. For this, historical elements of Ethics according to Aristoteles, Hobbes, Rousseau and Kant were rescued in order to clarify the reflections of Adorno. From this, a criticism is made based on the notions of individuality and autonomy in ambit of Psychology. Index Terms: Ethics. Individuality. Reason. Psychology. Psychoanalysis. Capitalism. Adorno, Theodor Wiesengrund, 1903-1969. 2No capital, segundo Marx (1988): "O capitalista, mediante a compra da força de trabalho, incorporou o próprio trabalho, como fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, que lhe pertencem igualmente. (...) O processo de trabalho é um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem." (p.147). |