Por que os jovens se cortam

Júlia Marques - Impresso

04 de maio de 2019 | 17h00

SÃO PAULO - “O que está doendo tanto em você para fazer isso?” Foi o que a aposentada Maria, de 40 anos, perguntou para Bárbara (nomes fictícios) quando viu cortes no braços da filha, de 11. “A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém.” Cada vez mais comuns entre crianças e adolescentes, as automutilações trazem à tona feridas emocionais de meninos e meninas e mobilizam escolas em planos de intervenções e ações preventivas.

Depois de terapia e a aposta em um esporte novo, aos poucos os cortes deram lugar às cicatrizes nos braços de Bárbara, mas a menina ainda vê colegas da mesma idade que passam pelo problema. O Brasil não tem dados específicos sobre o número de jovens que se automutilam. Nos corredores dos colégios e consultórios, porém, a sensação é de aumento.

'A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém', diz mãe de menina que se automutilava Foto: Felipe Barduchi/Estadão

Conhecer a dimensão das lesões entre adolescentes é um dos objetivos de uma lei sancionada na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). A norma prevê que escolas passem a notificar casos de automutilação a conselhos tutelares – a ideia é que a família também seja avisada, ao mesmo tempo. “É um fenômeno. Outros países enfrentam os mesmos dilemas e, para instituir políticas públicas, precisamos de dados precisos”, disse ao Estado a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A pasta vai articular a regulamentação da norma.

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A escola é vista por autoridades e especialistas com um papel central na identificação dos casos – parte ocorre dentro das unidades e com objetos cortantes de uso cotidiano dos estudantes. Mas, em meio a uma série de outros desafios ligados à aprendizagem e falta de recursos, os colégios ainda precisam superar tabus e a falta de formação de seus profissionais para lidar com o tema.

Pesquisadora da violência nas escolas há quase 20 anos, Miriam Abramovay se assustou quando percebeu o volume de relatos sobre automutilações em um estudo em escolas públicas do Ceará e Rio Grande do Sul. Realizada em 2016 e 2017, a pesquisa incluiu o tópico pela primeira vez e ouviu grupos de jovens. “Em uma escola onde fizemos pesquisa, devolveram ao professor um ‘kit de automutilação’. Disseram que não precisavam mais, já se sentiam reconhecidos não só pela escola, como também pela sociedade.”

“Era uma catarse, eles choravam muito”, lembra Miriam, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). “Tanto que começamos a levar caixinhas de lenço de papel", comenta.

Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Leila Tardivo observa, além do aumento, uma mudança no perfil. “Era mais entre mulheres acima de 20 anos, pessoas com problemas psiquiátricos. Agora, acontece em pessoas mais jovens, de 12, 13, 14 anos.” As meninas são maioria, mas a prática também ocorre entre os meninos.

Raramente há intenção de causar a morte. “Os adolescentes se machucam até para não se suicidar. Muitos dizem que a dor no braço é menor do que a tristeza”, diz Leila, que, com uma equipe da USP e pesquisadores da Universidade de Sevilha, na Espanha, participa de ações preventivas em escolas públicas de São Paulo.

Automutilação está ligada a frustrações e depressão

Para ela, o contágio pelas redes sociais – há jovens que publicam as lesões na internet e páginas que incentivam a prática – ajuda a explicar o fenômeno, mas não é a única causa. “A automutilação está ligada a frustrações, à depressão.” Os casos também podem vir após violência em casa, bullying e abandono. O tratamento inclui psicoterapia e, em geral, não dura menos de um ano.

Espaços como o ambulatório do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP se especializaram no assunto. Jovens com histórico de autolesões começaram a chegar em 2013 e não pararam mais. “Hoje, temos mais adolescentes com automutilação do que uso de drogas no ambulatório”, diz a psiquiatra do IPq Jackeline Giusti, que também tem recebido ligações de escolas em dúvida sobre como agir.

Foi depois da demanda de colégios que uma equipe do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) passou a estudar questões emocionais e afetivas relacionadas à automutilação entre adolescentes.

Para Antônio Augusto Pinto Júnior, professor da UFF, chama a atenção o número de jovens encaminhados pelas escolas de Volta Redonda, no Rio, onde o projeto é realizado: mais de dez em cada colégio. “Que problema é esse que está acontecendo com os jovens que eles precisam usar uma conduta autoagressiva para dar conta de suas questões?”, indaga.

A interrogação também ecoa entre professores e pais – que fazem parte de uma geração em que essa prática era menos comum. “Fiquei desesperada porque nunca imaginei que existisse isso”, conta Laís, de 37 anos, alertada pelo colégio de que o filho, aos 14, estava machucando os pulsos. Após terapia e o olhar atento da mãe, as lesões cessaram.

Para Gustavo Estanislau, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ainda é comum que as escolas reajam diante de casos de autolesão ou com susto excessivo ou banalização. Ele defende a abertura ao diálogo e o acompanhamento profissional.

“Temos de ter cuidado para não sobrecarregar o educador, mas fortalecê-lo para identificar e fazer ao menos o primeiro movimento de encaminhar ao orientador”, diz ele, que faz parte do projeto Cuca Legal, de formação de professores.

PRESTE ATENÇÃO

1. Feridas. A automutilação tem se tornado mais comum, mas não deve ser banalizada. Ela pode indicar dificuldades emocionais. 

2. Comportamento. Fique atento a mudanças de humor e isolamento. O uso de mangas compridas no calor pode indicar uma tentativa de esconder lesões.

3. Apoio. Caso identifique a situação, acolha o adolescente, escute os motivos e evite repreendê-lo. Procure ajuda profissional. 

Conheça os projetos e saiba onde buscar ajuda: 

Centros de Atenção Psicossocial (Caps)

Lista de contatos das unidades em São Paulo aqui.  

Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP

Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785 

ipqhc.org.br

Projeto Cuca Legal, da Unifesp

cucalegal.org.br

Apoiar, do Instituto de Psicologia da USP

ip.usp.br/site/apoiar

Guia para diretores e professores, da Flacso

flacso.org.br/files/2018/08/Guia-Diretores

bullying depressão escola adolescência criança

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Júlia Marques - O Estado de S.Paulo

04 de maio de 2019 | 17h00

SÃO PAULO - Com pulseirinha amarela, Julia Gracio, de 15 anos, circula pelos corredores do colégio. O acessório é um sinal de que ela está ali, de olhos bem abertos e ouvidos atentos para identificar sinais de sofrimento entre os colegas.

Cresce alerta para automutilação entre crianças e adolescentes no Brasil

Desde o ano passado, parte dos alunos do ensino médio no Colégio Bandeirantes, na cidade de São Paulo, é voluntária em uma equipe de apoio. Eles têm o objetivo de notar situações de conflito ou isolamento e ser um ponto de escuta na escola. “Por estar mais perto dos alunos, a chance de a gente perceber algo de errado é maior”, diz a aluna do 2º ano.

Julia Gracio, de 15 anos, integra equipe de apoio do colégio Bandeirantes  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Assim como iniciativas em outras escolas, o projeto do Bandeirantes busca melhorar a convivência na escola e prevenir casos de violência – contra o outro ou autoprovocadas. Houve dois suicídios de estudantes do colégio no ano passado.

“Existem casos de depressão, ansiedade e até uso de substâncias ilícitas que foram trazidos por esse grupo (de ajuda). Conseguimos fazer uma intervenção mais próxima com a família”, conta Estela Zanini, diretora de convivência do Bandeirantes. Segundo ela, casos de automutilação não são frequentes, mas já ocorreram.

Os alunos da equipe passam por treinamento com especialistas e são acompanhados por profissionais da escola, mas sabem que nem sempre podem ir longe. “Aprendemos que, por mais que a gente queira ajudar, não somos psicólogos”, diz Julia.

O apoio entre estudantes também é uma aposta do Stance Dual. Uma equipe formada por alunos de 12 a 14 anos, escolhidos pelos próprios colegas, é acionada presencialmente ou por e-mail sobre angústias e conflitos na escola.

“A ideia não é sair resolvendo a vida de todo mundo, mas acolher”, diz a orientadora educacional Ana Cláudia Correa. A maioria dos assuntos não chega ao conhecimento dos adultos – mas há uma só condição. “Eles têm a obrigação de nos comunicar caso saibam de qualquer caso de mutilação, ameaça de vida ou abuso.”

No Colégio Rio Branco, o tema também mobiliza a equipe. Professores ficam atentos a possíveis tentativas de esconder ferimentos, como mangas compridas em dias quentes, e um banco de pesquisas sobre depressão e ansiedade também é colocado à disposição dos educadores.

Se são detectados casos de autolesão, a escola conversa com o aluno e pode dar até um prazo curto para que ele mesmo fale com os pais, caso prefira. “Mas se a gente perceber que se trata de uma situação de risco, logo notificamos a família”, diz Juliana Gois, orientadora de apoio à aprendizagem.

ensino médio depressão escola suicídio

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Daniel Martins de Barros - O Estado de S.Paulo

04 de maio de 2019 | 17h03

Já aconteceu com você. O sol está forte e a gente mal consegue abrir os olhos, até que entramos em um lugar fechado e aí sim não enxergamos mais nada. O contraste súbito atrapalha a visão. E quando voltamos para nossos silenciosos aposentos vindos de uma festa barulhenta? Aquele silêncio soa estranho aos ouvidos.

COLUNA: Quanto mais bizarro, melhor

Coisa parecida acontece quando temos visitas por um tempo em casa e de repente elas se vão. Uma sensação de vazio toma conta do lugar. Ao alívio soma-se a solidão, um desconfortável sentimento de “E agora?”. Os nativos Baining, de Papua Nova Guiné, têm nome para esse sentimento: awumbuk. Eles acreditam que os visitantes deixam para trás um peso para viajar mais leve, trazendo sofrimento e atrapalhando por três dias a vida de quem fica. Mas eles têm uma receita: põe uma tigela com água repousando descoberta no meio da casa durante a noite, depois que os visitantes partem, para que ela absorva o awumbuk. Na manhã seguinte, jogam a água nas árvores e tudo se restabelece.

Os sofrimentos emocionais são, ao mesmo tempo, experiências desagradáveis e inevitáveis. Apesar de tão constantes, nós nunca nos acostumamos. Toda cultura cria maneiras de tentar livrar-se deles. O ritual dos Baining é apenas um exemplo de prática cultural para enfrentamento de emoções negativas.

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Nossa sociedade também tem os seus meios incorporados à cultura. Quem nunca ouviu o conselho de ir às compras para espantar a tristeza, por exemplo? Ou de socar um travesseiro para se livrar da raiva? Assim como a tigela de água dos nativos, tais receitas são adotadas menos por sua eficiência clinicamente comprovada e mais pela influência de práticas culturais. Quanto mais difundidas, mais elas parecem fazer sentido.

A automutilação e as tentativas de suicídio aparentemente vêm se incorporando ao repertório cultural, sobretudo dos mais jovens, de formas de lidar com o sofrimento. Tentar se matar revela a presença de uma dor que parece insuportável, mas também quem se fere sem a intenção de morrer tem como principal motivação o alívio de pensamentos ou sentimentos. Como se faltassem outros recursos para lidar com eles que não calá-los à força de sua disputa com a dor física.

O dilema que se cria é que, se não podemos deixar de falar do tema, uma vez que ele tem se tornado parte das vivências dos mais jovens, temos de fazê-lo de forma a não reforçar sua incorporação ao leque de recursos culturalmente validados para alívio do sofrimento. Caso contrário, podemos incorrer no erro do fenômeno 13 Reasons Why. Uma pesquisa publicada este mês mostrou que no mês seguinte à estreia da série – que conta como uma adolescente se matou em razão de seus sofrimentos na escola – houve um aumento de 29% nos suicídios na faixa etária de 10 a 17 anos nos Estados Unidos. Ao apresentar o suicídio como uma saída para a protagonista, de alguma forma a série valida o comportamento.

Acredito numa abordagem diferente. Dar a dimensão real do problema e sugerir alternativas. No fim do ano passado foi publicada uma meta-análise com dados referentes à autolesão em quase 600 mil adolescentes nos últimos 25 anos. Antes de eu revelar o número, gostaria de propor um exercício ao leitor: tente adivinhar qual a porcentagem de jovens já se cortou de propósito. Arrisca um palpite? Vamos lá: a prevalência do problema foi de 16,9% de autolesão pelo menos uma vez na vida. Ou, dizendo de outra maneira, 83,1% dos jovens nunca se feriu intencionalmente. Além disso, dos que o fizeram, praticamente metade o fez uma ou no máximo duas vezes na vida. 

O fato de mais de 90% dos adolescentes não terem na automutilação um problema grave não significa que ele não mereça atenção. Em números absolutos, os que o fazem são muitos e requerem cuidados. Mas, por mais que cientistas e jornalistas precisem investigar por que alguns jovens lidam dessa forma com o sofrimento, é preciso lembrar que a maioria ainda tem outras saídas melhores. Identificar quais são elas e reforçar seus aspectos positivos – divulgando-as a ponto de serem incorporadas também em nossa cultura – pode ser uma excelente estratégia de prevenção. 

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