Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?

Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?

2018, que aconteceu nos dias 20 e 21 de março de 2018, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro (RJ). O documento preliminar que subsidiou a discussão em grupo foi baseado em dados secundários, documentos oficiais e artigos científicos sobre o tema em diálogo com duas experiências: o Observatório de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – OBTEIA, criado em 2011 pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (Nesp/UnB) em parceria com a Fiocruz Ceará e financiado pelo Ministério da Saúde (MS), que tem como objetivo ana- lisar as políticas e situação de saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PCFA); e a experiência da Diretoria de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade em territórios rurais. Na análise, buscou-se expor os proble- mas das PCFA dialogando com os desafios e as estratégias adotadas pela APS com vistas à garantia do acesso à atenção inte- gral à saúde. População rural nos cenários do campo, da floresta e das águas: o estado da arte O Brasil adota para determinação de áreas rurais e urbanas a divisão baseada em cri- térios legais ou político-administrativos, no qual os perímetros urbanos (e os rurais, por exclusão) são delimitados por decisão legislativa dos municípios, o que é impre- ciso, discutível, influenciável por questões tributárias, e que tende a superestimar sua população urbana. Tanto que, após a revisão da classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, verificou-se que 60,4% dos municípios brasileiros foram considerados predominantemente rurais, sendo 54,6% rurais adjacentes e 5,8% rurais remotos10. Países e organizações europeias utilizam outros critérios na definição de áreas rurais e urbanas, como: tamanho da população, densi- dade demográfica, oferta de serviços, partici- pação da agricultura, divisão administrativa, o uso do solo, aglomeração de habitações e até a distância rodoviária percorrida aos centros de serviços mais próximos11. No Canadá e nos Estados Unidos12, embora considerem o rural como um subproduto ou resíduo do urbano, a tendência das últimas décadas é pela busca de alternativas não dicotômicas e reducionistas, por meio do investimento em classificações mais refinadas10,11,13. Apesar da diversidade, não há país que prescinda dessa análise para elaborar diag- nósticos socioeconômicos, bem como para o desenvolvimento e estabelecimento de po- líticas públicas, atendendo a uma demanda do planejamento de políticas adequadas às especificidades das populações rurais10-13. No que se refere às análises sobre saúde nos territórios rurais, os australianos têm adotado a compreensão de que é preciso considerar elementos de contextos internos SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, NÚMERO ESPECIAL 1, P. 302-314, SETEMBRO 2018 Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? 305 e externos aos territórios rurais. As análises sobre a questão do isolamento geográfico, por exemplo, devem estar relacionadas com fatores, como: relações sociais, as respos- tas locais de saúde, sistemas de saúde mais amplos, as estruturas sociais e de poder11. Os movimentos sociais no Brasil, junta- mente com instituições de pesquisa e o MS, reunidos no Grupo da Terra, após 10 anos de debates, formularam uma política de equi- dade intitulada PNSIPCFA. A terminologia PCFA é um conceito contemporâneo dos movimentos sociais e populares brasileiros, e integra a luta contra a invisibilidade destas populações dentro do setor saúde. Esta ter- minologia destaca que as práticas culturais, o modo de vida e de cuidar popular e do SUS precisam ser compreendidos e são diferen- ciados. Esse conceito já vem sendo adotado nos relatórios e documentos da XIV e XV Conferências Nacionais de Saúde como po- pulações do campo, da floresta e das águas, e não mais, população rural8. O debate conceitual se deu no processo de formulação da PNSIPCFA, visto que as populações extrativistas da Amazônia não se reconheciam na categoria ‘rural’ ou ‘campo’, pois para eles isso estaria ligado à produção agropecuária. Eles vivem da floresta, e para sua manutenção, é preciso que ela esteja de pé e não seja derrubada para a expan- são da produção, portanto, consideram-se população da floresta. Alguns anos depois, no processo de aprovação da PNSIPCFA, o Movimento de Pescadoras e Pescadores também não se reconheceram nas categorias ‘campo’ e ‘floresta’, afinal vivem das águas, sejam interiores, rios ou do mar, e se identifi- cam como população das águas8. A PNSIPCFA reforça que a população rural é invisibilizada dentro dessa categoria como grupos populacionais homogêneos e propõe a terminologia ‘populações do campo, da flo- resta e das águas’ para expor a pluralidade, a singularidade, a diversidade e a heteroge- neidade dessas populações que vivem espa- lhadas em todas as regiões brasileiras com seu modo de viver. As PCFA são os povos e comunidades que têm seus modos de vida, produção e reprodução sociais relacionados predominantemente com o campo, a flores- ta, os ambientes aquáticos, a agropecuária e o extrativismo. Dentro desse grupo popula- cional, tem-se os camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais assalaria- dos e temporários que residam ou não no campo, trabalhadores rurais assentados e acampados, comunidades de quilombos, populações que habitam ou usam reservas extrativistas, populações ribeirinhas, popu- lações atingidas por barragens, entre outras comunidades tradicionais7,8. A partir dessa tensão provocada pelos movimentos populares, iniciaram-se estudos que geraram dissertações, teses, artigos e livros, utilizando essa denominação em uma aproximação teórica, em que se busca utili- zar esse conceito produzido pelos movimen- tos sociais e discuti-lo no âmbito acadêmico. Torna-se muito necessário e oportuno esse debate teórico tendo em vista as limitações e insuficiências crescentes do que chamamos ‘rural’ e como as PCFA são classificadas e tratadas pelas políticas públicas8. Informações sociossanitárias, epidemiológicas, demográficas e econômicas das populações do campo, da floresta e das águas nos contextos rurais As PCFA concentram altos índices de pobreza e analfabetismo, relacionados com as iniqui- dades na distribuição da riqueza existente no Brasil. Dentre as dificuldades de acesso às po- líticas públicas, destacam-se: falta de acesso à educação, transporte público, comunicação, saneamento e acesso insuficiente aos serviços de saúde em todos os seus níveis8,10-13. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, NÚMERO ESPECIAL 1, P. 302-314, SETEMBRO 2018 Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF306 No Brasil, 72,2% da população rural ainda acessa água apenas por meio de poços, cacim- bas, açudes e barreiros, acesso esse muitas vezes precário e com grande potencial para provocar doenças. A falta de acesso regular a qualquer fonte de água potável ainda é uma situação bastante presente na realidade social brasileira, e, particularmente, crítica para a população rural, em especial, para aquela em situação de extrema pobreza. Variações climáticas que afetam a disponibi- lidade de água, a poluição de fontes hídricas disponíveis, conjugadas com uma reduzida oferta da rede pública de abastecimento de água, têm afetado severamente as condições de sobrevivência dessa população14. Entre os avanços no acesso as políticas sociais nos últimos anos no Brasil, percebeu-se impac- tos nos indicadores de saúde e nas condições de vida relacionadas com os Programa Bolsa Família, o Programa Um Milhão de Cisternas, a Aposentadoria Rural, e, em relação ao setor saúde: o Programa Agentes Comunitários de Saúde, a Estratégia Saúde da Família e

Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?
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Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?
Vanira Matos Pessoa

Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?
Magda Moura Almeida

Universidade Federal do Ceará, Brasil

Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no brasil?
Fernando Ferreira Carneiro

Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil?

Saúde em Debate, vol. 42, núm. 1, Esp., pp. 302-314, 2018

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Recepção: 11 Junho 2018

Aprovação: 03 Agosto 2018

DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S120

RESUMO: A reestruturação produtiva, nas últimas décadas, gerou grandes mudanças na zona rural brasileira, destacando-se a reprimarização da economia, que provocaram conflitos pela terra e água entre o Estado, o capital e as populações rurais, acarretando doenças, mortes, violência, contaminação ambiental e riscos à saúde humana. Este ensaio objetivou problematizar a situação de saúde das populações do campo, da floresta e das águas, os desafios e as estratégias adotadas para garantir o direito à saúde. A Estratégia Saúde da Família, como porta de entrada das pessoas no SUS, ainda apresenta diversos problemas relativos à sua implantação, como: pior desempenho em áreas rurais; a territorialização que ainda não se faz na perspectiva dos espaços sociossanitários de maior risco; e apresenta fragilidade na participação social. O acesso dessas populações ao SUS requer articulação de saberes e experiências de planejamento e avaliação permanentes das ações intersetoriais, bem como das responsabilidades e informações compartilhadas, a fim de alcançar a atenção à saúde com qualidade e integralidade. Exige também um processo ágil de educação permanente dos trabalhadores de saúde e de educação popular, com uma proposta nova e diferenciada, rompendo com a lógica curativista e que considere as especificidades da influência da determinação social da saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Determinação das necessidades de saúde, Saúde rural, Estratégia Saúde da Família, Atenção Primária à Saúde.

ABSTRACT: Productive restructuring in the last decades has brought about great changes in the Brazilian rural area, with emphasis on the reprimarization of the economy, which induced conflicts over land and water between the State, the capital and the rural populations, causing illness, death, violence, environmental contamination and risks to human health. This essay aims at problematizing the health situation of the rural, forest and water populations, the challenges and the strategies adopted to ensure the right to health. The Family Health Strategy as a gateway for people in the SUS, still presents several problems related to its implementation, such as: worse performance in rural areas; the territorialization is still not done in the perspective of the socio-sanitary spaces of greater risk, and it presents fragility in social participation. The access of these populations to the SUS requires articulation of knowledge and experiences of planning and permanent evaluation of intersectoral actions, as well as responsibilities and shared information, in order to achieve health care with quality and comprehensiveness. It also demands an agile process of permanent education of health workers and popular education, along with a new and differentiated proposal breaking with curative logic and considering the specificities of the influence of the social determination of health.

KEYWORDS: Needs assessment, Rural health, Family Health Strategy, Primary Health Care.

Introdução

O contexto da reestruturação produtiva nas últimas décadas no Brasil gerou grandes mudanças na zona rural brasileira, destacando-se a reprimarização da economia, com estímulo governamental para a produção de commodities para exportação. O modelo de desenvolvimento neoextrativista brasileiro tem o agronegócio como uma das principais atividades econômicas nacionais com uso intensivo de agrotóxicos. A reorganização econômica do País também priorizou a construção de barragens e hidrelétricas em regiões de floresta. Essa mudança tem acontecido permeada por conflitos pela terra e água entre o Estado, o capital e as populações rurais, acarretando mortes, violência, contaminação ambiental e riscos à saúde humana1-4.

Nesse cenário de transformações do modo de produção rural, há mudanças significativas na demografia e muita insuficiência no acesso às políticas públicas saudáveis, como recomendou a Declaração de Adelaide5, em 1988. Mais recentemente, a Declaração de Delhi6 reforça que as necessidades das pessoas vivendo em áreas rurais e de difícil acesso devem ser consideradas prioritárias, se as nações querem atingir a cobertura universal em saúde.

Reconhecer o Brasil rural é fundamental para intervir no processo saúde-doença no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS), pois o universo rural tem singularidades e especificidades que condicionam a organização dos serviços de saúde e as práticas sociossanitárias. No mundo rural, há, primeiramente, a questão ambiental, que está diretamente ligada ao modo de vida e reprodução social.

O Brasil rural tem populações em condições de isolamento geográfico no semiárido e na Amazônia, expostas a riscos e agravos de saúde radicalmente diferentes. Há um modo de produzir que vai desde a pesca artesanal até a agricultura, o extrativismo, a mineração, que expõem essas populações a um conjunto de agravos específicos, que precisam ser conhecidos e cuidados pela APS. Apesar disso, as categorias trabalho e ambiente continuam pouco abordadas nas práticas de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF) tanto nos cenários urbanos como nos rurais7.

No Brasil, a APS no SUS tem sido implementada por meio da ESF, que avançou em termos de cobertura populacional e se apresenta como uma proposta contra hegemônica ao modelo médico assistencial privatista hegemônico no Brasil. A ESF como porta de entrada das pessoas no SUS ainda apresenta diversos problemas relativos à sua implantação, como: pior desempenho em áreas rurais; a territorialização que ainda não se faz na perspectiva dos espaços sociossanitários de maior risco para priorização de ações e fragilidades na participação social7.

Considerando o cenário descrito acima e o princípio da equidade que deve orientar as políticas de saúde, reconhecendo as demandas e necessidades singulares de determinados grupos populacionais, de forma a reduzir suas vulnerabilidades e minimizar os impactos da determinação social da saúde, foram instituídas no SUS um conjunto de políticas de equidade em saúde, entre elas, a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA)8,9.

Este ensaio objetiva problematizar a situação de saúde das populações do campo, da floresta e das águas, os desafios e as estratégias adotadas na APS para garantir o direito à saúde desses povos no Brasil.

Este estudo é fruto do debate realizado pela Rede de Pesquisa em APS na atividade preparatória do XII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva - Abrascão 2018, que aconteceu nos dias 20 e 21 de março de 2018, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro (RJ). O documento preliminar que subsidiou a discussão em grupo foi baseado em dados secundários, documentos oficiais e artigos científicos sobre o tema em diálogo com duas experiências: o Observatório de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas - Teia de Saberes e Práticas - OBTEIA, criado em 2011 pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (Nesp/UnB) em parceria com a Fiocruz Ceará e financiado pelo Ministério da Saúde (MS), que tem como objetivo analisar as políticas e situação de saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PCFA); e a experiência da Diretoria de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade em territórios rurais.

Na análise, buscou-se expor os problemas das PCFA dialogando com os desafios e as estratégias adotadas pela APS com vistas à garantia do acesso à atenção integral à saúde.

População rural nos cenários do campo, da floresta e das águas: o estado da arte

O Brasil adota para determinação de áreas rurais e urbanas a divisão baseada em critérios legais ou político-administrativos, no qual os perímetros urbanos (e os rurais, por exclusão) são delimitados por decisão legislativa dos municípios, o que é impreciso, discutível, influenciável por questões tributárias, e que tende a superestimar sua população urbana. Tanto que, após a revisão da classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, verificou-se que 60,4% dos municípios brasileiros foram considerados predominantemente rurais, sendo 54,6% rurais adjacentes e 5,8% rurais remotos10.

Países e organizações europeias utilizam outros critérios na definição de áreas rurais e urbanas, como: tamanho da população, densidade demográfica, oferta de serviços, participação da agricultura, divisão administrativa, o uso do solo, aglomeração de habitações e até a distância rodoviária percorrida aos centros de serviços mais próximos11. No Canadá e nos Estados Unidos12, embora considerem o rural como um subproduto ou resíduo do urbano, a tendência das últimas décadas é pela busca de alternativas não dicotômicas e reducionistas, por meio do investimento em classificações mais refinadas10,11,13.

Apesar da diversidade, não há país que prescinda dessa análise para elaborar diagnósticos socioeconômicos, bem como para o desenvolvimento e estabelecimento de políticas públicas, atendendo a uma demanda do planejamento de políticas adequadas às especificidades das populações rurais10-13. No que se refere às análises sobre saúde nos territórios rurais, os australianos têm adotado a compreensão de que é preciso considerar elementos de contextos internos e externos aos territórios rurais. As análises sobre a questão do isolamento geográfico, por exemplo, devem estar relacionadas com fatores, como: relações sociais, as respostas locais de saúde, sistemas de saúde mais amplos, as estruturas sociais e de poder11.

Os movimentos sociais no Brasil, juntamente com instituições de pesquisa e o MS, reunidos no Grupo da Terra, após 10 anos de debates, formularam uma política de equidade intitulada PNSIPCFA. A terminologia PCFA é um conceito contemporâneo dos movimentos sociais e populares brasileiros, e integra a luta contra a invisibilidade destas populações dentro do setor saúde. Esta terminologia destaca que as práticas culturais, o modo de vida e de cuidar popular e do SUS precisam ser compreendidos e são diferenciados. Esse conceito já vem sendo adotado nos relatórios e documentos da XIV e XV Conferências Nacionais de Saúde como populações do campo, da floresta e das águas, e não mais, população rural8.

O debate conceitual se deu no processo de formulação da PNSIPCFA, visto que as populações extrativistas da Amazônia não se reconheciam na categoria 'rural' ou 'campo', pois para eles isso estaria ligado à produção agropecuária. Eles vivem da floresta, e para sua manutenção, é preciso que ela esteja de pé e não seja derrubada para a expansão da produção, portanto, consideram-se população da floresta. Alguns anos depois, no processo de aprovação da PNSIPCFA, o Movimento de Pescadoras e Pescadores também não se reconheceram nas categorias 'campo' e 'floresta', afinal vivem das águas, sejam interiores, rios ou do mar, e se identificam como população das águas8.

A PNSIPCFA reforça que a população rural é invisibilizada dentro dessa categoria como grupos populacionais homogêneos e propõe a terminologia 'populações do campo, da floresta e das águas' para expor a pluralidade, a singularidade, a diversidade e a heterogeneidade dessas populações que vivem espalhadas em todas as regiões brasileiras com seu modo de viver. As PCFA são os povos e comunidades que têm seus modos de vida, produção e reprodução sociais relacionados predominantemente com o campo, a floresta, os ambientes aquáticos, a agropecuária e o extrativismo. Dentro desse grupo populacional, tem-se os camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais assalariados e temporários que residam ou não no campo, trabalhadores rurais assentados e acampados, comunidades de quilombos, populações que habitam ou usam reservas extrativistas, populações ribeirinhas, populações atingidas por barragens, entre outras comunidades tradicionais7,8.

A partir dessa tensão provocada pelos movimentos populares, iniciaram-se estudos que geraram dissertações, teses, artigos e livros, utilizando essa denominação em uma aproximação teórica, em que se busca utilizar esse conceito produzido pelos movimentos sociais e discuti-lo no âmbito acadêmico. Torna-se muito necessário e oportuno esse debate teórico tendo em vista as limitações e insuficiências crescentes do que chamamos 'rural' e como as PCFA são classificadas e tratadas pelas políticas públicas8.

Informações sociossanitárias, epidemiológicas, demográficas e econômicas das populações do campo, da floresta e das águas nos contextos rurais

As PCFA concentram altos índices de pobreza e analfabetismo, relacionados com as iniquidades na distribuição da riqueza existente no Brasil. Dentre as dificuldades de acesso às políticas públicas, destacam-se: falta de acesso à educação, transporte público, comunicação, saneamento e acesso insuficiente aos serviços de saúde em todos os seus níveis8,10-13.

No Brasil, 72,2% da população rural ainda acessa água apenas por meio de poços, cacimbas, açudes e barreiros, acesso esse muitas vezes precário e com grande potencial para provocar doenças. A falta de acesso regular a qualquer fonte de água potável ainda é uma situação bastante presente na realidade social brasileira, e, particularmente, crítica para a população rural, em especial, para aquela em situação de extrema pobreza. Variações climáticas que afetam a disponibilidade de água, a poluição de fontes hídricas disponíveis, conjugadas com uma reduzida oferta da rede pública de abastecimento de água, têm afetado severamente as condições de sobrevivência dessa população14.

Entre os avanços no acesso as políticas sociais nos últimos anos no Brasil, percebeu-se impactos nos indicadores de saúde e nas condições de vida relacionadas com os Programa Bolsa Família, o Programa Um Milhão de Cisternas, a Aposentadoria Rural, e, em relação ao setor saúde: o Programa Agentes Comunitários de Saúde, a Estratégia Saúde da Família e o Programa Mais Médicos, que contribuíram para minimizar danos à saúde, apesar de ainda serem insuficientes do ponto de vista das demandas territoriais15,16.

A mortalidade nas áreas urbana e rural é um dos indicadores fundamentais para a priorização das ações da APS. Observa-se na área urbana que o grupo de menores de 1 ano concentra 3,1% do total de óbitos, enquanto na área rural, este percentual é de 5,4%. A maior diferença foi encontrada no grupo de 1 a 4 anos, em que o percentual da área rural foi de 1,6%, que é mais que o dobro da área urbana (0,7%). Também, em contraste com a área urbana, a participação dos óbitos de menores de 1 ano em relação à população total, na área rural, assume valores bem significativos no Amazonas (16,0%), no Amapá (15,0%), no Acre (12,6%), no Pará (11,1%) e no Maranhão (10,2%). Todos os estados que apresentam percentuais acima de 10%, estão na região Norte, onde as distâncias e as dificuldades de acesso são marcantes14.

A frequência de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) ainda é elevada, como evidenciou um estudo que avaliou municípios de pequeno porte com grande proporção de população rural (79% a 51%). O estudo constatou que, de 2004 a 2015, as gastroenterites infecciosas e suas complicações foram as principais causas de internação na maioria dos locais16. Essas internações refletem a precariedade das condições de saneamento básico, mas também da ineficiência da APS na prevenção primária e secundária desses agravos, por meio de medidas terapêuticas efetivas e de baixa complexidade, como a reidratação oral e a antibioticoterapia associada.

O elevado número de internamentos por insuficiência cardíaca e doenças pulmonares em alguns municípios pode significar o diagnóstico tardio e a dificuldade na condução das doenças crônicas nos respectivos territórios. O mesmo estudo evidencia o elevado número de suicídios por arma de fogo e outras causas na região Centro-Oeste e Norte16.

Outro fenômeno que tem se intensificado é a masculinização e a violência rural. A violência, mesmo sendo constante no meio rural, é pouco divulgada, até quando excede padrões, como pode ser visto no relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado em 2016, que apresenta índices recordes e ainda mais preocupantes: aumentaram todos os tipos de conflito, sendo os maiores números de conflitos dos últimos 10 anos; conflito de terra o maior em 32 anos de documentação da CPT, e aumento de todas as formas de violência no campo em relação a 2015. Os homicídios tiveram um aumento de 22%, o maior número desde 2003. As agressões tiveram o maior índice de aumento: 206%17.

A situação de exclusão e negação de acesso às políticas econômicas e sociais contribui para o êxodo rural, principalmente da juventude e das mulheres. O êxodo seletivo de jovens, em especial, de mulheres, torna o envelhecimento da população rural mais intenso que na população urbana, na qual a parcela adulta ainda conseguiu crescer em ritmo acelerado nos últimos anos18. Nas áreas rurais, a população jovem reduziu 6 milhões em 20 anos, a população adulta estagnou e a população idosa cresceu em pouco mais de 1 milhão. A razão entre os idosos com 65 anos ou mais e a população jovem com 17 anos ou menos, chamado de índice de envelhecimento, passou de 9,7% em 1991 para 21,4% em 2010 na população rural19. Outro aspecto fundamental se refere às famílias nucleares, que caiu de 74% para 58% do total de famílias. A participação dos casais sem filhos nas áreas rurais aumentou de 4% para 12%, entre 1981 e 201119.

Acesso integral à saúde e aos serviços de APS

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolveu pela primeira vez provas globais que sugerem diferenças significativas, senão extremas, entre as populações rurais e urbanas, no que se refere à cobertura e acesso à saúde nos níveis global, regional e nacional. Embora 56% da população rural global careça de cobertura de saúde, apenas 22% da população urbana não possui acesso aos serviços de saúde20.

A situação é agravada pela extrema escassez dos recursos humanos de saúde nas áreas rurais, impactando na prestação de serviços de qualidade. Nas áreas rurais, é observado um deficit global de cerca de 7 milhões de trabalhadores de saúde, em comparação com a falta de 3 milhões de pessoal qualificado nas áreas urbanas21.

Em relação ao acesso aos profissionais de saúde e à disponibilização destes para atuar em cenários rurais, é importante considerar que: a especialização cada vez maior das profissões da saúde, em especial, da formação médica (em sistemas de órgãos e/ou estados patológicos), promoveu ao longo do século economias de escala e centralização dos serviços de saúde, levando os profissionais de saúde a exercer sua prática profissional em grandes centros urbanos20,21.

Todo governo, contudo, pode influenciar o mercado de trabalho da saúde por meio de regulamentação, financiamento e informação. Um mercado de trabalho inteiramente livre nunca levará a uma força de trabalho de saúde bem distribuída, porque muitas pessoas são atraídas para centros urbanos ou, em alguns casos, para outros países. Ressalta-se que qualquer política de fixação e provimento deve ser equânime e considerar a feminilização das profissões da saúde, segundo as diretrizes já expostas em vários documentos nacionais22 e internacionais23.

Estratégias que enfocam o provimento temporário, mas não fixam o profissional nas áreas rurais, (serviço temporário obrigatório ou voluntário, migração de profissionais estrangeiros) são soluções emergenciais, de curto prazo, pois, indiretamente, desestimulam as melhorias estruturais dos sistemas de saúde locais e a busca de um perfil profissional adequado24.

Destaca-se a responsabilidade social das universidades públicas com o recrutamento e fixação dos médicos nas regiões de difícil provimento. Instituições privadas podem vincular o fornecimento de bolsas de estudo ou outros subsídios educacionais a acordos de retorno ao serviço em áreas rurais ou remotas para aumentar o recrutamento de profissionais de saúde nessas áreas.

Estudos mostram que os três fatores mais fortemente associados à prática rural dos profissionais da saúde são: (i) ser proveniente do meio rural; (ii) ter experiências clínicas e educacionais positivas em ambientes rurais como parte da educação médica de graduação; (iii) treinamento direcionado para a prática rural no nível de pós-graduação25-27.

As recomendações baseadas em evidências incluem políticas de admissão direcionadas para matricular os alunos com procedência rural em programas de educação, a fim de aumentar a probabilidade de os graduados optarem por exercer suas práticas em áreas rurais25-27.

A inclusão de temas de saúde rural deve ser feita por meio da revisão dos currículos de graduação e pós-graduação, aumentando as competências dos profissionais de saúde que trabalham nas áreas rurais e, assim, contribuir para a satisfação destes e para a sua retenção no trabalho como umas das estratégias nacionais a longo prazo26,27.

O cuidado com a formação deve ser estendido para a criação de postos de trabalhos que absorvam a mão de obra egressa. Para essas locações serem atrativas, diferentes incentivos, financeiros e não financeiros devem ser oferecidos. Na perspectiva dos médicos brasileiros, além do salário, a flexibilidade da jornada de trabalho, a infraestrutura da Unidade Básica de Saúde (UBS) e as opções de lazer do município são fatores indutores de fixação28. Apoiar o desenvolvimento de redes profissionais, associações profissionais de saúde rural, periódicos de saúde rural etc., a fim de melhorar o reconhecimento dos profissionais de saúde em áreas rurais, pode reduzir os sentimentos de isolamento profissional.

Diversos estudos apontam que o SUS não tem atendido às necessidades de saúde das famílias rurais7,9,16,22, compreendendo o conjunto dos seus membros como trabalhadores e trabalhadoras, crianças, adolescentes, adultos, jovens e idosos. A dificuldade de acesso aos serviços, em especial, ao profissional médico, só tem sido garantido mediante reivindicações e pressões das PCFA sobre os governos, apesar da proporção de domicílios cadastrados em UBS na área rural (70,9%) ser maior que na área urbana (50,6%)15.

O acesso de primeiro contato ainda é o atributo mais frágil da APS no Brasil, seja em cenários urbanos ou rurais, mesmo após a implantação do Programa Mais Médicos29-34. O acesso à saúde rural passa por um grande desafio que é a superação das distâncias para garantir atenção à saúde, que coloca em cena outro componente que é a atenção domiciliar. As equipes de saúde da família rurais necessitam realizar atendimentos domiciliares para reduzir ou transpor as barreiras de acesso dos usuários à UBS. Caso contrário, as famílias ficam sem acesso ao serviço de saúde.

A transição demográfica e epidemiológica35 atinge também os cenários rurais, com aumento do número de usuários com neoplasias36 e percentual da população com limitações físicas para acessar a UBS, ao mesmo tempo que se constata a ausência de perspectiva de cuidadores domiciliares. As longas distâncias, se não forem percorridas pelos profissionais de saúde, no intuito de executar ações de prevenção primária, secundária ou terciária, serão percorridas no sentido inverso, em tempo inadequado, pela comunidade quando precisarem de atenção à saúde. Além do sofrimento inerente ao processo de adoecimento, as PCFA terão que enfrentar a dificuldade de transportar pacientes graves e crônicos com os meios de locomoção que possuem: moto, transporte escolar, carroça e barco.

O pouco acesso aos planos privados de saúde relacionado com as restrições orçamentárias dessa população14, associado a maior vulnerabilidade das PCFA no que se refere à concessão de benefícios trabalhistas35, reforçam a importância do SUS para essas populações.

A Telessaúde, se utilizada em larga escala, pode reduzir o encaminhamento de pacientes aos grandes centros e melhorar o acesso da população a cuidados especializados, reduzindo custos em saúde37. No Brasil, pesquisas que avaliam o impacto da Telessaúde das áreas rurais e remotas ainda são incipientes37-40. As dificuldades de funcionamento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) associadas à localização geográfica, tais como descargas elétricas regulares, falta de uso devido à ausência de energia elétrica ou pela ausência de profissionais, precisam ser mais bem avaliadas, para que o investimento na proposta não seja em vão38. O diagnóstico prévio sobre a infraestrutura apropriada para as TIC, a compatibilização dos locais que recebem essa tecnologia38, além do envolvimento e da capacitação dos profissionais para lidar com elas39,40 são imprescindíveis para adaptação do local e/ou da tecnologia ao cenário das PCFA, de modo a não investir em uma estratégia que não poderá ser executada, como mostram os estudos nacionais.

São necessários mais estudos que identifiquem os diferenciais de acesso à saúde nas áreas urbanas e rurais, e assim determinar as reais necessidades das PCFA, estabelecendo novas prioridades ou trazendo à tona elementos que induzam a reestruturação das políticas já adotadas.

Reflexões sobre a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e o acesso à saúde da PCFA

No cenário atual, há uma longa distância a ser percorrida para a garantia do direito à saúde das PCFA no SUS. A PNAB 201741 tem sido amplamente discutida por pesquisadores, estudiosos de políticas públicas e militantes do SUS em diversos aspectos, podendo-se citar a flexibilização na reorientação do modelo de atenção centrado na ESF42.

Os movimentos populares e comunidades camponesas, pescadoras, extrativistas afirmam que a ESF não foi implantada adequadamente e suficientemente para atender às necessidades de saúde da PCFA43. Há perspectivas de não universalização dos serviços de APS, em especial, da ESF no Brasil, que agravam o risco de desassistência de parte significativa da população, e de perda na qualidade dos serviços relacionados com: a segmentação do acesso ao cuidado; a desvinculação das equipes dos territórios; e a desqualificação do trabalho dos agentes comunitários de saúde e de agente de combate a endemias42.

É fundamental citar os fatores que requerem ações intersetoriais, que estão relacionados com a determinação social da saúde das PCFA43. O acesso e a acessibilidade da PCFA às equipes da ESF extrapolam a existência de UBS/ESF no território, estão vinculados às condicionalidades, tais como8,43: a distância das localidades rurais à UBS; as más condições das estradas de acesso no meio rural, muitas sem pavimentação; a presença de barreiras geográfica; a escassez de transporte para a locomoção das equipes de saúde às localidades rurais; a falta de transporte público para a PCFA, que tem de percorrer grandes distâncias a pé; a falta de acesso a meios de comunicação; a falta de ponto de apoio adequado para o atendimento em saúde dos usuários em suas localidades; a recepção desqualificada, com falta de acolhimento ao usuário nas UBS; e a interrupção frequente do cuidado longitudinal, por alta rotatividade de profissionais da saúde, em especial, o médico.

A PNAB41,42 reconhece a necessidade de arranjos organizacionais e de financiamento diferenciado para grupos populacionais como as equipes de saúde da família para o atendimento da População Ribeirinha da Amazônia Legal e Pantaneira, todavia a proposta não eliminou as barreiras de acesso à APS, pois considerou adequada a execução das ações de APS com intervalo de até 60 dias para o cuidado das comunidades distantes. Em outras palavras, é aceitável que a PCFA tenha acesso à equipe de saúde da família a cada dois meses. Apesar de reconhecer a necessidade de financiamento das equipes de saúde ribeirinhas e fluviais, considera-se o transporte para acessar as comunidades sob responsabilidade sanitária das equipes, como opcional na legislação de financiamento. Ou seja, não há o discernimento por parte dos gestores do SUS sobre a importância dos meios de transporte, e dos profissionais que manejam esses veículos, para que uma equipe de saúde rural possa executar suas atividades de modo integral.

Um aspecto a ser mencionado diz respeito à utilização de 'pontos de apoio', improvisados, que não constam no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). A ausência desses espaços de cuidado no registro do CNES promove a invisibilização da demanda das PCFA e possibilita que as equipes permaneçam sem a estruturação física e o financiamento adequado das ações de saúde, prestando uma atenção, muitas vezes, de baixa qualidade.

Em síntese, a PNAB 2017 flexibiliza a indução da ESF, sustentada pelo argumento de atender às especificidades locorregionais, ampliando as possibilidades de escolha dos gestores municipais. Isso poderia ser um processo de descentralização mais efetivo, que seria viável com a implementação de transferência de recursos necessários à autonomia de gestão pelos municípios, e com os mecanismos de controle social e participação popular, o que não se tem observado42.

Considerações finais

Segundo Starfield44, todo sistema de serviços de saúde tem como meta principal minimizar as disparidades entre subgrupos populacionais, para equalizar os grupos que estejam em desvantagem sistemática em relação ao seu acesso aos serviços de saúde. A autora destaca que é irracional a existência de recursos humanos e infraestrutura se as pessoas que deles necessitem não puderem utilizá-los.

As PCFA sofrem com a acessibilidade aos serviços de saúde em relação ao tempo (horário de disponibilidade), à acessibilidade geográfica (adequação de transporte e distância a ser percorrida) e à acessibilidade psicossocial (barreiras de linguagem ou culturais à comunicação). Essas populações reivindicam um modelo de atenção que atenda a suas necessidades de saúde, que priorize a saúde relacionada com o seu modo de viver e produzir, dialogando com os seus saberes e práticas tradicionais.

Para enfrentamento desses entraves, é urgente o debate com os gestores públicos sobre estratégias de gestão da clínica para qualificar o acesso das PCFA aos serviços da APS com foco na ESF. Para tanto, é necessário criar mecanismo de garantia do acesso das PCFA em tempo oportuno para responder às necessidades de saúde, com a clareza de que a territorialização das equipes de saúde da família rural precisa incluir na sua logística os agrupamentos populacionais esparsos, as distâncias reais percorridas e o acesso aos outros serviços de saúde da rede assistencial.

O financiamento é outro ponto nodal, pois o repasse de recursos deveria ser diferenciado pelo porte do município, ou maior percentual de população em condições de vulnerabilidades e menores densidades demográficas (maiores distâncias a serem percorridas pelas equipes, por exemplo, que requer maior apoio logístico para transporte).

O financiamento das equipes de áreas rurais e remotas deve considerar e custear a aquisição e manutenção de frota veicular para as equipes de saúde da família, incorporando o condutor de veículos aquáticos e terrestres nas equipes mínimas de saúde da família de áreas rurais e remotas.

O isolamento geográfico e profissional deve considerar a implementação de uma rede interligada de comunicação entre UBS e outros níveis de atenção, que analise as peculiaridades da infraestrutura tecnológica dos locais, os quais nem sempre possuem acesso à internet ou rede de telefonia celular.

As áreas rurais e remotas são áreas de difícil provimento de profissionais de saúde. O aumento do número de profissionais nessas áreas está relacionado com a existência de políticas públicas que alcancem além do provimento emergencial. É preciso investir em um ambiente de trabalho bom e seguro, incluindo equipamentos e suprimentos adequados, supervisão de apoio e orientação, para tornar os postos profissionais atraentes e, assim, aumentar o recrutamento e retenção de profissionais de saúde em áreas remotas e rurais.

A PNAB 2017 desconsidera as especificidades de comunidades tradicionais como quilombolas, marisqueiras etc., e não rompe com a lógica dos cuidados inversos na saúde, em que os que mais necessitam de cuidados em saúde são os menos beneficiados por eles. É preciso repensar a carteira de serviços da APS para as PCFA, considerando as barreiras de acesso da equipe aos territórios e da população à UBS.

Há necessidade de ampliação das equipes ribeirinhas fluviais, das equipes de saúde bucal, de organizar a rede de atenção promovendo interação da APS com os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador Rural (Cerest) e os Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB); a gestão do trabalho em saúde e organização das UBS no campo, na floresta e nas águas não pode ser implantada na lógica urbana, em termos de horário de funcionamento e do tipo de serviços que oferta.

Há de se reconhecer que as novas relações de trabalho e as transformações ambientais têm gerado novas necessidades de saúde e demandado novas práticas sanitárias na APS. Os problemas são complexos e envolvem, além dos riscos sociais e biológicos, os riscos químicos, como a exposição múltipla aos agrotóxicos, ao mercúrio, por exemplo.

Em territórios de maior vulnerabilidade socioambiental, como áreas de agronegócio, de grandes empreendimentos, com intenso fluxo migratório e intensa transformações advindas do modelo de produção, que ocasiona aumento da prostituição, do uso de drogas, violência, esgarçamento do tecido social, a ESF/SUS precisa atuar considerando o dinamismo do território, tais como: processos de desterritorialização e reterritorialização. Isso requer habilidades de fortalecimento da luta social local por saúde, constituindo relações sociais que evidenciem as relações de poder em permanente tensão e disputa no território das PCFA em um processo de correponsabilização com sujeitos que conformam as novas territorialidades.

Essa efervescência de transformações também se relaciona com toda mudança advinda com a internet, gerando necessidades de planejamentos participativos críticos, considerando essas diversas dimensões que geram necessidades de novas práticas, valores e de novos saberes para aqueles que compartilham o modelo de atenção ESF no território.

A pesquisa em saúde rural ajuda a entender a saúde no contexto rural e tem ganhado cada vez mais espaço e consistência, em um percurso no qual se apresenta como instrumento de justiça social, executada por meio de métodos de diálogos de saberes, que buscam promover o empoderamento e a emancipação dos sujeitos, mas ainda com muitas questões de investigação.

Trata-se de uma ESF que seja estruturada conforme os preceitos de um novo modelo de atenção. Uma proposta nova e diferenciada que rompa com a lógica curativista e que considere as especificidades da influência da determinação social da saúde, inclusive na organização do processo de trabalho. Além desses aspectos, há ações diretas e específicas que precisam ser estimuladas, como: estratégias individuais e coletivas que estimulem a alimentação adequada e saudável, com ênfase na produção orgânica e na agricultura familiar e ampliação das práticas populares e tradicionais de cuidado por meio do acesso às Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics).

Os desafios para a consolidação da APS nos cenários rurais e remotos para os próximos anos são diversos e complexos, mas não são desconhecidos, possibilitando o planejamento estratégico do Estado brasileiro para mitigar as adversidades e construir intervenções solidárias e promotoras de saúde e qualidade de vida das PCFA.