O que é educação popular brandão pdf

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Cultura popular e educação popular:

expressões da proposta freireana

para um sistema de educação

Popular culture and popular education:

an expression of Freire’s proposal

for a kind of education system

Carlos Rodrigues Brandão1

Maurício Cesar Vitória Fagundes2

RESUMO

Este artigo discute a proposta de cultura e educação popular, desenvolvida

a partir dos anos 1960, por Paulo Freire, como possibilidade de articular e

fundamentar sua proposta e/ou sistema de educação, contemplando da alfa-

betização à universidade. A proposta reúne elementos com forte suciência

para pensar a educação para além da concepção dita tradicional, em que a

“informação cultural” em suas múltiplas expressões e a educação eram, ou

ainda são, utilizadas como recursos pedagógicos para transferir a setores

populares conhecimentos eruditos, carregados da lógica dominante. Os

movimentos emergentes dos anos 1960, em que a cultura e a educação são

rediscutidas em diálogo com a cultura popular, sonhavam tornarem-se meios

para efetuar uma comunicação biunívoca, de efeito conscientizador. Para

tal, tomam como referência os valores da cultura de grupos e comunidades

populares como elementos próprios de reexão coletiva sobre as condições

de vida e o signicado dos símbolos do povo; seguidos da reexão cole-

tiva que consubstanciasse o pensamento do povo de um sentido humano

e crítico, que os movimentos de cultura popular reconheciam terem sido

perdidos, ao traduzir-se em termos de “cultura de massas”. Assim, importa

empreender a recuperação dos valores do povo como aporte do novo modo

1 Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. Av. João Naves de

Ávila, nº 2.121, Santa Mônica. CEP: 38.408-100. E-mail:

2 Universidade Federal do Paraná. Setor Litoral. Programa de Pós-Graduação em Educação.

Matinhos, Paraná, Brasil. Rua Jaguariaiva, nº 512. CEP: 83.260-000. E-mail: mauriciovitoriafa-

DOI: 10.1590/0104-4060.47204

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de compreender o mundo, saber vivê-lo e transformá-lo. Nessa perspectiva,

problematizamos possibilidades de transição da dita concepção tradicional

para uma educação transformadora ou humanizadora, que abarque da alfa-

betização à universidade popular.

Palavras-chave: educação popular; cultura popular; sistema freireano de

educação.

ABSTRACT

This work discusses proposals of popular culture and popular education.

The education system developed by Paulo Freire in 1960 can be applied

from primary education to college. These proposals gather elements to

think beyond the traditional education methods. In these methods, pieces

of “cultural information” and education in their multiple expressions are

used as pedagogical tools whose main purpose is the dissemination of

dominant knowledge among a larger population. The social movements of

the sixties, a time during which culture and education were rediscovered in

a dialogue with popular culture, dreamt about becoming ways of performing

a biunivocal communication of awareness eect. Then, they take values of

groups’ cultures and popular communities’ values as adequate elements for

collective reection on living conditions and meanings of popular symbols;

followed by a collective reection that substantiated popular thoughts of

human and critical sense, which popular cultural movements recognized as

lost concepts that were thrown away when they were translated into “mass

culture”. Therefore, it should bring a renewed sense of how to interpret,

live and transform the world. Thus, we discuss current possibilities of

transforming traditional education into a new humanizing perspective

that would encompass all levels of education, from primary schools to

universities.

Keywords: popular education; popular culture; Freire’s educational system.

A cultura, a educação popular e suas circunstâncias

A discussão sobre cultura e educação popular, em termos de tempos his-

tóricos, assenta-se no movimento pós-Segunda Guerra Mundial. O período foi

mundialmente caracterizado como Guerra Fria e, em termos de Brasil, como

período da redemocratização. No Brasil, vivia-se política, econômica e cultu-

ralmente o tensionamento estabelecido pela proposta capitalista, representada

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pelos Estados Unidos e Europa, manifestada por meio do modelo desenvolvi-

mentista e, de outra banda, a proposta socialista, representada pela então União

Soviética, China e Cuba.

Em se tratando do continente americano, no nal da década de 1950 e

nos anos iniciais da década de 1960, a Revolução Cubana acirrava os efeitos

da Guerra Fria. Esse movimento de possibilidade de ruptura animava propos-

tas de transformação da ordem social, consideradas injustas e inaceitáveis. De

outro lado, os defensores da ordem estabelecida pelo grande capital resistiam

a essas mudanças, porém percebiam que as precárias condições de vida das

pessoas do Nordeste possuíam elementos para, quem sabe, transformar-se em

uma segunda Cuba.

Nesse cenário, a Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil (CNBB), em março de 1961, criou o Movimento de Educação

de Base (MEB), com o apoio do governo federal. O MEB tinha como preocu-

pação inicial o desenvolvimento de um processo educativo, por meio de escolas

radiofônicas, atingindo as zonas rurais das áreas subdesenvolvidas das regiões

Norte, Nordeste e Centro-Oeste. As escolas radiofônicas, segundo Fávero (2006),

já haviam sido utilizadas no ano de 1950 em uma experiência de alfabetização

de adultos em Valença, no Rio de Janeiro, porém “[...] indica-se normalmente

como sua matriz principal a experiência de Monsenhor Salcedo, em Sutatenza,

que deu origem à Acción Cultural Popular (ACPO), na Colômbia”. (FÁVERO,

2006, p. 3).

Cabe destacar que a proposta de educação de base, originalmente, fazia

parte do ideário da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

e a Cultura (UNESCO), em seus programas de educação para os povos subde-

senvolvidos, e havia sido introduzida no Brasil a partir de 1947, pela Campanha

Nacional de Alfabetização de Adultos e pela Campanha Nacional de Educação

Rural (CNER), com atuação signicativa até meados dos anos de 1950. (FÁ-

VERO, 2006). Esse movimento da década de 1950 se caracteriza como uma

transposição de experiências, que visavam atender a aceleração e a moderniza-

ção do processo econômico brasileiro. As experiências se apresentavam como

extensão rural, desenvolvimento de comunidades, educação de base e educação

de adultos. (FÁVERO, 1983, p. 8).

A proposta de educação de base, estimulada pela UNESCO, desde 1947,

fazia aproximações entre os altos índices de analfabetismo das populações

adultas nas regiões consideradas como atrasadas e o baixo grau de desenvol-

vimento econômico, tomando como referência a ótica do capital. Logo, sob

essa lente, o analfabetismo era um câncer que precisava ser eliminado, pois

atrasava o desenvolvimento do Brasil. Nessa direção, o currículo proposto

baseava-se em conhecimentos, como: ler, escrever e calcular, considerados como

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aprendizagens sucientes para o desenvolvimento do pensamento; trabalhos na

agricultura, técnicas comerciais, trabalhos caseiros e edicação, para promover

o desenvolvimento prossional e o progresso econômico; desenvolvimento de

habilidades domésticas, para poder trabalhar com crianças, enfermos e prepara-

ção de alimentos; meios de higiene pessoal e coletiva, para o desenvolvimento

moral e intelectual, entre outros.

Para Prado Junior (1966), o Brasil dos anos 1960 se encontrava em um

momento pré-revolucionário,

[...] em face ou na iminência de um daqueles momentos acima assinala-

dos3 em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de

reestruturarem a vida do país de maneira consentânea com suas neces-

sidades mais gerais e profundas, e as aspirações da grande massa de sua

população que, no estado atual, não são devidamente atendidas. (PRADO

JUNIOR, 1966, p. 3).

Para além da proposta curricular e do entendimento de educação como pre-

paradora de recursos humanos para a indústria e modernização da agropecuária,

coexistia, também, a concepção de educação como formadora da consciência

nacional e instrumentalizadora de profundas transformações político-sociais na

sociedade brasileira, como possibilidade de emancipação humana.

Decorrente das discussões estabelecidas pelos países socialistas, como

possibilidade de romper com o predomínio elitista da cultura, as expressões

cultura popular, educação popular e educação de base eram colocadas como

bem cultural de acesso a todo povo e, no contexto brasileiro, careciam do reco-

nhecimento de suas positividades:

[...] procurava-se denir o papel da cultura na revolução brasileira. E as

pessoas e os grupos que reescreveram essa expressão, no pródigo, embora

conturbado Brasil dos anos 60, tentaram praticar tudo que pensaram que

ela queria e podia signicar. Acreditavam sobretudo que por diferença

ou por oposição, reinventavam ideias e propunham novas práticas. (FÁ-

VERO, 1983, p. 7).

3 O “momento” a que se referia Prado Junior dizia respeito à “Revolução”, a qual dene

como processo histórico assinalado por reformas e modicações econômicas, sociais e políticas

sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente curto, vão dar em transformações

estruturais da sociedade e, em especial, das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das

diferentes classes e categorias sociais. (PRADO JUNIOR, 1966, p. 2).

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Começava a organização de um projeto político educacional que, por meio

da conscientização e da politização das classes populares, pudesse superar a

dominação do capital e transformar, pelas mãos do povo, a ordem das relações

de poder e da própria vida do país. Esse movimento não poderia prescindir do

reconhecimento das positividades da cultura popular, entendida por Gullar (1983)

como a tomada de consciência do povo acerca da realidade brasileira: “[...] é

compreender que o problema do analfabetismo, como a deciência de vagas nas

Universidades, não está desligado da condição de miséria do camponês, nem

da dominação imperialista sobre a economia do país”. (GULLAR, 1983, p. 51).

A relação intrínseca entre dominantes e dominados, seja de outros países

sobre o Brasil ou mesmo nas relações internas, manifesta-se no plano político-

-econômico e cultural. “A luta interna de libertação liga-se profundamente à

cultura popular, que assume no primeiro momento o sentido de desalienação

de nossa cultura, sobrepondo aos valores culturais estranhos, valores criados

e elaborados aqui”. (FÁVERO, 1983, p. 74). Reforça o autor que o sentido de

cultura popular não é um meio político de preparação das massas para conquistar

o poder, mas um profundo sentido dialético entre cultura popular e libertação

humana.

Acerca da teoria da revolução brasileira, Prado Junior (1966, p. 15) defende

que para ser algo “[...] efetivamente prático na condução dos fatos, será a inter-

pretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo

esse que, na sua projeção futura dará cabal respostas às questões pendentes”.

Nessa senda, a alfabetização de adultos de Paulo Freire e de seu grupo

tinha como pressupostos o estabelecimento de uma relação dialética da educação

com a cultura; a busca de um método ativo capaz de criticizar o homem através

do debate de situações desaadoras postas diante do grupo, que deveriam ser

existenciais para o grupo. (FREIRE, 1983, p. 113). Decorrente desse processo,

viria o movimento de construção de uma nova concepção de educação, cujo

foco não seria mais instrumental, mas um método dialogal, ativo, participante,

crítico e criticizador sobre sua vida, suas relações com o meio e sua percepção

como sujeito ativo, tendo a cultura como resultado de seu trabalho.

Paulo Freire e a cultura popular

Paulo Freire, ao relatar sobre sua trajetória de vida, na obra “Conscienti-

zação”, no capítulo intitulado “O Homem e sua experiência – Paulo Freire por

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si mesmo”, descreve de forma sucinta sua biograa. Desta, destacamos aspectos

ligados à infância e à imersão na concretude da vida:

[...] em Jaboatão perdi meu pai. Em Jaboatão experimentei o que é a fome

e compreendi a fome dos demais. Em Jaboatão, criança ainda, converti-

-me em homem graças à dor e ao sofrimento que não me submergiam

nas sombras da desesperação. Em Jaboatão joguei bola com os meninos

do povo. Nadei no rio e tive “minha primeira iluminação”: um dia con-

templei uma moça despida. Ela me olhou e se pôs a rir... Em Jaboatão,

quando tinha dez anos, comecei a pensar que no mundo muitas coisas

não andavam bem. Embora fosse criança comecei a perguntar-me o que

poderia fazer para ajudar aos homens. (FREIRE, 1980, p. 14).

Sobre sua trajetória escolar e acadêmica, Freire ênfase aos estudos sobre

Gramática, Literatura, Filosoa e Psicologia da Linguagem, “[...] enquanto se

tornava professor do curso ginasial”. Destaca, também, que sua formação teve

grande inuência de sua primeira esposa, Elza Freire, com quem se casou em

1944, aos 23 anos:

[...] à Elza, professora primária e, depois, diretora de escola, devo muito.

[...] Foi a partir do casamento que comecei a me preocupar sistematica-

mente com problemas educacionais. Estudava mais educação, Filosoa

e Sociologia da Educação que Direito, curso que fui um aluno médio.

(FREIRE, 1980, p. 15).

Formado em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco, percebeu

já no início de sua primeira experiência de atuação prossional que essa não

seria sua realização prossional, pois, ao se defrontar com sua primeira causa,

a cobrança de uma dívida, abandonou a prossão. A razão da decisão estava,

intimamente, ligada com sua postura ética diante da vida e da sociedade. Freire

relata que se sentiu feliz com a decisão tomada. A inclinação para ser educador

era mais forte. No Serviço Social da Indústria (SESI) retoma seus diálogos com

o povo. Como diretor do Departamento de Educação e de Cultura do SESI, em

Pernambuco, e depois na Superintendência, de 1946 a 1954, fez suas primeiras

experiências que o conduziram, mais tarde, à sistematização daquilo que se

tornou conhecido como Método Paulo Freire, que iniciou em 1961.

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Em 1960, Paulo Freire concorria à Cátedra de História e Filosoa da

Educação, da Escola de Belas Artes da Universidade do Recife. Sua tese

“Educação e Atualidade Brasileira”, que, mais tarde, se transformaria em livro,

“[...] expunha um pensamento original, ponto de partida para a elaboração

de uma obra pedagógica que alcançaria repercussão praticamente mundial”.

(ROSAS, 2001, p. LXVIII). Porém, Paulo Freire obteve o segundo lugar, fato

que, segundo Rosas (2001), teria sido o propulsor de sua imersão na proposta

de Cultura Popular, por meio de sua ação no Serviço de Extensão Cultural da

Universidade do Recife (SEC) e na vinculação com o Movimento de Cultura

Popular, este criado por Miguel Arraes, juntamente com estudantes, o povo e

intelectuais pernambucanos.

No início da “década que não acabou”, como cou conhecido o período

dos anos de 1960, esboços de novas ideias e propostas de ação social, através

da cultura e da educação, junto às classes populares, emergem no Brasil e se

difundem pela América Latina. Nos seus primeiros documentos, a ideia de uma

nova cultura popular irrompe como uma alternativa pedagógica de trabalho

político, que parte da cultura e se realiza por meio da cultura.

Associadas a projetos que vieram a constituir, mais tarde, a educação po-

pular, foram criados os primeiros movimentos de cultura popular em algumas

regiões do Brasil. Osmar Fávero (1983) organizou uma obra com diferentes

sujeitos desse processo, tornando evidente a ideia de que, apesar de divergentes

em alguns pontos essenciais, as iniciativas reunidas nos e como movimentos

de cultura popular, dos cinco primeiros anos da década dos anos 1960, partem

de uma releitura crítica da política, da sociedade e da cultura brasileira. Esses

movimentos repensam de forma radical o que deveria caracterizar as interações

entre aqueles que escrevem teoria e estabelecem propostas de ação cultural

inclusive no campo da educação – e os sujeitos populares criadores de cultura.

Os movimentos de cultura popular partem do princípio de que o trabalho

de transformar e signicar o mundo é o mesmo que transforma e signica o

homem e a mulher. Como uma prática sempre coletiva e socialmente signica-

tiva, o ser humano se realiza através de ações culturalmente tidas como neces-

sárias e motivadas. Assim, a própria sociedade, em que o homem e a mulher

se convertem em um ser humano, é parte da/s cultura/s, no sentido mais amplo

que se possa atribuir a esta palavra. Também a consciência do homem e da mu-

lher – como aquilo que permite a eles não apenas conhecer, como os animais,

mas conhecer-se conhecendo, e que lhe faculta transcender simbolicamente o

mundo da natureza de que é parte e sobre o qual age – é uma construção social,

que constitui e realiza o trabalho humano de agir sobre o mundo, enquanto age

signicativamente sobre si mesmo.

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Se por toda a parte existe na sociedade capitalista, desigual e excludente,

uma invasão cultural do polo erudito/dominante sobre a cultura popular, um

projeto de ruptura social da desigualdade, da injustiça e da marginalização de

pessoas e comunidades populares deveria possuir uma dimensão também cul-

tural. Nessa direção, as propostas de cultura popular dos anos 1960 propõem

uma radical inversão, em termos do que se pensava como sendo “o processo

da cultura”. E esta é a ruptura inovadora que repensa o processo da cultura e

a prática da educação em seu interior, como uma contribuição revolucionária

na questão da participação de intelectuais militantes e “comprometidos com o

povo”, no bojo do próprio projeto popular de sua libertação.

Uma educação que, usando termos caros a Paulo Freire, vá além de ensinar

pessoas a apenas lerem e repetirem palavras, as coensinem a lerem criticamente

o seu mundo. Para tornar educandos populares sujeitos críticos e criativos, por

meio de uma prática de crescente reexão conscientizada e conscientizadora, o

papel do educador “erudito” e “comprometido” consiste em assessorar homens

e mulheres das classes populares na tarefa de ajudar – de dentro para fora e de

baixo para cima – a se tornarem capazes de serem os construtores de uma nova

cultura popular, a partir de novas práticas coletivas.

Esse caminho de criação de uma polivalente cultura popular que, passo

a passo, seria despojada de valores impositivamente dominantes, que reetem

a lógica do lugar social hegemônico do mundo e da vida para, nalmente, se

constituir livre dos saberes, sentidos, signicados e valores dela e de seus en-

ganos. Uma nova cultura, nascida de atos populares de liberação, que espelhe,

na prática da liberdade, a realidade da vida social em toda sua transparência.

Sendo um processo de trânsito de uma concepção de cultura e educação

popular para outra, Freire (1983) destaca que por ser um processo dialético os

valores emergentes vão se estabelecendo, na busca de armação no tensiona-

mento com os valores de ontem, que buscam a preservação.

Considerando que na sociedade capitalista há uma produção e uso siste-

mático das manifestações culturais, a serviço de sua preservação, caberia aos

promotores da cultura e educação populares empreender no trabalho ideológico

de recriação com o próprio povo, de sua própria cultura. Assim, culturas do

povo deveriam ser transformadas em autênticas culturas populares, através de

experiências dialógicas de Cultura Popular.

Um dos desaos postos era, ao invés de promover uma invasão cultural,

criar situações existenciais para que o homem e a mulher analfabetos pudessem

romper com a compreensão mágica sobre a realidade, sentindo-se “[...] capaz

de superar a via puramente sensível da captação dos dados da realidade, por

uma via crítica”. (FREIRE, 1983, p. 113). Freire lembra que outra referência

seria a da clareza de que a educação trava uma relação dialética com a cultura

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e que, portanto, não poderia a experiência educativa sobrepor-se à realidade

contextual desses sujeitos, sob pena de repetir as falhas da educação alienada.

Ao tomar como referência a cultura como um processo histórico, portanto

dialético, é possível armar que o homem e a mulher, em relação ativa (conhe-

cimento e ação) com o mundo e com os outros homens e com as outras mulhe-

res, “[...] transformam a natureza e se transformam a si mesmos, construindo

um mundo qualitativamente novo de signicações, valores e obras humanas e

realizando-se como homem/mulher neste mundo humano. (FÁVERO, 1983, p.

16). Nessa lógica, a ação política através de ações culturais, para ser libertadora,

deveria partir dos símbolos e dos signicados das próprias raízes culturais po-

pulares – a arte popular, os saberes populares, as diferentes tradições populares

em todas as suas dimensões, os costumes, etc. –, repensando-as a partir da

associação entre a sua experiência de vida e a autônoma interação com/entre

os agentes e os recursos do movimento de cultura popular.

Analisando dialeticamente, esse mesmo processo que pode ser libertador,

pode ser usado para a dominação. Como mediadora de dominação, a cultura

manifesta-se como anti-histórica – quando impede a realização do ser humano

na livre comunicação com outro ser humano; anti-social – ao impedir a reali-

zação da comunicação como uma tarefa comum para edicação da sociedade

como mundo humano; antipessoal – ao trazer em si uma referência ao outro ser

humano como objeto de dominação; e antiuniversal – ao separar o todo social

em grupos privilegiados e grupos espoliados. (FÁVERO, 1983, p. 19).

A polarização ideológica da cultura contemporânea e seu uso para ma-

nutenção da alienação dos sujeitos colocam em pauta o desao de fazer com

que a cultura seja promotora de realização do homem e da mulher como seres

de comunicação, possibilitando a abertura das consciências num grau de uni-

versalidade crescente. Nessa direção, Fávero (1983, p. 23) arma que “[...] é

popular a cultura que leva o homem e mulher a assumir a sua posição de sujeito

da própria criação cultural e de operário consciente do processo histórico em

que se acha inserido”.

Ao situar o homem e a mulher na condição de criadores e não só de re-

ceptores das expressões culturais, Paulo Freire revela a possibilidade de que

o movimento de cultura popular seja nalmente reexivo e não reexo, com-

pletando, assim, a sua missão histórica quando se armasse como uma livre,

autônoma e aberta cultura nacional. Rompidas as estruturas de domínio de uma

classe social sobre as outras, ambas se uniriam em um mesmo sistema aberto

de símbolos, de múltiplos saberes e de sensibilidades e signicados, regido pela

possibilidade de recriação de valores e conhecimentos fundados na conciliação

entre pessoas, classes, cultura e consciências.

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Com a intencionalidade de criar um instrumental de cultura popular que

pudesse ser usado nas ações populares, o documento de ação popular divulgado

em 1963, publicizado por Fávero (1983), lista como possibilidades: alfabe-

tização, núcleos populares, praças de cultura, teatro, artes plásticas, cinema,

música, publicações, festas populares, festivais de cultura e todos os outros que

se propõem à mobilização popular – meios de conscientização, politização e

organização do povo. O documento destaca que a utilização desses instrumentos

de cultura popular vincula-se ao contexto e à realidade dos sujeitos envolvidos

na ação cultural. A possibilidade de diálogo com o povo, no dinamismo do

trabalho de conscientização e politização, impele as entidades e organizações

já existentes a recorrerem aos valores do povo. O autor alerta, ainda, que a pre-

ocupação não é de lançar mão desses instrumentos de uma única só vez, mas

sempre que melhor respondam aos objetivos propostos e aos movimentos que

irão surgindo nas comunicações.

Possivelmente, na alfabetização de adultos, os movimentos de cultura

popular tenham conseguido realizar as suas ideias de uma maneira mais con-

tínua e duradoura, durante a efêmera existência da maior parte delas. A partir

das experiências de Paulo Freire e sua equipe pioneira no Nordeste, todo um

trabalho de alfabetização começava por uma pesquisa conjunta do universo

cultural popular. Depois, as próprias aulas eram transformadas em círculos

de cultura, onde o trabalho de ensinar-e-aprender ganhava uma inesperada e

inovadora dimensão dialogal. No Círculo de Cultura, observava-se a superação

do professor pelo coordenador de debates, do aluno pelo participante do grupo,

da aula como exposição de conteúdos pelo diálogo, dos “[...] programas por

situações existenciais, capazes de, desaando os grupos, levá-los, pelos deba-

tes das mesmas, a posições mais críticas”. (FREIRE, 1983, p. 115). Assim, o

próprio ensino de leitura de palavras do português começava e continuava por

uma reexão coletiva, a partir da questão teórica da cultura e dos elementos da

cultura local de cada grupo de educandos. Não se tratava de aprender apenas a ler

e escrever em uma língua, como nos programas tradicionais de alfabetização de

adultos, mas de aprender a “[...] ler o seu próprio mundo através de sua própria

cultura [...], a cultura como acrescentamento que o homem faz ao mundo que

ele não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e

recriador”. (FREIRE, 2013, p. 116). Daí, a importância de comunicar-se com

o outro como um sujeito consciente no mundo e com o mundo e não objeto.

O que as ideias de Paulo Freire e as práticas – breves e fecundas – dos

movimentos de cultura popular procuram estabelecer em seu tempo e nos deixam

como herança são esboçadas por Brandão (2014) e aqui resumidas:

a) Têm como ponto de partida a busca de uma interação equitativa entre

diversos campos de pensamento, criação e ação social, através dos saberes das

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ciências, cinema, teatro, literatura, música, artes plásticas, educação, vivida como

arte e prática, compreendidas como diferentes domínios humanos de criação de

novas ideias, com uma convergente vocação político-transformadora. Assim,

seria através da partilha de todas e de cada uma dessas vocações, no interior de

projetos de “criação do novo” e de “transformação através da inovação” que

uma nova cultura deveria ser, paulatinamente, criada;

b) Buscam uma convergência de/entre culturas. Em termos concretos, elas

buscam estabelecer novas alianças entre pessoas e grupos de vida e vocação

acadêmica ou artística (eruditos, acadêmicos), com autores/atores populares

individuais ou coletivos. Este complexo processo de criação de “estradas de mão

dupla” na criação e gestão de estilos de arte e sistemas de educação tomam um

rumo bem diverso do que se praticava até então. Isto porque não eram pensados

e praticados como um outro “serviço cultural” ou educacional complementar ao

povo. Não se trata de estender ao “oprimido” os padrões de gosto e as ideolo-

gias de moda do “opressor”, mas de partir de um diálogo tão igualitário quanto

possível, que termine por criar meios de autotransformação de pessoas, grupos

sociais e movimentos populares em construtores e gestores de sua autonomia e

também em condutores de um processo de ruptura da hegemonia “burguesa” e

de transformação radical da sociedade;

c) Elas colocam a cultura e a política no centro do próprio acontecer da

educação. É nesta direção que insistimos em lembrar que para Paulo Freire e

seus companheiros a educação é pensada como um campo da cultura e a cultura

como algo cuja dimensão de realização tem a ver com a gestão de formas de

poder simbólico, que tanto podem reiterar e reproduzir uma conjuntura social

de desigualdade e de opressão, quanto podem congurar a dimensão simbólica

de teor político da construção de uma nova ordem social de libertação.

Não se trata de criar contextos de soluções pessoais para conitos sociais,

mas da busca solidária de soluções sociais para problemas pessoais. Este seria

o momento de uma inversão de uma educação para o povo, em direção a uma

educação que o povo cria ao transitar de sujeito econômico a sujeito político e

ao se reapropriar de um modelo de educação para fazê-la ser a educação do seu

projeto histórico. Não esquecer que “sujeito político” tem, em Paulo Freire, a

conotação do agente consciente-e-crítico e, portanto, pessoa criativamente ativa

e corresponsável e participante pela gestão e transformação de sua polis, o seu

lugar de vida e destino;

d) Elas procuram estabelecer e difundir uma experiência de educação que

anos mais tarde receberá o qualicador “popular”. Desde os primeiros escritos da

“equipe pioneira”, não estarão restritas a um método de trabalho, como aquele

criado para a alfabetização de adultos, mas como um “sistema de educação”,

que tem em seu andar térreo a alfabetização e na cobertura a proposta de criação

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de uma universidade popular. Isto acontece vários anos antes da reinvenção

de propostas de universidades alternativas, livres ou populares que surgem por

todo o mundo.

O sistema Paulo Freire de educação: da alfabetização à universidade

popular

Depois de uma trajetória brevíssima como advogado e de oito anos de

trabalho no Serviço Social da Indústria, em Pernambuco, Paulo Freire expe-

rimenta as inovações de dinâmica de grupos e de novas práticas dialógicas de

ensino-aprendizagem. Logo nos primeiros tempos de sua carreira, ele participa

da criação do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e, sendo

seu primeiro diretor, inicia uma revolução cultural na universidade dando início

a um grande e abrangente processo de comunicação.

Para Maciel (1983), que era um dos integrantes da equipe de trabalho do

Serviço de Extensão Cultural (SEC), dirigido por Freire, a extensão cultural

tinha a dimensão da democratização da cultura. “Extensão é uma dimensão

da pré-revolução brasileira, desde que ela também – e não o homem, na

expressão feliz de Gabriel Marcel é situada e datada”. (MACIEL, 1983, p.

127). Prossegue o autor armando que a universidade brasileira, daqueles anos

1960, não poderia permanecer voltada sobre si mesma e para o passado, indife-

rente aos problemas cruciais que aigiam o povo que ela deveria servir. Essa é

uma armação que nos parece ser extremamente válida para a universidade de

nosso século XXI, como possibilidade de repensar e sulear os caminhos para a

democratização da universidade, realizando a transição de uma cultura e edu-

cação, pautada na tradição de formação de elites para as elites, para se colocar

junto com a população e pensar processos democráticos de cultura e educação.

A Universidade Federal de Recife, por meio do SEC, revisitou seu projeto

político e alterou parte de sua ação no momento em que colocou em discussão

o papel da universidade. Nas palavras do então Reitor João Alfredo Gonçalves

da Costa Lima, em fevereiro do ano de 1962, “[...] a ação da Universidade não

se deve sobrepor ao processo de desenvolvimento, mas antes nele se inserir,

proporcionando constante integração de professores e alunos na comunidade.

(MACIEL, 1983, p. 128).

A avaliação levava em consideração a realidade concreta vivida pelo

Nordeste naqueles tempos e o entendimento decorrente de que não teria sentido

uma universidade alienada ao processo de desenvolvimento, o que lhe coloca-

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ria em uma situação de marginalização de seu tempo. Para abri-la e tirá-la de

seu isolamento, inserindo-a no trânsito brasileiro, caberia à extensão cultural

assentar suas preocupações sobre os problemas mais urgentes daqueles dias.

Isso signicaria assumir uma proposta que colocaria em choque os interesses

da pequena elite, presente na universidade, com a grande maioria da população

que, talvez nesse contexto histórico, jamais pensasse em dialogar com a univer-

sidade. O contraditório dessa aproximação seria o fato de que os excluídos da

universidade dariam legitimidade ao modo de ser, estar e fazer da universidade,

na condição de instituição pública de educação e cultura.

Próximo a essa ideia de resgate de legitimidade e de hegemonia da

universidade, Boaventura de Sousa Santos, em sua obra “Pela mão de Alice”,

publicada no ano de 2000, portanto 40 anos mais tarde, defende que uma das

formas da universidade recuperar e quebrar seu isolamento ancestral seria mudar

no essencial, ou seja, democratizar-se na ação e concepção da construção de

saberes. Como um dos caminhos, preconiza a ruptura epistemológica assentada

na reinvenção da extensão. Embora não cite Freire, Santos utiliza fundamentos

idênticos aos seus.

Retornando aos anos 1960, no Serviço de Extensão Cultural da Univer-

sidade do Recife, Paulo Freire e sua equipe criavam o sistema de educação em

que uma universidade popular estaria presente. Recuperar essa proposta dos anos

1960, por meio de registros de Freire e de seus companheiros do SEC, faz-se

fundamental, dada a dimensão de emancipação humana que abriga, ensejando

o fortalecimento de ações na direção da transição do modelo dominante liberal

para uma educação libertadora.

Maciel (1983, p. 129) relembra que as discussões colocavam como ponto

de partida para a democratização da cultura o processo de alfabetização, desen-

volvido pela universidade, por meio do Serviço de Extensão Cultural. O autor

arma, ainda, que a proposta de universidade popular principia pela própria

universidade, por meio da extensão cultural, cabendo a ela, “[...] através da

extensão e empenhada em democratizar a cultura, voltar-se inicialmente, com

todas as suas forças contra o analfabetismo”. (MACIEL, 1983, p. 129). Levar

a universidade a agir com o povo, por meio de cursos de extensão nos níveis

secundário, médio e superior, foi o ponto de partida do SEC.

A alfabetização, ou o método de alfabetização, tornava-se um elo entre

as diversas etapas e transformava-se em um sistema de educação integral e

fundamental, “[...] desembocando com toda a tranquilidade numa autêntica e

coerente Universidade Popular”, arma Maciel (1983, p. 129).

Essa proposta do Sistema Paulo Freire de Educação, do começo dos anos

de 1960, é pouco lembrada, talvez porque nunca tenha sido realizada para além

das experiências com o Método Paulo Freire, mesmo tendo sido uma ferramenta

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da práxis da revolução brasileira. A proposta desdobrava-se em seis etapas,

conforme consta na obra de Maciel (1983):

Primeira etapa do Sistema – alfabetização infantil.

Segunda etapa do Sistema – alfabetização de adultos. Consta, em largos

traços, de um método de alfabetização rápida (28 a 40 horas), sem cartilha,

sem o professor tradicional, fazendo utilização ampla de ajudas de audio-

visuais (projeção xa, atualmente) e da motivação a partir de situações

existenciais dos grupos a alfabetizar, conscientizando pelo diálogo franco

e informal. Parte, para isso, do levantamento do universo vocabular dos

alfabetizandos, de onde são retiradas as chamadas “palavras geradoras”

para alfabetização.

Terceira etapa – [...] é o ciclo primário rápido (de 8 a 10 meses). Nesta

etapa, uma vez alfabetizado, o adulto começará a ler pequenas antolo-

gias de textos reduzidos a universos vocabulares limitados e a estudar

em “pequenos manuais de capacitação cívica”, nos quais encontramos

noções básicas de legislação do trabalho, geograa econômica, economia,

sindicalismo, etc. Assuntos técnicos ligados às prossões e ocupações dos

recém-alfabetizados serão incluídos nestes manuais, bem como noções de

arte popular e folclórica (mamulengos, dramatizações, poesia nordestina

popular). Será tentada a inclusão aí de reduções a vocabulários mínimos

das chamadas Ciências do Homem. Os adultos, nesta etapa, serão enco-

rajados a escrever pequenos “artigos” para seu próprio “jornal” (com o

qual estão acostumados desde a segunda etapa) e para pequenos “livros”

escritos em conjunto intercambiados pelos diversos “círculos de cultu-

ra” do Estado, da Região e, mais tarde, do Brasil inteiro. Formar-se-ão,

também bibliotecas populares etc.

A quarta etapa do Sistema, juntamente com a anterior, marca o início da

experiência de universidade popular propriamente dita, entre nós. Será a

extensão cultural, em níveis popular, secundário, pré-universitário e uni-

versitário. Esta é a fase de trabalho atual do SEC, mas atingindo clientelas

de áreas urbanas recifenses, de nível secundário em diante.

Para instalação desta etapa e das seguintes – que constituem a Univer-

sidade Popular – serão aproveitados os “círculos de cultura” nos quais

se fez a alfabetização e, aqui em Pernambuco, as Associações de Bairro

e os Sindicatos Rurais, estabelecendo-se assim uma rede de pequenos

“institutos de estudos brasileiros” (IPEBs) ligados à Universidade do

Recife, que funcionarão como verdadeira universidade volante. Em Per-

nambuco, o SEC, o MCP (Movimento de Cultura Popular), a Promoção

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Social, o MEB (Movimento de Educação de Base), a AP (Ação Popular)

e a SUDENE (Setor de Reformulação Agrária) mobilizam-se no sentido

de instalar estas etapas anteriores do Sistema.

A quinta etapa do Sistema – já esboçada com suciente profundidade para

permitir a presente extrapolação – desembocará tranquila e coerentemente

no Instituto de Ciências do Homem, da Universidade do Recife, com o

qual o SEC trabalhará em íntima colaboração.

Sexta etapa do Sistemaa criação de um Centro de Estudos Internacionais

(CEI), da Universidade do Recife. Este órgão havia já sido criado e previa

uma “intensa transação com os países subdesenvolvidos num esforço de

integração do chamado Terceiro Mundo, conforme é o pensamento do

Prof. Vamireh Chacon”. (MACIEL, 1983, p. 130-131).

Como visto, o Sistema Paulo Freire de Educação tinha como desao atuar

em uma sociedade em trânsito, que marchava de forma acelerada à procura de

novos temas e de novas tarefas. (FREIRE, 2003). A passagem de uma época para

outra colocava, para a educação e para o educador e educadora, a necessidade

de discutir toda e qualquer temática na relação direta com a cultura instituída

e instituinte na relação dialética parte e todo. Essa leitura de mundo buscava a

desalienação cultural, por meio da criticização da sociedade fechada e colocava

como extrema preocupação o caminho para a construção de uma sociedade

aberta, com o implícito receio de transformar-se em uma nova sociedade de

massas, em que descriticizado se tornariam o homem e a mulher acomodados

e domesticados.

Alinhavando o possível

As ações culturais populares, decorrentes dos movimentos de cultura popu-

lar, trabalhavam baseadas na realidade concreta de seus sujeitos, reconhecendo

suas próprias raízes culturais populares, em suas distintas manifestações, como

a arte popular, os saberes populares, a música, as festas populares, as diferentes

tradições, os costumes, elementos de signicação e de produção da própria exis-

tência, expressões que passaram a compor a ação popular e a educação popular.

O sistema Paulo Freire de educação recolocava a possibilidade de organizar

uma outra proposta de educação democrática, para além da lógica dominante,

em que a cultura popular passava a assumir o papel preponderante como elo de

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ligação e reconhecimento identitários e de libertação de seus sujeitos, como seres

sociais e políticos, nas inndáveis possibilidades de diálogos entre o próprio

grupo, com diferentes grupos e distintos lugares, reconhecendo a existência de

conhecimentos e culturas.

O sistema freireano de educação baseava-se em uma educação para a

decisão, que fosse dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e

política, ancorada em uma profunda interpretação dos problemas, assentada

em um trabalho pedagógico crítico, apoiado em condições históricas propícias.

(FREIRE, 2003). Esse processo educativo não deveria descuidar do encoraja-

mento do homem e da mulher para se inserirem e discutirem a problemática da

sociedade de seu tempo e, conscientes deles, pudessem, por meio do diálogo

constante, superar as prescrições alheias a si, criando, assim, “[...] uma certa

rebeldia, no sentido mais humano da expressão, que o identicasse com méto-

dos e processos cientícos”. (FREIRE, 2003, p. 98). Essa proposta educativa

fundava-se na construção da consciência crítica, construída na ação e reexão

das mulheres e homens com e no seu tempo.

O respeito e o reconhecimento da existência de distintos conhecimentos

e culturas, componentes da ação cultural, expressava muito mais do que uma

mera tática de aproximação com as massas populares, mas o entendimento

de que seria esse o caminho para a construção de um processo de revolução

cultural e de libertação.

A proposta do sistema de educação freireano assentou-se nos princípios da

extensão cultural desenvolvida, naquele momento, por meio da Universidade de

Recife. Um movimento que, através do diálogo e assentado na realidade histórica

desse tempo e espaço, propunha aos homens e às mulheres reetirem sobre sua

ontológica vocação de ser sujeito. Diálogo entendido por Freire (2002) como

possibilidade da problematização, em que educador-educando e educando-

-educador desenvolvem uma postura crítica e a percepção de um saber que se

encontra atrelado ao mundo e a homens e mulheres, tornando possível explicar

o mundo e sua transformação.

A proposta buscava não a criação de outra universidade, mas a transfor-

mação radical da universidade existente, dando-lhe um outro papel político em

que o novo conteúdo, como ponto de partida, seria a cultura, denida como

“[...] acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como

resultado do trabalho, do esforço criador e recriador dos seres humanos. A

cultura como aquisição sistemática da experiência humana”. (FREIRE, 2003,

p. 117). Intrinsicamente ligado a esse conceito de cultura, decorreria o sentido

transcendental das relações; a democratização da cultura; o homem/mulher

com o mundo e o seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto.

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Assim, a proposta epistemológica que suleava a construção de um sistema

de educação privilegiava a formação do sujeito na sua dimensão humana de ser

social. Uma proposta que tinha a universidade como ponto de partida, porém a

extrapolava no momento seguinte, já na primeira etapa, e se expandia ocupando

os círculos de cultura, centros de cultura e outros espaços e movimentos po-

pulares, alcançando, por m, o diálogo com o chamado Terceiro Mundo numa

perspectiva de integração e de libertação.

Portanto, mais do que lembrar essa experiência vivida no Brasil, cabe-nos

reinventá-la, tomando-a inspiração para o enfrentamento destes turbulentos dias

de 2016, em que a direita liberal avança na direção da supressão das conquistas

sociais da classe trabalhadora, violenta com as muitas culturas e os sujeitos que as

produzem, ao insistir em padronizar um único currículo nacional. Assim sendo,

parece-nos ser uma oportunidade histórica para, a partir desta realidade também

histórica, recuperarmos nossa dimensão política de sujeitos construtores de

cultura e de história, como possibilidade de enfrentamento de tal situação-limite.

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Texto recebido em 16 de junho de 2016.

Texto aprovado em 16 de junho de 2016.

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