Quem pode pedir intervenção militar

Já havia criticado o filósofo Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da "intervenção das forças armadas", assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Quem pode pedir intervenção militar
Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a crítica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

"Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema".

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de "bomba relógio" ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para "garantia da lei e da ordem" (sic), de tal modo que "o que virá depois" estaria "legalizado" de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que "lei e ordem" devem ser corretamente interpretadas. "Lei e ordem" não significam "autorização para intervenção golpista".

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado "A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar", quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar "constitucional" nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir "no caos".

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

Em resposta a questionamento feito pela ConJur, Celso de Mello, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, rechaçou frontalmente as declarações do ministro e general da reserva Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que disse em entrevista nesta segunda-feira (16/8) à noite, à rádio Jovem Pan, haver possibilidade de intervenção militar em caso de gravidade e de tensão extrema nas relações entre os Poderes.

Quem pode pedir intervenção militar
O ministro aposentado Celso de Mello

O militar afirmou não acreditar na hipótese "nesse momento" (sic) e disse que a intervenção das Forças Armadas está prevista no artigo 142 da Constituição, repetindo argumentos de bolsonaristas extremistas. Apesar da fala do general, não há brecha nesse artigo que autorize qualquer intervenção das três forças militares.

Para Celso de Mello, "a apologia da adoção (e prática) do pretorianismo, mediante distorcida interpretação do artigo 142 da Constituição, é repugnante e inaceitável, pois traduz expressão de ostensivo desapreço que perigosamente conduz à prática autocrática do poder, à asfixia dos indivíduos pela opressão do Estado e à degradação, quando não supressão, dos direitos fundamentais da pessoa cuja prevalência traduz, no plano ético, o sinal visível da presença de instituições que apenas florescem em solo irrigado pelo sonho generoso da liberdade e da democracia".

O ministro aposentado do STF afirmou ser "inquestionável" o fato de que o artigo 142 da Constituição Federal não confere "suporte institucional" nem legitima a intervenção militar em qualquer dos Poderes da República, "sob pena de tal ato, se consumado, traduzir um indisfarçável (e repulsivo) golpe de Estado".

Celso de Mello rememorou a advertência de Ulysses Guimarães, no encerramento da Assembleia Nacional Constituinte e promulgação da Carta de 1988, quando o deputado ressaltou a sacralidade do texto constitucional e atribuiu aos transgressores da Constituição o labéu de traidores da Pátria, afirmando, em pronunciamento que guarda impressionante atualidade, neste momento histórico, o seguinte: "Descumprir [a Constituição] jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria". E continuou a repetir a fala do presidente da Constituinte: "Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério."

Na conclusão de sua resposta, Celso de Mello afirmou que aquele que "admite a mera possibilidade de intervenção militar nos poderes do Estado, como o Judiciário e o Legislativo, é um profanador dos signos legitimadores do Estado democrático de Direito e conspurcador dos valores que informam o espírito da República!".

Leia abaixo a resposta de Celso de Mello:

"O entendimento recentemente revelado por certa autoridade da República mostra-se típico de quem não entende nada quando se trata de interpretação constitucional! A exegese em questão, além de primária e errada, notadamente porque sustenta a ideia esdrúxula de que residiria nas Forças Armadas o poder moderador, é igualmente preocupante, pois reflete, ainda que tal possa não ser a intenção de referida autoridade, a visão dos epígonos da autocracia, daqueles desejosos de desconsiderar a ordem democrática e de transgredir o Estado de Direito, cujos fundamentos de legitimação repousam na "rule of law", vale dizer, na soberania e no império da lei e da Constituição da República! Quem interpreta a Lei Fundamental de nosso país e dela extrai compreensão equivocada e juridicamente inidônea destinada a viabilizar uma inadmissível intervenção militar nos Poderes da República demonstra, com esse gesto de suprema infidelidade à majestade e à autoridade da Constituição, desprezo manifesto pelas instituições que compõem o sistema político-institucional brasileiro!

Em nossa Constituição, que consagra o dogma essencial da separação de poderes, repousa o fundamento de nossas liberdades! Preconizar a possibilidade, ainda que remota, de intervenção pretoriana no sistema institucional de nosso país constitui perversão do princípio democrático  e gesto profano de vilipêndio à ideia de República! Quem admite a mera possibilidade de intervenção militar nos poderes do Estado, como o Judiciário e o Legislativo, é um profanador dos signos legitimadores do Estado democrático de Direito e conspurcador dos valores que informam o espírito da República! A apologia da adoção (e prática) do pretorianismo, mediante distorcida interpretação do artigo 142 da Constituição, é repugnante e inaceitável, pois traduz expressão de ostensivo desapreço que perigosamente conduz à prática autocrática do poder, à asfixia dos indivíduos pela opressão do Estado e à degradação, quando não supressão, dos direitos fundamentais da pessoa cuja prevalência traduz, no plano ético, o sinal visível da presença de instituições que apenas florescem em solo irrigado pelo sonho generoso da liberdade e da democracia ! "Japona não é toga", como afirmou há décadas o saudoso senador paulista Auro de Moura Andrade!

A estratocracia não pode nem deve ser vista como sucedâneo possível, mesmo que pontual, do regime fundado na noção de democracia constitucional!!!!! Inquestionável é o fato de que o artigo 142 da Constituição Federal não confere suporte institucional nem legitima a intervenção militar em qualquer dos Poderes da República, sob pena de tal ato, se consumado, traduzir um indisfarçável (e repulsivo) golpe de Estado!

Cumpre não desconhecer, finalmente, neste ponto, a gravíssima advertência do saudoso e eminente deputado federal Ulysses Guimarães (1916-1992), em memorável discurso proferido em 05/10/1988, no encerramento da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou e promulgou a vigente Constituição da República, ao destacar a sacralidade do texto constitucional, estigmatizando com o labéu de traidor aquele — governante ou governado — que ousasse transgredir a supremacia da Lei Fundamental de nosso país, pronunciando, então, palavras candentes que guardam impressionante e permanente atualidade: "Descumprir [a Constituição] jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério."