A primeira parte destas notas mostrámos como o Puro-Sangue Árabe chega aos nossos dias com um passado único, longínquo e misterioso. Neste segundo ensaio tentaremos determinar se o padrão actual da raça está em acordo com as qualidades que lhe eram exigidas há muitos séculos, aquelas que fizeram do Árabe o rei dos cavalos, numa época em que ele era um animal essencialmente útil e funcional e não um ”objecto de exposição”, como alguns dos recentemente “fabricados” para os concursos de “show” de diferentes países. Pescoço de CisneA partir do século quinto, para mais facilmente definir as particularidades do Cavalo Árabe e para melhor ilustrarem o que queriam transmitir, autores antigos fizeram comparações diversas, algumas cheias de humor. Amadores de cavalos e de mulheres, os árabes faziam constantes paralelos entre os dois seres vivos que mais amavam:
Também muitos livros antigos referem as características do Cavalo Árabe relacionando-as com as de outros animais. Assim, em acordo com aqueles escritos, o cavalo árabe deve ter:
Evidentemente, muitos eruditos descreveram as qualidades do nobre cavalo de uma maneira que, sendo menos imaginativa, tem o mérito de um maior realismo. Em particular na obra escrita no século catorze por Ben Hodeil, encontramos interessantes informações que confirmam escritos ainda mais antigos. Resumem-se assim:
Pela enumeração transcrita constatamos que os caracteres mais apreciados pelos árabes do século catorze, não são os mais louvados por certos júris estrangeiros dos nossos dias, que parecem olhar mais para os olhos do animal do que para os seus curvilhões. É que naquela época o cavalo árabe devia ser capaz de cumprir as pesadas tarefas impostas pelo seu cavaleiro, e assim, logicamente, as qualidades psíquicas e funcionais tinham maior importância que as puramente estéticas. Bons membros eram a primeira qualidade exigida, como explicava claramente Maomé: “As patas do cavalo e a fé do coração são a força do guerreiro”. Também outro erudito da época aconselhava: “Quando fores adquirir um cavalo, antes de o olhares manda-o encobrir inteiramente. Começa depois por lev antar lentamente o pano de maneira a só veres os cascos, as canelas e os joelhos. Se não te agradarem vai-te embora, se te agradarem podes ordenar que destapem completamente o animal ...”. E conclui: “... se estas qualidades (dos membros) estiverem ausentes, o cavalo não tem valor nenhum, porque totalmente inútil, mesmo que o resto corresponda ponto por ponto às formas estéticas mais estimadas das diferentes partes do seu corpo”. Um bom conselho da época de Maomé, que deveria ser sempre seguido ... Ainda hoje certos critérios de apreciação baseiam-se na tradição árabe, na “Lei das Quatro”, que nos resume Elias Abouzeid. Para ele o Cavalo Árabe deve possuir quatro coisas largas - a testa, o peito, a garupa e os membros -, quatro coisas longas – o pescoço, o braço, o ventre e as ancas -, quatro coisas curtas – o rim, as quartelas, as canelas e o osso da cauda -. Incontestavelmente os árabes julgavam os seus animais na acção, pela resistência à fatiga, à fome e à sede, pela maneabilidade no combate, pela coragem na caça, e pela obediência e dedicação ao seu dono. Sem dúvida davam uma maior importância às qualidades físicas e morais que aos dons puramente estéticos. Isto não quer dizer que a beldade do animal não tinha importância. Tinha-a e muita, pois era sinónimo da tão procurada e indispensável pureza, definindo “o tipo” do cavalo que é hoje o Puro-Sangue Árabe. E provam-no muitas descrições detalhadas. Uma das mais conhecidas foi feita pelo eminente Carl Raswan, que caracteriza a perfeição estética da raça em oito pontos todos ligados à cabeça:
Menos evidentes são as opiniões respeitantes à pelagem. Frequentemente o branco puro era a “cor dos príncipes”. O russo era muito estimado, especialmente se sabino, “sobretudo quando a cabeça é mais clara que o corpo”. Segundo um ditado árabe, “se encontrares um cavalo ruço mosqueado, compra-o; se não quiserem vender-to, rouba-o”. O preto devia ser intenso, “como uma noite sem lua e sem estrelas”. O castanho “era o mais sóbrio e o mais resistente”. O alazão torrado seria procurado, por ser a cor preferida de Maomé. A pelagem era também comparada com os “os humores e com os elementos naturais”. “O branco, significaria pureza e fleuma como a água; o negro, melancolia como a terra; o amarelo, cólera como o fogo; o vermelho, sangue como a vida”. As malhas brancas podiam ser apreciadas, dentro de certas regras: “O cavalo mais abençoado é aquele que tem branco na testa”. “O cavalo baixo calçado pode ser estimado, mas ser muito alto calçado é sempre um defeito”. Os rodopios também mereciam atenção. O bom cavalo deveria ter 1 a 3 rodopios na testa, um de cada lado do pescoço junto à crina, 2 no peito, dois nas virilhas e um no umbigo. Um rodopio próximo do coração (passagem da cilha), era considerado péssimo e os situados nas espáduas bastante maus. É evidente que o Cavalo Árabe dos nossos dias evoluiu, por diversas razões de que destacamos três: mudança de habitat, mudança de alimentação e mudança de utilização. No deserto o cavalo estava habituado a uma vida extremamente dura que exigia qualidades fora do vulgar, tanto físicas como psíquicas. Um sol ardente, ventos de areia, sede, fome, longas marchas, não deixavam sobreviver senão os animais com uma constituição e um moral excepcionais. A magra alimentação era essencialmente baseada em tâmaras e leite de cabra ou de camelo. A utilização era a guerra, a caça, o nomadismo sem tréguas. Hoje, as condições de vida são mais fáceis, originando talvez uma ligeira perca de rusticidade. A alimentação do Puro-Sangue Árabe é muito mais rica e equilibrada, dando-lhe um pouco mais de peso e de altura. A utilização também mudou, provocando transformações. É o caso da selecção de reprodutores para as corridas que deu origem a óptimos cavalos, mais longilíneos mas extremamente funcionais, ou a lamentável moda dos animais fabricados para os concursos de “show” que deu origem a “bonitas porcelanas” maioritariamente inutilizáveis. Adaptado aos nossos dias o Cavalo Árabe modificou-se um pouco mas, se excluirmos as tais “porcelanas”, verificamos que ele conserva todas as qualidades fundamentais de antão, que continuam a ser-lhe exigidas: Sem gordura, membros secos e fortes, curvilhão e canelas espessas, pescoço comprido, espádua (omoplata) obliqua, braço pouco inclinado, garrote destacado, garupa potente, cauda inserida alta, mucosas finas; movimentos amplos; moral de aço; resistência e poder de recuperação incomparáveis; formas extremamente elegantes; familiaridade com o homem; coragem, vitalidade, inteligência e jovialidade sem iguais. Enfim, um atleta magnífico e um companheiro devoto que continuará indubitavelmente a ser o melhorador e o fundador das outras raças cavalares, apresentando-se como um dos últimos sinais vivos de genuinidade, nobreza e liberdade. Manuel Heleno |