A cibercultura e estudada por quem

Weslley Kozlik Silva[1] Faculdade Guairacá Jamile Santinello[2] Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO Graziella Medeiros Guadagnini[3] Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO

Weslley Kozlik Silva[1] Faculdade Guairacá Jamile Santinello[2] Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO Graziella Medeiros Guadagnini[3] Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO, Brasil

UMA BREVE DESCRIÇÃO SOBRE A CIBERCULTURA DOS HUE BR

Periferia, vol. 11, núm. 2, pp. 384-403, 2019

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo: A internet é um espaço que há algum tempo tem promovido interações entre pessoas das mais diversas partes do mundo. Desse modo podem surgir questionamentos acerca dos comportamentos dos usuários dessa rede, ou seja, uma vez que essas variadas culturas entram em contato, é possível que haja uma hibridização delas ou até mesmo o surgimento de novas culturas em rede, que podem ser chamadas de cibercultura (LÉVY, 2009). Assim, o objetivo do trabalho é analisar e descrever uma cultura específica, criada nesse espaço, chamada Hue br. A metodologia utilizada para se chegar ao objetivo é a pesquisa etnográfica virtual, que permite interação com o grupo pesquisado. Como resultado verificou-se várias características dessa cibercultura, entre elas destaca-se a zoeira ou escárnio acima de qualquer outro objetivo. Os resultados apontam para uma construção da cibercultura a partir de resistências às imposições de jogadores de outras nacionalidades, principalmente relacionada ao idioma falado nos servidores de jogos online.

Palavras-chave: Cibercultura, identidade, huebr, redes sociais, zoeira.

Abstract: The internet is a spacethathas for some time beenpromotinginteractionsbetweenpeoplefromthemostdiversepartsofthe world. In thiswayquestionsmayariseaboutthebehaviorsoftheusersofthis network, thatis, oncethesevariouscultures come intocontact, it ispossiblethatthereis a hybridizationofthemoreventheemergenceof new network cultures, whichcanbecalledcyberculture (LÉVY, 2009). Thus, theobjectiveoftheworkistoanalyzeanddescribe a specificculture, created in thisspace, calledHue br. The methodologyusedtoreachtheobjectiveisthe virtual ethnographicresearch, whichallowsinteractionwiththeresearchedgroup. As a resultseveralcharacteristicsofthiscyberculturehavebeenverified, amongthemthenoiseorderisionaboveanyotherobjective stands out. The results point to a constructionofcyberculturebasedonresistancetotheimpositionof players ofothernationalities, mainlyrelatedtothelanguagespoken in online gaming servers.

Keywords: Cyberculture, indentity, huebr, social networks, noise.

Resumen: La Internet es unespacio que desde hacealgúntiempo ha promovido interacciones entre personas de las más diversas partes del mundo. De este modo pueden surgir cuestionamientos acerca de loscomportamientos de losusuarios de esared, o sea, una vez que esas variadas culturas entranencontacto, es posible que haya una hibridización de ellas o incluso elsurgimiento de nuevos cultivos enred, que pueden ser llamadas de cibercultura (LÉVY, 2009). Así, el objetivo deltrabajo es analizar y describir una cultura específica, creadaeneseespacio, llamadaHue br. La metodología utilizada para llegar al objetivo es lainvestigación etnográfica virtual, que permite una interacciónconel grupo investigado. Como resultado se verificaronvarias características de esa cibercultura, entre ellas se destaca la zoeira o escarnio por encima de cualquierotro objetivo. Los resultados apuntan a una construcción de la cibercultura a partir de resistencias a lasimposiciones de jugadores de otras nacionalidades, principalmente relacionada al idioma habladoenlos servidores de juegos online.

Palabras clave: Cibercultura, identidad, huebr, redes sociales, trifulca.

UMA BREVE DESCRIÇÃO SOBRE A CIBERCULTURA DOS HUE BR

INTRODUÇÃO

O computador deu acesso à maior rede de informações existente até hoje, a internet. Esta pode ser considerada como um grande banco de dados, que permite que seus usuários possam compartilhar, refletir e discutir essa grande massa de conteúdo. O acesso a esta rede tem crescido cada vez mais em todo o mundo e, pode-se dizer que esse crescimento passou a influenciar direta ou indiretamente no desenvolvimento de diversas atividades do homem, sejam elas econômicas, culturais, educacionais, de lazer, política, etc.

A comunicação eletrônica transformou o campo da mediatização de massas, oferecendo a “construção de eus imaginários e de mundos imaginados novos recursos e novas disciplinas”, oferecendo meios para vasta espécie de construção do eu em todo o tipo de contexto e para qualquer tipo de pessoa (APPADURAI, 2004, p.14). Nem as imagens desse sistema, nem os espectadores “cabem em circuitos ou audiências que facilmente se confinam a espaços locais, nacionais ou regionais” (APPADURAI, 2004, p.15).

Então, este cenário de interações cibernéticas tem como característica a aproximação de usuários de diferentes partes do mundo, ampliando o acesso de um local (no mundo físico) para um ambiente de fronteiras menos limitadas. É nesse cenário que, inevitavelmente, surgem questionamentos acerca do comportamento dos usuários em rede, como são reconhecidos diferentes grupos na internet, como as fronteiras entre os grupos acontecem, se elas realmente existem e se as culturas dos grupos são hibridizadas ou recriadas.

Para responder a estes questionamentos o objetivo deste artigo é realizar uma análise acerca da descrição da identidade cultural de um grupo específico no Facebook. Tal grupo denomina sua cultura como “Huebr”, o que aponta para a presença de fatores que possam ser identificados através de uma análise dos componentes dessa cultura. Para tal, faz-se necessária a seleção de informações através de conversas dos membros, entrevistas não-estruturadas e documentos pertencentes ao grupo.

Ora, é preciso que haja o apontamento dos principais conceitos utilizados para a análise a ser construída acerca da cibercultura estudada. Assim, adiante descreve-se um breve recorte das principais correntes teóricas que auxiliam nesta análise.

Conceitos de cultura e identidade cultural

A construção do conceito de cultura e identidade cultural é tema de vastas discussões por teóricos da sociologia, antropologia, psicologia e outros. Esta gama de áreas que estudam tais conceitos leva a um ciclo de constantes reconstruções dos termos, resultado de buscas para aprimorá-los. Porém, o que se tem até o momento tem sido útil na prática da investigação e análise das diferentes culturas e identidades culturais.

Para entender a construção do conceito de cultura uma boa leitura é o livro “Cultura: um conceito antropológico” de Roque de Barros Laraia. No livro o autor faz uma trajetória histórica acerca das tentativas de se conceituar a cultura chegando até as teorias modernas sobre tal conceito. Considera-se que a primeira definição de cultura a partir da antropologia foi dada por Edward Tylor, e este aponta que a cultura “trata-se de um fenômeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução” (LARAIA, 2001, p. 30).

Boas descreve uma definição, em crítica a Tylor, baseada na ideia de que as culturas seguem caminhos diferentes umas das outras em função de diferentes vivências históricas que enfrentou (LARAIA, 2001), assim não se pode considerar a cultura como algo passível de estudo objetivo. O que se nota é que desde as primeiras definições há dicotomia entre os autores.

O autor segue com uma série de definições e discussões as quais abrangem capacidades orgânicas do homem, o desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento do bipedismo, a importância da habilidade manual, o surgimento de regras nos grupos, a criação e interpretação de símbolos, até chegar nas definições modernas.

Uma das definições modernas que Laraia (2001) cita é a de Lévi-Strauss, que defende a cultura como uma construção simbólica e cumulativa na mente humana. Assim, Lévi-Strauss tem estudado a cultura a partir de mitos, arte, parentescos e linguagem. Outra definição moderna que Laraia (2001) aponta é a de Geertz, que considera que a cultura é uma espécie de programa que pode ser instalado no homem, considerando-a como regras e instruções que governam os comportamentos dos indivíduos em seus contextos.

As últimas definições citadas apontam para uma linha histórica da construção do conceito de cultura, e aqui não se pretende um ecletismo, mas, justamente nota-se que a diferença entre um conceito do outro promove uma dialética capaz de aprimorar cada vez mais a definição de cultura. É esta dialética ressaltada por Barth (2000), quando aponta que as fronteiras étnicas também se mantêm a partir do contato com outros grupos.

Barth (2000) constrói uma prática acerca do estudo da cultura que, ao mesmo tempo em que aponta críticas a conceitos mais objetivos, indica soluções para o seu estudo. O termo cultura necessita estar envolto a questões que são contraditórias visto que não possui em sua singularidade uma verdade absoluta.

O autor aponta a importância da discussão sobre os fenômenos que pode-se abordar para a desconstrução do conceito de cultura. As percepções que existem no mundo são a todo momento montadas e moldadas com as vivências e construções (BARTH, 2000). Assim, percebe-se uma tendência para a construção da cultura dos grupos a partir da definição dos próprios grupos, um conceito que é continuamente construído.

Considerando os conceitos de cultura expostos, a identidade cultural segue uma definição também construída historicamente. Hall (2005) aponta três concepções diferentes de identidade, o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

O sujeito do iluminismo tem um caráter mais individual, segundo Hall (2005), este seria um indivíduo centrado, dotado de capacidades de razão, ação e consciência, tendo um núcleo que emerge pela primeira vez quando o indivíduo nasce, desenvolvendo-se com ele e permanecendo na mesma essência durante a existência do sujeito.

O sujeito sociológico é de caráter mais complexo, envolvendo o mundo ao redor. Para Hall (2005) o núcleo deste sujeito não é autônomo, mas formado na relação com outras pessoas (importantes para ele), que mediam os valores, interpretações e símbolos (cultura) no contexto que o cerca. O sujeito sociológico tem uma essência interior, porém que é modificada com um diálogo contínuo com o exterior.

Acerca do sujeito pós-moderno, Hall (2005) afirma que o sujeito antes estável, tendo uma única identidade, está fragmentado composto por várias identidades, como resultado de mudanças institucionais e estruturais. “O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático [...] não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”. Assim, a identidade é definida de maneira histórica e não biológica (HALL, 2005, p. 12).

Cibercultura e Culturas híbridas

Sobre o conceito de Cibercultura, Lévy (2009, p. 16), considera ser um “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente como crescimento do ciberespaço”. Ou seja, aponta-se para comportamentos humanos dentro de determinado espaço cibernético.

Com relação ao ciberespaço, seria o local em que a cibercultura acontece. (LÉVY, 2009, p. 15-16) explica que o conceito seria:

O novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.

Levy (2009) mantém uma posição otimista acerca do ciberespaço figurando que este seria um movimento internacional em que os jovens podem experimentar diferentes formas de comunicação das mídias clássicas, com a vantagem que isso acontece coletivamente. O autor reafirma seu ponto de vista alegando que “aqueles que denunciam a cibercultura hoje têm uma estranha semelhança com aqueles que desprezavam o rock dos anos 50 e 60” (p. 9), considerando que o rock foi o porta-voz dos anseios de uma enorme parcela da população mundial.

Nesse sentido o ciberespaço não poderia ser considerado como autônomo, ou uma entidade existente independentemente do restante, ou ainda separado da sociedade e cultura. Assim, pensar-se-ia o ciberespaço como produto da cultura e da sociedade, e este produto continua numa interação, sendo alterado e alterando a sociedade e a cultura (LÉVY, 2009).

Ao pensar no ciberespaço como forma dinâmica atuante entre a cultura e a cibercultura, direciona-se a atenção para as possibilidades de culturas em formatos híbridos. Um dos autores que trabalham com essa ideia é Canclini (1989), que afirma que começa muito antes do rádio e televisão a homogeneização das culturas autóctones na América. O autor afirma que a colonização, a cristianização e a educação monolíngue já foram fatores que hibridizaram as culturas da América.

Adiante, Canclini (1989, p. 264) propõe-se três processos para explicar a hibridização de culturas. O primeiro seria “a quebra e mescla dos aspectos que organizam os sistemas culturais”, ou seja, orientar as culturas em foco para um só norte. O segundo seria “a desterritorialização de processos simbólicos”, o que impede o reconhecimento da origem desses processos simbólicos. Por fim, “a expansão de gêneros impuros”, que o autor dá como exemplo os quadrinhos, ou seja, uma mistura de pintura a um texto.

METODOLOGIA

A fim de atender aos objetivos propostos o método de pesquisa adotado foi a pesquisa etnográfica virtual, considerando que o pesquisador encontra-se imerso (ou participante) na rede social da cultura analisada de modo a selecionar informações acerca dos valores, práticas e significados do grupo estudado, através de entrevistas e documentos.

Na pesquisa etnográfica virtual ressalta-se que o pesquisador irá mergulhar no cotidiano do grupo a ser estudado, de modo a dar sentido aos comportamentos dos seus membros, através das relações que observa (HINE, 2000). Para elucidar esse tipo de pesquisa, primeiramente faz-se necessária um breve entendimento da pesquisa etnográfica.

A esse respeito, considera-se que a etnografia pertence à concepção fenomenológica da ciência, e esta se interessa pelo estudo dos aspectos subjetivos do homem e seus comportamentos. Desenvolvida na Antropologia, a etnografia pode ser considerada como a tentativa de descrever uma cultura. “O etnógrafo encontra-se, assim, diante de diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso comum, significados variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e vivências e tenta mostrar esses significados múltiplos ao leitor” (ANDRÉ, 2008, p. 16-17).

Acerca das ações da pesquisa etnográfica, André (2008, p. 28) pontua que a observação é chamada de participante porque “parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”. Ainda a autora aponta que “as entrevistas têm a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas observados”, e acerca dos documentos “usados no sentido de contextualizar o fenômeno”. Para a autora, o pesquisador é mediador na seleção das informações, sendo o instrumento principal também na análise dessas informações, mantendo interação constante com o objeto pesquisado.

Essas ações foram consideradas nessa pesquisa à medida em que buscou-se verificar e retratar como o grupo descreve a si mesmo, mostrando mais uma das características da pesquisa etnográfica, que é a preocupação com o significado e as experiências dos componentes do grupo estudado (ANDRÉ, 2008).

Assim, pode-se dizer que há uma aproximação da etnografia virtual e da pesquisa etnográfica, e sua existência pode ser justificada pelo fato de haverem situações no meio digital que necessitam de um olhar específico, principalmente por ser mediada por um computador (HINE, 2000; SEGATA, 2008).

Embora, haja a necessidade desse olhar diferenciado, nessa pesquisa os procedimentos seguiram a proximidade com a etnografia, destacando-se apenas as especificidades entre esses dois tipos de pesquisa principalmente nas análises.

Dessa forma, o procedimento foi a escolha de um grupo específico, cujo nome foi preservado para proteção de dados pessoais, na rede social Facebook, com o propósito de observar e selecionar informações documentais na página e também entrevistar os membros do grupo. A seleção de informações seguiu, então, a configuração de uma entrevista não-estruturada.

Correspondendo às técnicas da pesquisa etnográfica virtual, iniciou-se por uma seleção de informações já postadas no grupo há algum tempo e somente depois disso houve a interação. Nessa segunda parte eram colocadas postagens na página do grupo para que fossem respondidas com símbolos e linguagem características do mesmo. As postagens recebiam comentários e os comentários que mais recebiam curtidas eram selecionados como informações a serem analisadas para esta pesquisa.

É importante considerar que mesmo com a imersão do pesquisador no grupo a ser pesquisado não há a intensão de introduzir modificações no ambiente, ou seja, as situações e pessoas envolvidas são observadas em suas manifestações naturais (ANDRÉ, 2008).

A análise dos resultados é agrupada adiante nos seguintes tópicos, para fim de organização: fatores históricos; campo de interação e comunicação; disposição geográfica; características significativas; símbolos e palavras; interesses; incorporação de indivíduos; liderança e; política.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A descrição a seguir é apontada pelo próprio grupo estudado e as discussões geradas não foram parte das respostas dos membros do grupo. É importante ressaltar que as citações diretas colocadas no texto não são somente opinião de um único membro, mas de vários, explicitado através do mecanismo do botão de curtir do Facebook. Portanto as citações que aparecem são as que mais tiveram curtidas, tornando-se citações plurais.

Fatores históricos

O nome ou termo que denomina a cibercultura Huebr foi criado a partir de situações envolvendo, em sua maioria, jogos online. Um dos membros do grupo considera que:

O nome HUE BR foi dado porque o jogo online Ragnarok[4] foi infestado por brasileiros. Nem todos eram chatos [...], mas a grande maioria entrava com hack[5] e se comunicava entre si. Como não sabiam falar inglês para identificar quem era gringo e quem era brasileiro eles simplesmente falavam 'BR?' e o outro respondia 'BR!' e a multidão de BRs saiam voando e/ou matando os outros jogadores enquanto diziam ‘HUEHUEHUEHUEHUE’ (sic).

Outros membros apontam que os brasileiros tinham um comportamento inadequado em servidores de jogos internacionais: “Nessa época não havia tantos servidores BR de jogos, então os brasileiros se enturmavam com os norte-americanos frequentemente. Os brasileiros costumavam ser tóxicos, sacaneavam ou mendigavam recurso nos servers internacionais” (sic).

A partir disso um norte-americano produziu um vídeo[6] que denunciava esses comportamentos dos brasileiros. O vídeo foi muito divulgado no ciberespaço pelos próprios brasileiros, que acabaram aderindo com muito mais amplitude à essa descrição, disseminando a cibercultura para outros espaços.

Parte dos comportamentos tóxicos dos brasileiros nos jogos era pela obrigatoriedade do uso somente da língua inglesa, que os administradores e usuários do Ragnarok de outros países determinavam. Alguns brasileiros que desobedeciam a essa regra eram castigados e acabavam por inflamar os outros jogadores brasileiros, montando clãs para destruir as campanhas de jogadores não brasileiros, principalmente dos estadunidenses (FRAGOSO, 2014).

A autora ainda afirma que o embate é mais antigo e inicia-se nos fotologs[7] desde 2003, quando os usuários de outros países reclamavam que os brasileiros estavam postando fotos de má qualidade.

Porém, talvez as expectativas sobre os comportamentos dos brasileiros em interação com pessoas de outros países sejam muito mais enraizadas historicamente para outros países, considerando, por exemplo, o personagem do Universo Disney, Zé Carioca. Este, é descrito nos quadrinhos como um personagem cordial, mas malandro, indolente e fanfarrão (SANTOS, 2002). Isso aponta para uma pré-disposição a esperar que os brasileiros já se comportem de maneira inadequada em qualquer lugar.

Disposição Geográfica e Campo de Interação e Comunicação

Os entrevistados sugerem que a maior concentração de membros da cultura está em jogos online, “páginas do Facebook destinadas a zoeira”(sic), e “no youtube nos videos do tipo poopbr[8]” (sic).

Nesses locais os membros se reúnem para realizar suas diversas atividades além de discutir sobre vários outros assuntos. São “grupos, geralmente criados com intuito de discutir sobre jogos e acabam futuramente por falar de questões em geral” (sic). O grupo analisado tem membros de todos os estados brasileiros e tambémbrasileiros de fora do país. Além das comunidades online, por vezes eles se reúnem pessoalmente nas suas regiões para jogar ou falar sobre jogos.

A forma de comunicação é relatada também da seguinte maneira: “sempre que vejo um brhue ele está utilizando o chat pra incomodar os gringos (uso de frases curta em outro idioma pra xingar, geralmente frases construídas de forma incoerente)” (sic).

A afirmação acima, acerca das frases incoerentes (no inglês construídas pelos brasileiros, assemelha-se muito a um fenômeno descrito por Anzalduá (2009, p. 305), quando relata sobre a “língua de rebelião” – o Pachuco – linguagem que é construída propositalmente contra os padrões formais impostos. No caso dos Huebr a intenção se volta, não apenas para a subversão, mas também para provocação de alvoroço e repelo, o que caracteriza definitivamente essa cibercultura, além de resistir a uma espécie de colonização por meio da língua, como caracteriza Canclini (1989).

Características Significativas

Acerca das características significativas dessa cibercultura os membros consideram que um Huebr deve “encontrar a zueira não importa onde” (sic), ter “criatividade para zuar a vida alheia” (sic) e perder o amigo, mas não a piada.

Um dos entrevistados aponta que:

Eu acho que o que realmente define um huebr agora são os antigos sofredores de Bullyng. Eu sempre sofri Bullyng na escola quando era menor e acho que graças a isso eu virei um hu3 pois como as pessoas me zoavam eu sempre quis zoar tbm as vezes quando eu faço o hu3 eu passo dos limites mas quem não passa? (sic).

Outro entrevistado aponta para os pontos positivos de se ter um Huebr por perto, “quando disposto tenta ajudar ao máximo seus colegas (até mesmo de outras nacionalidades)” (sic) e como pontos negativos "quando baixa o santo zoa tudo e todos” (sic).

Quando questionados se todo brasileiro pertence a essa cibercultura, as seguintes respostas foram encontradas: “Dentro dos nossos corações, todo mundo que joga é hue no fundo da alma” (sic); “não, tem brasileiros que jogam os jogos online sem ser "tóxico" ou mesmo desrespeitar os outros, apesar de muitos serem "huebr", apenas pela zoeira e pela toda a bagagem que o "huebr" significa” (sic); “creio que não, mas é algo comum porque é algo reforçado na cultura” (sic).

A fala a respeito do bullying é isolada, porém peculiar e levou a bastante discussão dentro do grupo. Não demonstra ser uma característica essencial, mas aponta algo importante acerca de como a zoeira dos Huebr pode ser entendida por outras pessoas, no Brasil ou em outros países.

Há uma divisão do grupo acerca de todo brasileiro ser Hue br. Para se discutir esta situação apela-se para as características apontadas pelo o próprio grupo acerca de quem é um Hue br. As primeiras falas apontam para uma zoeira sem limites, até mesmo se decorre na perda de um amigo. Porém outras falas apontam para a possibilidade de uma comunidade colaborativa quando há a identificação. Ainda, algumas apontam para o brasileiro como Huebr por natureza e outras falas como isso não sendo uma regra.

Nesse sentido Ribeiro (1995, p. 245), indica uma formação do Brasil intencional e anárquica ao mesmo tempo, em que intencional seria o projeto da colonização do Brasil, e o caráter “selvagem e socialmente irresponsável” seria o anárquico. Essas constatações mostram a dualidade dos comportamentos brasileiros descritos pelo grupo acerca da zoeira. Assim, pode-se entender que a zoeira teria uma concepção irresponsável e anárquica, enquanto a intencionalidade respeita os projetos originais de influências externas para o comportamento dos brasileiros nos jogos.

Símbolos e palavras

O maior símbolo que identifica a cibercultura Huebr é a imagem abaixo, produzida pelo norte-americano que fez o primeiro vídeo já citado sobre os Hue br.

Imagem Huebr

Fonte: site http://www.wowgirl.com.br/2015/01/19/wowpop-hue-hue-hue.

Existem outras figuras chamadas memes, mas todas retiram algo desta apresentada acima. A palavra meme foi cunhada pelo etólogo e biólogo Richard Dawkins (1979) que a considera como um replicador de cultura ou uma unidade de transmissão cultural. O autor indica que quando se planta um meme na mente de outra pessoa, transforma-se a mente dessa pessoa em um meio de transporte para este meme.

As palavras ou frases mais utilizadas para identificar um Huebr são: “é só escrever no chat "huebr" que instintivamente aparecem muitas respostas, ou também utilizar 'hue" em nick-name pode ajudar a fazer aliados mesmo sem uma forma de comunicação, apenas por "empatia" (sic); “Givemoneypls” (sic), que em tradução livre seria “me dê dinheiro por favor”; “Help me or I report u”(sic), significa “me ajude ou eu te reporto”, no caso à administração do jogo que pode banir o jogador; "HUEHUE BRBR" (sic); "The zueiraneverands[9]" (sic); “Hu3br”(sic); e “WW gpiziHuehue 11/09”[10] (sic).

Nos ambientes de jogos onlineque são os locais onde se falam essas palavras, os brasileiros podem ser considerados como minorias, pois acontece justamente a segregação destes pelos outros países. Partindo desse princípio, as palavras utilizadas para a identificação remetem ao sentido de diacríticos descritos por Barth (2000). Esses diacríticos seriam sinais facilmente identificáveis para anunciar a identidade de uma comunidade.

O diacrítico “WW gpiziHuehue 11/09” (sic), mostra como é intenso o sentimento de repulsa dos Huebr pelos norte-americanos, uma vez que esse diacrítico é apresentado diante de uma vitória brasileira em jogos e relembra o atentado do World Trade Center como uma derrota norte-americana.

Interesses e incorporação de indivíduos

Os membros consideram que os maiores interesses dos Huebr são: “que a zoeira nunca tenha fim” (sic); “que o circo pegue fogo” (sic); “ver o ódio alheio” (sic); “rir, não importa qual custo” (sic); “escrotizar o maior número de coisas possível deixando a marca brasileira seja de qualidade ou de avacalhamento das coisas” (sic); e “tornar tudo uma brincadeira, sendo assunto sério ou não” (sic). Interesses, estes, são sempre aplicados em jogos online, redes sociais e sites de vídeos, como já visto.

Acerca da incorporação de outros indivíduos ao grupo, preza pelas seguintes características: “único, e último requisito: seja um brasileiro” (sic); “seja zoeiro, seja brasileiro, esteja na internet” (sic); “estrague o joguinho dos outros nasça aqui e zoe em serve global” (sic); “vc não se torna, vc nasce um” (sic) “nasceu no Brasil vc já é, o ar que vc respira é hu3, e um hu3 não se torna ele é, vc tem que nascer com o dom” (sic).

Nota-se a afirmação quase unânime de que um Huebr deve nascer com a capacidade de adquirir o entendimento dessa cultura e isto acontece principalmente com brasileiros. Assim, o que aparentava ser uma fronteira tênue entre qualquer nacionalidade pelo fato das relações serem na internet, ou seja, não há monumento ou terra para se afirmar uma identidade (CANCLINI, 1989), na realidade teve efeito inverso, a reafirmação da identidade brasileira quase sem possibilidades para que outras nacionalidades compartilhem destes comportamentos.

Dessa forma, mesmo com um ambiente em que pode ocorrer a hibridização de culturas, houve uma resistência com relação à desterritorialização de processos simbólicos, considerando a quantidade de memes que existem nessa cibercultura, e também houve resistência à educação monolíngue, apontados por Canclini (1989) como fatores que auxiliam na hibridização cultural.

Liderança e política

A organização é feita por um grupo de 4 fundadores da página na internet e mais um grupo de 24 administradores eleitos pelos fundadores e aceitos pelo grupo. O grupo total é formado por aproximadamente 400 mil membros.

Os fundadores e administradores produziram um compilado de regras para o grupo, obedecendo a leis gerais da Constituição brasileira para a internet e regras internas, principalmente relacionadas a possíveis conflitos e marketing dentro da página.

Caso algum membro desobedeça às regras, ele pode ser denunciado por qualquer membro ao administrador ou fundador do grupo. Este membro é levado a um julgamento e pode ser banido do grupo, temporariamente ou permanentemente, entre outras sanções.

Há, então uma organização bastante clara de liderança e regras, tornando o grupo bastante homogêneo acerca das suas convicções e defesas que necessitam fazer sobre seus próprios comportamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espaço proporcionado pela internet promove uma série de questionamentos acerca dos comportamentos dos seus usuários. O trabalho buscou responder parte destes questionamentos através da descrição e análise de uma cibercultura em um grupo específico do Facebook.

No processo de caracterização, conhecimento e interação demonstrou-se uma devolutiva, por parte dos participantes, proveitosa, bem articulada e de envolvimento com a pesquisa, pois não foram apenas as respostas às entrevistas, os participantes se envolveram em longas conversações, feitas a partir das interações no grupo a respeito do tema, demonstrando que a metodologia foi adequada para a pesquisa.

O grupo estudado apresenta alguns padrões culturais, descrito pelos autores (CANCLINI, 1989; BARTH, 2000; HALL, 2005; LARAIA, 2001; LÉVY, 2009), caracterizando-os em: fatores históricos; campo de interação e comunicação; disposição geográfica; características significativas; símbolos e palavras; interesses; incorporação de indivíduos; liderança e política.

Os fatores históricos trazem informações interessantes sobre o início dos comportamentos dos brasileiros, considerados tóxicos, em servidores norte-americanos, trazendo a possível visão externa sobre jogadores brasileiros. Porém, talvez essa concepção de que brasileiros possam ser fanfarrões é mais antiga e é demonstrada em outros meios, como o caso do Zé Carioca no Universo Disney.

A forma de comunicação também se apresenta como uma característica marcante, uma vez que os Huebr sempre estão subvertendo o idioma norte-americano, por meio de frases sem sentido ou xingamentos, o que demonstra resistência às normas impostas a eles. Além disso, há uma das características marcantes da cultura que é encontrar zoeira em todas as ações possíveis, ou seja, a resistência pode ganhar mais força no grupo por ter um caráter cômico.

Acerca dos símbolos e palavras, há uma imagem (já apontada no texto) que simboliza toda essa cibercultura, além das palavras utilizadas para identificar membros deste grupo e também as expressões com erros na escrita do inglês, que possuem sempre a característica de resistência.

Em suma, os resultados e discussões apontaram para uma construção da cibercultura Huebr com características próprias e bem delineadas, além de resistências às imposições de jogadores de outras nacionalidades, principalmente relacionada ao idioma falado nos servidores de jogos online. E essa resistência permeia quase todas características dos comportamentos dos Huebr na internet.

Considera-se que o objetivo do trabalho foi alcançado, e elucida e dá margem para outras pesquisas relacionadas ao tema como, por exemplo, o relato de um dos participantes no acometimento do bullying em sua infância no ambiente escolar, o papel da escola no reconhecimento dessa situação e que também é assimilada pela cibercultura.

Abrange também investigações no processo formativo de professores e que estes possam desenvolver pesquisas de cunho etnográfico virtual sobre esta cibercultura, gerando uma aproximação entre professor-aluno, a capacidade de utilização de símbolos e memes nos ambientes de aprendizagem e na compreensão do grupo escolar encontrado atualmente nas salas de aula.

Outras pesquisas também se apresentam dando possibilidade de incorporação da cultura Huebr por pessoas de outras nacionalidades, que de certa forma não apareceu nas respostas dos membros, a resistência e permanência desse grupo nos jogos online, além das modificações que o grupo possa sofrer após um tempo de estudo.