INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 - A ESTRUTURA DO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS: principais aspectos. CAPITULO 2 - OS MECANISMOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS: formas de monitoramento e denúncia de violações na esfera internacional. CAPÍTULO 3 - OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS & O ESTADO BRASILEIRO: inserção e aplicabilidade no ordenamento jurídico interno. CAPÍTULO 4 - A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
CONCLUSÃO REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Introdução O sistema internacional de proteção aos direitos humanos visa eminentemente a proteção do ser humano independente de sua nacionalidade, raça ou credo. Apesar de sua recente formação, considerando-se que o reconhecimento da tutela universal dos direitos humanos se deu com a Declaração Universal de 1948, atualmente, observa-se que a evolução desse sistema vem sendo bastante dinâmica na medida em que, nos dias atuais, se contempla a proteção internacional dos direitos fundamentais em níveis global e regional. Sob este prisma, o presente trabalho inicialmente procederá a análise do atual sistema de proteção internacional dos direitos humanos, atribuindo-se especial ênfase à estrutura do sistema das Nações Unidas (i.e., sistema global) e do sistema da Organização dos Estados Americanos (i.e., sistema regional), visto o Brasil ser membro de ambos organismos. A análise da formação dos sistemas, por sua vez, se dá mediante a breve descrição dos principais instrumentos internacionais vigentes e seus órgãos de monitoramento. Com base nesses esclarecimentos preliminares, proceder-se-á ao exame dos principais mecanismos de supervisão dos tratados de direitos humanos em esferas global e regional, através da análise detalhada do funcionamento desses mecanismos, seus requisitos de admissibilidade e suas limitações. Em seguida, buscar-se-á proceder abordagem à respeito da incorporação dos tratados de direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se do seu processo de inserção segundo a Constituição Federal de 1988, bem como dos instrumentos ratificados e dos protocolos facultativos a espera de ratificação. Por fim, à título de ilustração sobre o real teor de um desses mecanismos, qual seja o relatório, será examinado alguns aspectos do mais recente "Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil", com especial atenção aos casos específicos de violações ocorridas na Região Amazônica, constantes do referido documento. Ante o exposto, o presente estudo tem o intuito de realizar a análise dos principais instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos em vigor, com ênfase no funcionamento e eficácia de seus mecanismos de supervisão, bem como no modo pelo qual se dá o reconhecimento de tais instrumentos e mecanismos pelo direito interno do Estado brasileiro. CAPÍTULO 1
Principais aspectos 1.1 - Considerações Gerais Em decorrência das atrocidades cometidas por ocasião da Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos. Assim, com o final da guerra em 1945, a observância e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais adquiriu tratamento de caráter universal, um vez que assumiu maior relevância perante a Comunidade Internacional.
______________________________________¹ BILDER. Richard B. Na overview of international human rights law. In: HANNUNM. Hurst (Editor). Guide to International Human Rights Practive, 1992. P. 3-5
Finalmente, a Declaração de Viena foi o documento da ONU que explicitamente endossou a democracia como a forma de governo mais favorável para o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais"²
Por sistema regional deve-se considerar os atuais organismos internacionais regionais existentes com o europeu, representado pela Comissão Européia de Direitos Humanos; o americano, representado pela Comissão Interamericana e Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA); e o africano, representado pela Comissão Africana de Direitos Humanos (OUA), os quais buscam a internacionalização dos direitos humanos nos planos regionais. Ressalte-se que o presente trabalho, pelos objetivos que encerra, somente tratará do Sistema Regional Americano, ou seja, da estrutura da OEA no que se relaciona à direitos humanos, sistema do qual o Brasil é ______________________________________________² LAFER, Celso. In: ALVES, J.A. Os Direitos Humanos como Tema Global. Prefácio. P. XXXIV Estado-membro. Cabe aqui enfatizarmos que os sistemas, seja o global ou os regionais, são dotados de autonomia e, de maneira alguma, o sistema regional (como a OEA, por exemplo) sujeitar-se-á às deliberações do global e vice-versa. Nesse sentido, afirma Lindgren Alves, em sua obra Os Direitos Humanos com Tema Global:
Portanto, é sobre a recente estrutura internacional de proteção aos direitos humanos que o presente capítulo se refere, de forma a fornecer seus principais elementos e peculiaridades. _____________________________________________³ ALVES, J. Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global, 1994.p. 75 4 BOVEN, Theo Van. The International System of Human Rights: na overview; In: ONU. Manual on Human Rights Reporting 1991.p. 3 Liana Rodrigues O Sistema Global: a Organização das Nações Unidas (ONU) & os Direitos Humanos 1.2.1 - Estrutura da Organização das Nações Unidas5 Fonte: ONU, Site [online] via: http://www.unhchr.ch/hrostr.htm No âmbito da ONU, a Comissão de Direitos Humanos (CDH), criada em 1946, é o principal órgão. A CDH está subordinada ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC), o qual elege para mandatos de 03 (três) anos integrantes de 53 países, de forma equilibrada sendo: 15 da África, 12 da Ásia, 11 da América Latina e Caribe, 10 da Europa Ocidental e outros (inclusive os EUA e Canadá); e 05 da Europa Central e Oriental (o outrora denominado grupo 'socialista').
A CDH tem sua previsão legal constante nos arts. 55, alinea "c", e 56 da Carta das Nações Unidas, fundando-se no compromisso de cooperação internacional entre os Estados-membros da ONU, a fim de que se proceda a promoção universal dos direitos humanos. É, portanto, um órgão de natureza essencialmente política, que tem como órgão "técnico" a Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, composta por pessoas indicadas pelos Estados, conforme suas qualidades ou especialidades. Essa subcomissão recebe do ECOSOC e da CDH as funções de realizar estudos e recomendações à CDH relativas à discriminação de qualquer espécie, mas também pode realizar qualquer atividade determinada pelos já citados órgãos. De cunho emine ntemente político, faz-se necessário, por fim, enfatizar que a CDH não possui competência judicial, nem tampouco aatende casos individuais, à exceção das recomendações de relatórios especiais que possam ocorrer6. Ao contrário dos sistemas regionais, como veremos a seguir, o sistema global tem como objetivos primordiais "o estabelecimento de parâmetros universais e a controle de sua observância na prática das Estados"7, já que convivem com as mais diversas culturas, ordenamentos jurídicos, sistemas políticos. __________________________________________________________6 A título de exemplo, o Governos brasileiro recebeu recomendações expressas do Relator Especial para casos de Execução Sumária da ONU para que proceda em caráter de urgência o julgamento do caso denominado "Massacre de Eldorado dos Carajás", ocorrido em abril de 1996, no município de Eldorado dos Carajás, Pará. 1.2.2- Principais Normas Internacionais:
Desse modo, a CDH, com a missão de elaborar uma Carta Internacional de Direitos Humanos8, teve a Declaração com o primeiro documento a compô-la e sua proclamação em 10 de dezembro de 1948, em Paris, culminou na primeira iniciativa de se tentar traçar um padrão internacional de proteção aos direitos humanos. Entretanto, importante se faz frisar que várias foram as divergências entre os países, em especial aos países do "Bloco Socialista", liderados pela ex-União Soviética, que discordavam por exemplo com a preponderância das "liberdades vivis". Assim, a explicação para uma rápida adoção de tão importante documento deveu-se a seu caráter não obrigatório, posto que, diferentemente, dos tratados, convenções, pactos e acordos, as declarações não possuem força jurídica obrigatória. Tradicionalmente, os direitos garantidos por esse documento são divididos em duas categorias: 1 - Os Direitos Civis e Políticos (arts. 3º a 21), que tratam da liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão, movimento e residência, reunião e associação política, bem como os direitos a formar governo, a eleições legítimas com sufrágio universal e igual. ________________________________________ 8 A Carta Internacional de Direitos Humanos é constituída pela Declaração Universal de 1948 e pelos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos Sociais e Culturais. 2 - Os Direitos Econômicos Sociais e Culturais (arts. 22 a 28), que tratam dos direitos ao trabalho, repouso, lazer e segurança social, e ainda à instrução e participação na vida cultural da comunidade. 1.2.2.2 - Os Pactos
Por fim, diferentemente do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto de Direitos Civis e Políticos tem como mecanismo de implementação o Comitê de Direitos Humanos, que os reporta ao ECOSOC (vide art. 40 e parágrafos). 1.2.2.3 - As Grandes Convenções
o Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Adotada em 21 de dezembro de 1965, com vigência a partir de 1969. Esta convenção é proveniente de diversos fatos históricos, como a independência de vários países africanos e o ressurgimento de atividades nazifascistas na europa, que estimularam a sua edição como um instrumento internacional voltado ao combate da discriminação racial.
o Convenção contra a Tortura e outros tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes. Adotada em 10 de dezembro de 1984 pela Assembléia das Nações Unidas, com vigência a partir de 1987, obriga os Estados que a ela aderiram a tomar medidas a fim de impedir a prática de atos de tortura, assim como sua punição em qualquer hipótese, inclusive determina que não se pode invocar "circunstâncias excepcionais" (v.g., estado de guerra ou instabilidade política) para explicar sua prática.
o Convenção sobre os Direitos da Criança. Adotada em 1989, e vigente a partir de 1990 aproximadamente 10 anos, devido as divergências de ordem religiosa, cultural e sócio-econômica entre os países das mais diversas regiões do mundo. Por esta convenção, os Estados-partes estão obrigados a proteger a criança de todas as formas de discriminação, bem como a dar-lhe total assistência. Note-se que a Convenção define a criança como todo ser humano menor de 18 (dezoito) anos de idade, se legislação interna não dispuser contrariamente quando a maioridade, como por exemplo país que determine que a maioridade seja atingida mais cedo. São direitos assegurados por esta convenção: a vida; a ter uma nacionalidade; à proteção para não ser levada ilicitamente ao exterior; à educação; à proteção contra a exploração econômica, etc. O órgão responsável pelo seu monitoramento é o Comitê sobre os Direitos da Criança (sigla inglesa CRC), o qual é realizado através dos relatórios submetidos pelos países que a ratíficaram. 1.2.3 - O papel das Organizações Não-Governamentais (ONGs)
Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar que muitas dessas convenções globais e regionais foram fruto das pressões exercidas por estas organizações. Foi o que ocorreu por exemplo com a aprovação da Convenção sobre a Tortura, através da promoção de campanhas de conscientização internacional para o fato que, àquela época, vinha assolando os povos, em especial os países de regimes ditatoriais. Organizações como a Anistia Internacional (AI) com sede em Londres; Federação Internacional de Direitos Humanos (FDH), com sede em Paris; Human Rights Watch, com sede em Washington DC, entre outras, com escritórios ou convênios firmados com diversas outras ONGs, têm contribuído de forma crucial para a transparência e publicidade das deliberações ocorrida nas sedes da ONU em Genebra e Nova Iorque. O reconhecimento da importância de tais ações pela ONU está presente na aprovação da Resolução 1996/3110, que estabelece os critérios para a concessão do "status consultivo" ou "credenciamento" (consultative status) às ONGs para que possam monitorar as atividades desenvolvidas pelo conselho Econômico e Social e órgãos subsidiários (v.g., Comissão e subcomissão de Direitos Humanos) das Nações Unidas. Ademais, em 10 de dezembro de 1998, a Assembléia das Nações Unidas aprovou a "Declaração Sobre os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidas"11, sem dúvida mais uma demonstração de reconhecimento da importância atual do trabalho que desenvolvem as ONGs de direitos humanos, visto que em 20 artigos objetiva essa declaração ser o início das discussões sobre a proteção de profissionais que atuam de forma intensa em busca de garantia de direitos fundamentais. _________________________________________10 HUMAN RIGHTS MONITOR, Genebra: International Service for Human Rights, nº 36, 1997.p. 30 No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), o sistema interamericano de direitos humanos conta com uma estrutura mais simples, porém não menos importante, e está estruturado basicamente por dois órgãos que compõem a estrutura da OEA, quais sejam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), como sede em Washington DC (EUA), e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em San José (Costa Rica).
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi criado em 1959, por foça do que determina a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948), e em 1960 a Comissão realizou sua primeira sessão. _____________________________________
a - recebe, analisa e investiga petições individuais que aleguem violações de direitos humanos, conforme os art. 44-55 da Convenção; b - observa a situação geral dos direitos humanos em cada Estado-Membro, e publica relatórios sobre um Estado específico, quando considera necessário; c - realiza visitas in loco para apurar denúncias de violações constantes em relatórios; d - estimula a conscientização sobre os direitos humanos nas Américas, através de publicações de estudos em diferentes matérias, como independência do judiciário; situação dos direitos de menores, mulheres, povos indígenas, etc; e - recomenda dos Estados a adoção de medidas de precaução ou provisórias que contribuam para a proteção dos direitos humanos; ____________________________ 13 Os mecanismos de implementação das funções da CIDH serão melhor esclarecidos nos seguintes, o qual trata especificamente dos instrumentos de proteção regional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema regional, foi criada e definida pelo "Pacto de São José", é composta por 7 (sete) juízes, nacionais de Estados-membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados-partes da Convenção (art. 52) A Corte possui basicamente as competências consultiva e judicial ou contenciosa14. A primeira atribuição é ampla, o que se traduz no fato de que todos os Estados-membros da OEA, partes ou não do "Pacto de São José", podem consultá-la sobre a interpretação da Convenção Americana ou demais tratados regionais, bem como a relação entre instrumentos jurídicos internos e os citados tratados. Por outro lado, a competência judicial, para a apreciação e julgamento de casos à Corte submetidos pela Comissão, limita-se aos Estados-partes da Convenção Americana que expressamente reconheçam tal jurisdição. 1.3.2 - Principais Normas Internacionais:
Tal Convenção, adotada em 22 de novembro de 1969 com vigência a partir de julho de 1978, fundamenta-se na consolidação do Continente Americano da aplicação de um regime de liberdades pessoais e justiça social, através do fortalecimento das instituições democráticas de direitos humanos.
Adotada pela Assembléia geral da OEA em 09 de dezembro de 1985, tal convenção surgiu da necessidade dos países americanos buscarem a eliminação da prática de qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante, no ordenamento interno de cada Estado. Nesse sentido, determina o art. 6º desta convenção: "Os Estados-partes assegurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos sem eu direito penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que, levem em conta sua gravidade. Os Estados-partes obrigam-se também a tomar medidas efetivas para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, no âmbito de sua jurisdição". Da mesma forma que a Convenção sobre tortura adotada pelas Nações Unidas (vide item 1.2.2.3, supra), a Convenção Interamericana sobre a Tortura (art. 2º) define o delito de tortura e seu sujeito passivo, e em seu art. 3º indica o responsável pelos atos tipificados, quais sejam os empregados ou funcionários públicos, bem como as pessoas instigadas por esses primeiros atos de tortura. 1.3.2.3 - A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará") Adotada em 09 de junho de 1994 pela Assembléia Geral da OEA, esta convenção surge, assim como outros documentos internacionais sobre a matéria, da constatação de que as mulheres constituem um grupo especialmente vulnerável e da observância de que o princípio da "igualdade entre todos", presentes nos primeiros documentos internacionais que tratam da proteção dos direitos humanos, estaria longe de ser alcançado com tamanha disparidade de igualdade de condições entre homens e mulheres.
Dessa forma, aos estados compete a tomada de medidas para prevenir a violência, investigar a violação de forma a punir os agressores, assim como assegurar a compensação as vítimas. Os deveres dos Estados estão expressos em detalhes no art. 8º da Convenção. 1.4 - A Questão da Soberania: aspectos centrais.
Em suma, é, sem dúvida, a partir do momento em que o indivíduo passa a ser sujeito de direito internacional, a tradicional soberania absoluta sofre um processo de relativização, conseqüência imediata do processo de internacionalização dos direitos humanos. __________________________________ CAPÍTULO 2 OS MECANISMOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS: formas de monitoramento e denúncia de violações na esfera internacional 2.1 – Considerações Gerais A adoção de inúmeros tratados de direitos humanos, tanto em defesa global quanto em regional, por quase a totalidade dos Estados do mundo, traduz-se em uma tendência progressiva ao reconhecimento, por parte das mais diversas nações, dos direitos humanos como universais e interdependentes. É imperioso, porém, quando da adoção dos referidos tratados, que mecanismos de implementação eficazes estejam assegurados a fim de que as obrigações assumidas pelos Estados-partes de cada novo instrumento internacional sejam cumpridas. Desde a Declaração Universal de 1948, coexistem diversos instrumentos de proteção estabelecendo regras de conteúdo material. Com o intuito de dar a esses textos proteção efetiva, criou-se os órgãos com competência investigatória, consultiva ou jurisdicional. Recentemente vem-se, de forma gradual, atribuindo capacidade processual às vítimas. Tal fato ocorre porque, dentre outros fatores, os direitos assegurados à pessoa humana independem da nacionalidade dos indivíduos, já que tais direitos são a todos dirigidos pela pura e simples qualidade de seres humanos que os é inerente. Logo, pode-se afirmar que “os indivíduos, em relação a tais documentos e às instituições, órgãos ou entidades encarregadas de protegê-los, não aparecem através de um Estado, mas sim ‘desnacionalizados’”18. No atual estágio de evolução dos mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, as pessoas são titulares para exercer direitos diretamente no plano internacional, sendo-lhe inclusive atribuída capacidade processual para recorrer aos órgãos de supervisão internacional. Entretanto, a evolução desses mecanismos trouxe a necessidade de se promover a harmonização dos dispositivos convencionais (internacionais) e internos (nacionais). Via de regra, a harmonização se dá através das “cláusulas de compatibilização” contidas nos tratados, as quais fazem referência aos dispositivos constitucionais e leis ordinárias, o que significa dizer que os tratados assumem caráter subsidiário, na medida em que atribuem aos órgãos e procedimentos de direito público nacional a competência de primeiro conhecer da violação. Ademais, os procedimentos internacionais não somente têm papel subsidiário, como também – e é ai que reside o maior óbice a sua implementação – são de caráter facultativo19, posto que o reconhecimento da competência dos órgão internacionais depende de retificação da cláusula que os institui, fato ocorrido recentemente quando o Estado brasileiro finalmente reconheceu a jurisdição da corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre a qual se deu tratamento especial no tópico seguinte deste trabalho. __________________________________ 18 GIANNELLA, B. CASTANHEIRA, B. Mecanismos de Implementação dos Direitos Humanos no Âmbito da ONU e da OEA. In: SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Direitos Humanas. 1998, p. 170 19 Daí porque se afirma que, ainda hoje, inexiste jurisdição internacional compulsória. 2.2 – Os Principais Mecanismos Os instrumentos internacionais, ainda que com certas peculiariedades, prevêem mecanismos diversos de monitoramento dos direitos internacionalmente assegurados, dentre os quais se pode destacar: os relatórios; as comunicações interestatais, as petições individuais; e os procedimentos de investigação. 2.2.1 – Os Relatórios Os relatórios são os mais tradicionais mecanismos de monitoramento utilizados pelos órgãos internacionais criados por tratados. Sua origem remonta a extinta Liga das Nações que os adotava efetivamente para assegurar os direitos de povos dos antigos territórios coloniais ou protetorados20. Alguns anos foram necessários para que os tratados também determinassem que países independentes igualmente apresentassem relatórios. Assim, em meados dos anos 50, os relatórios passaram a ser requeridos de todos os países, ainda que de forma voluntária e geral. Somente mais tarde, por volta de 1965, que, pela adoção de convenções sobre violações específicas – a começar pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, em 1965 -, desenvolveu-se um sistema formal de apresentação de relatórios, especificando-se as obrigações dos Estados através dos instrumentos internacionais. Desta feita, pode-se afirmar ainda que os relatórios são os mais importantes dos mecanismos, pelo simples fato de que são os propulsores dos demais mecanismos, uma vez que os subsidia com informações relevantes sobre a situação do Estado-parte. ___________________________________ 20 ALSTON, Philip. The Porpuses of Reporting. In; ONU. Manual on Human Rights Reporting. 1991.p. 13. O sistema de relatórios pode ser considerado um sistema de supervisão comum, de natureza especialmente não-contenciosa e baseada no método do diálogo, previsto em diversos instrumentos internacionais que dispõem sobre o envio de relatórios periódicos aos órgãos de supervisão, que por sua vez têm a função de elaborar os seus relatórios, eventualmente utilizados como fonte de informações para tomada de decisões contra os Estados-partes. Os relatórios devem ser elaborados pelo Estado-parte de dado tratado de direitos humanos, afim de esclarecer de que forma o Estado tem promovido o cumprimento das obrigações assumidas quando da ratificação do instrumento. Ademais, devem conter as medidas administrativas, legislativas e judiciais adotadas pelo Estado. 2.2.2 – As Comunicações Interestatais e as Petições Individuais. Ainda são consideradas mecanismos de procedimento especial, generalizadamente denominados “comunicações”, têm característica “quase judicial”, uma vez que respeita o principio do devido processo legal, comportando inclusive requisitos formais e materiais de admissibilidade, como veremos a seguir, o que implica no fato do órgão supervisor ter a obrigação de dar às partes o direito de defesa. Através das Comunicações Interestatais, um Estado-parte pode denunciar que outro Estado-parte violou direitos humanos enunciados em certo tratado. É um mecanismo previsto como cláusula facultativa e, portanto, requer que o Estado-parte expressamente declare a sua aceitação, como por exemplo dispõe o art. 45 da Convenção Americana. Já pelas Petições Individuais (ou comunicações individuais), qualquer pessoa ou grupo de pessoas tem o direito de petição a organismos internacionais, desde que respeitados os requisitos de admissibilidade, que veremos a seguir. Esse mecanismo também consta nos tratados em geral; como cláusula facultativa, à exceção do que determina o art. 44 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual não exige o reconhecimento expresso do referido mecanismo. Sobre as petições individuais, cabe ainda enfatizar que em princípio cabe ao reclamante/peticionário escolher qual o instrumento ou até mesmo organismo internacional mais favorável a seu caso, na hipótese de o mesmo direito ser protegido em esferas global e regional. 2.2.3 – Procedimentos de Investigação Estes podem ser procedimentos permanentes ou ad hoc. Tais procedimentos têm cabimento em situações de violação de direitos humanos particulares de um país ou território, podendo-se nomear relator especial sobre a situação de um país específico; ou até mesmo se referir a certas práticas que afetem um grande número de pessoas em mais de um país ou território. A guisa de ilustração, por ocasião dos eventos ocorridos no Chile, durante o regime Pinochet, a Comissão de Direitos Humanos estabeleceu um Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre a situação dos direitos humanos naquele país, o que culminou em 1979 com a nomeação de um Relator Especial (Special Rapporteur) sobre a Situação de Direitos Humanos no Chile, tendo seu mandato sido expirado em 199021. Com intuito similar, a Comissão, em 1982, recomendou a nomeação de um Relator Especial em Execuções Sumárias e Arbitrárias, dado o enorme volume de casos de assassinatos, execuções sumárias, ocorridos em várias partes do mundo. _________________________________________ 21 BOVEN, Theo Van. Op. Cit. p. 09 Acrescente-se que as investigações englobam visitas in loco; contratação de profissionais peritos em determinadas matérias (relatores especiais) a fim de avaliarem as denúncias, a oitiva de testemunhas e produção de provas em geral, e demais iniciativas necessárias. 2.3 – Os Mecanismos Internacionais perante a ONU Inicialmente, deve-se esclarecer que os mecanismos internacionais do sistema global são bastante complexos, podendo ser divididos em mecanismos convencionais (treaty based), uma vez que são previstos em certo tratado; e mecanismos extra-convencionais (Inon-treaty based), pois, apesar de não previstos em tratados, são utilizados para situações de violação de alto impacto perante a Comunidade Internacional, como uma forma de proporcionar tratamento especial a certos fatos, que podem ou não terem sido objeto de algum dos mecanismos convencionais. Dado a complexidade e extensão do tema, proceder-se-á a análise dos principais mecanismos, remetendo-se ao Capítulo 1 deste trabalho para melhor compreensão da estrutura das Nações Unidas. 2.3.1 – Mecanismos Convencionais Pelo sistema das Nações Unidas há órgãos que, criados por sua respectivas convenções, são competentes para receber petições ou comunicações de indivíduos vítimas de violações de direitos humanos. Tais órgão foram criados com a função de monitorar as obrigações assumidas pelos Estados-partes. Como dito anteriormente, o sistema de petições é facultativo, o que significa afirmar que a mera ratificação do tratado não implica em aceitação desses mecanismos de controle pelo Estado. De todos os órgãos, o Comitê de Direitos Humanos é o mais bem estruturado e experiente em receber petições individuais, razão do destaque dado a este órgão de monitoramento. Este Comitê foi criado pelo Protocolo facultativo de Pacto de Direitos Civis e Políticos, e é formado por 18 (dezoito) expertos os quais se reunem ordinariamente três vezes ao ano. O Protocolo prevê requisitos substanciais e formais para a admissibilidade da comunicação pelo Comitê. Quanto aos requisitos substanciais, o art. 1º do Protocolo determina que o Comitê é competente para receber petições de indivíduos vítimas de violações previstas no Pacto (direitos previstos nas parte II e III do citado instrumento, além da proibição de pena de morte, contido no Segundo Protocolo Facultativo, vigente a partir de 11 de julho de 1991). A comunicação poderá ainda ser submetida por um representante, na hipótese da vítima não poder fazê-lo por impedimentos diversos, tais como a alegação de seu desaparecimento. Acrescente-se que este representante deve ser um parente próximo, cabendo a este último provar a sua qualidade, constituindo-se este no primeiro requisito de admissibilidade da comunicação. Além disso, somente os estados que hajam ratificado o Protocolo Facultativo podem ser sujeitos à denúncias levadas ao Comitê de Direitos Humanos. Quanto ao indivíduo que alega ser vítima de violação, este pode ser cidadão ou residente do Estado-parte, com tanto que esteja sob a jurisdição do referido Estado-parte do Protocolo no momento da denúncia. Quanto aos direitos assegurados, não possuem efeito retroativo no que se refere às petições. Assim, uma denúncia/comunicação individual será declarada inadmissível se a mesma tiver ocorrido antes da vigência do Pacto e de seu Protocolo Facultativo pelo Estado-parte. Mas, se a violação for continuada, e parte dela houver ocorrido na vigência de tais instrumentos, o Comitê irá considerá-la admissível. Deve-se ainda observar, quando da aceitação da comunicação pelo Comitê, se o direito invocado segundo a Pacto não foi objeto de reserva quando da ratificação pelo Estado-parte22. __________________________________ 22 LEWIS-ANTHONY. Siân. Theaty Based Procedures for Making Human Rights Complaints within the UN System In: Hurst (cd.) Guide to International Human Rights Practice. 1992. p. 44. Ademais, o artigo 5 (2), prevê que o Comitê não poderá considerar comunicação, com mesmas partes e objeto, que esteja sendo apreciada por outro procedimento de investigação internacional, como a comissão Interamericana de Direitos Humanos, de âmbito regional. Por fim, assim como outros órgão internacionais de direitos humanos, o Comitê não pode aceitar comunicações antes que os recursos internos tenham sido esgotados (exhaustion of domestic remedies) ou que tais recursos tenham sido ineficazes ou injustificadamente prolongados23. Quanto aos requisitos formais, o Comitê de Direitos Humanos possui um modelo de petição para auxiliar aos peticionários, ainda que não seja obrigatório o seu uso. A petição deve conter as seguintes informações: a) nome, endereço, e nacionalidade da vítima e do autor, se diferentes; as razões que levam o autor a agir em nome da vítima, na hipótese de parente próximo; identificação do Estado contra o qual a denúncia é feita; os artigos do Pacto que se alega serem violados, procedimentos tomados em âmbito interno (espécie de histórico das fases processuais domésticas ocorridas); declaração de que o mesmo caso está ou não sendo apreciado por outro procedimento internacional regional ou global; uma descrição detalhada dos fatos como forma de fundamentação das alegações, incluindo-se datas mais importantes. A petição deve ser encaminhada ao Comitê de Direitos Humanos, aos cuidados do Centro de Direitos Humanos da Sede das Nações Unidas em Genebra. Não deve ser anônima, podendo-se requerer ao Comitê que não revele o nome do autor e/ou vítima quando da publicação da decisão. Por fim, não há prazo específico para a submissão da petição ao Comitê. _____________________________________ 23 Esta segunda hipóteses é bastante comum no Brasil, uma vez que é corrente a demora injustificada de processos que envolvam violações de direitos humanos por omissão do judiciário ou prática de atos protelatórios do réu, que raramente são punidos. O procedimento tem início com o recebimento da petição pelo Comitê. Em seguida um Special Rapporteur, membro do Comitê, é designado para obter maiores informações das partes sobre a petição recebida, até que esteja certo de que a petição preenche todos os requisitos preliminares de admissibilidade. O relator, então, transmite a petição ao Estado-parte denunciado, requerendo que se pronuncie sobre a veracidade dos fatos, dentro de um prazo, em regra, de dois meses, e ao autor é dada a oportunidade de tecer comentários a resposta do Estado. No curso da apreciação dos requisitos de admissibilidade, o Comitê pode requerer ao Estado que tome medidas cautelares, como por exemplo o Comitê pode demandar que o Estado não aplique pena de morte contra a vítima. Essa medida não possui caráter compulsório, mas somente moral. Uma vez declarada a petição admissível, pelo artigo 4 (2) do Protocolo o Estado tem seis meses para submeter explicações escritas, esclarecendo os fatos, ou mencionando as providências tomadas, se houver. Qualquer pronunciamento do estado é enviado ao autor o qual, por sua vez, tem seis semanas para oferecer informações adicionais ou observações. Para este procedimento em particular predominam as informações escritas fornecidas pelas partes. Assim, inexistem previsões de oitiva das partes em audiência ou investigações in loco das denúncias. Ademais, ao contrário de muitos outros procedimentos internacionais, o Comitê não possui função de intermediador de possível conciliação (solução amistosa) entre as partes. No que se refere a decisão, esta deve compreender a maioria de votos dos presentes, mas na prática tenta-se obter o consenso dos membros. Com o recebimento de todas as informações relevantes, o Comitê formula suas recomendações, as quais são enviadas às partes. É dada a devida publicidade dessas recomendações através de publicação, ao final de cada sessão, no Relatório Anual do Comitê para a Assembléia Geral. Acrescente-se que as recomendações não são de caráter compulsório e, até recentemente, nenhuma sanção existe para os Estados que não a fazem cumprir. Na prática, o que se tem observado é que poucos Estados respondem positivamente às recomendações, informando sobre as medidas tomadas para remediar a situação24. Além do mecanismo previsto no Protocolo facultativo acima descrito, as convenções em geral prevêem a criação de respectivos comitês de monitoramento através de comunicações interestatais e individuais, com procedimentos de admissibilidade e fases procedimentais semelhantes, ainda que cada qual tenha alguma peculiaridade. Cabe aqui ressaltar que esses comitês são muito recentes e pouco eficazes o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), por exemplo, somente tornou-se competente para receber petições em dezembro de 1982, e até 1991 somente havia apreciado duas petições individuais, apesar de outras estarem pendentes25-, o que muito se atribui ao reduzido número de Estados que reconhecem essas cláusulas facultativas. Sendo assim, pode-se afirmar que de todos os mecanismos convencionais das Nações Unidas somente o Comitê de Direitos Humanos, instituído pelo Protocolo facultativo do Pacto de Direitos Civis e Políticos, encontra-se em funcionamento por um período relativamente longo para ser objeto de uma análise justa quanto a sua validade. ________________________________________ 24 LEWIS-ANTHONY, Sián. Op. Cit. p. 48 25 LEWIS-ANTHONY, Sián. Op. Cit. p. 49
_____________________________________ 26 A Assembléia Geral também pode proceder tais investigações, como vem fazendo desde 1968, quando houve a criação do Comitê Especial sobre os Territórios Israelenses Ocupados, Sendo seus relatórios enviados ao Comitê de Direitos Humanos. Via de regra, os mecanismos de países recebem informação de indivíduos, grupos ou governos e ainda, na maioria dos casos, seus representantes realizam visitas in loco em busca de fontes de informações mais idôneas. As informações podem ser orais ou escritas, não havendo formalidades, sendo da responsabilidade do Grupo de Trabalho ou do Relator avaliar a veracidade dos fatos.
Liana Rodrigues O relatório anual de cada grupo ou relator deve conter as informações de todas as atividades supracitadas, bem como detalhes sobre as reuniões com os governos, descrições das visitas, análises gerais e recomendações. Na prática, todos esses mecanismos temáticos aceitam informações das mais variadas fontes, desde que consideradas idôneas. Não há modelo especial para submetê-las, exige-se que a informação seja o mais confiável e convincente possível, devendo conter informações básicas como o nome da vítima, a data e o lugar do incidente etc. Qualquer informação superveniente à denúncia deve ser levada ao conhecimento do relator ou grupo, seja com o intuito de corrigir ou confirmar a denúncia. 2.4 - Os Mecanismos Internacionais perante a OEA
A Comissão é competente para receber petições de indivíduos, grupos de pessoas ou organizações não-governamentais, desde que legalmente reconhecidos em pelo menos um país membro da OEA. A petição deve referir-se a uma provável violação de um direito protegido pela Convenção (art. 31 do Regulamento da Comissão), ou a uma provável violação da Declaração, quando se tratar de Estados-membros que não sejam parte da Convenção (art. 51 do Regulamento da Comissão). ________________________________
Pelos requisitos formais, determina-se que a petição deva ser apresentada por escrito, devendo conter: a) os dados pessoais dos denunciantes ou peticionários (art. 32 do regulamento); b) resumo dos fatos, indicando o que aconteceu, como, quando, que tipo de participação tiveram os agentes estatais, os nomes das vítimas, se possível identificá-las; as autoridades que tomaram conhecimento dos fatos etc; c) identificação do Estado que violou os direitos, por ação ou omissão, e quais os direitos violados. A seu turno, os requisitos substanciais são: a) demonstração do esgotamento dos recursos internos ou a aplicabilidade de uma das causas de exceção, previstas no art. 46, parágrafos 1a e 2 da Convenção; b) demonstração do não esgotamento do prazo de seis meses, contados da decisão definitiva, para apresentar a denúncia previsto na Convenção (art. 46, 1b); demonstração de que não haja simultaneidade com outro procedimento internacional (art. 39 do Regulamento).
Admitida a petição, a Comissão solicita informações ao Estado acusado, enviando cópia das peças principais e da petição. O Estado tem 180 dias para resposta (podendo ser ampliado), sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos alegados. Ao receber a resposta, a Comissão observa se a violação ainda persiste. Em não persistindo, a denúncia é arquivada. Porém, se perdurar, a Comissão inicia seu processo investigatório, podendo apreciar depoimentos escritos ou verbais dos interessados, realizar visitas in loco, sendo os Estados envolvidos obrigados a colaborar com a investigação.
O estado denunciado tem três meses para dirimir a questão. Se não o fizer, a Comissão, por voto de maioria absoluta de seus membros, remete o caso à Corte Interamericana e procede a Publicação do citado relatório, constituindo-se tal publicação numa sanção moral para o estado, já que denúncias de violações de direitos humanos em seu território são expostas à opinião pública internacional. 2.4.2 – A Corte Interamericana Como enfatizado anteriormente a Corte tem competência para resolver disputas referentes a violação de direitos humanos por um Estado (competência contenciosa), bem como para interpretar dispositivos da Convenção Americana e demais instrumentos relativos à matéria (competência consultiva). A Corte somente pode receber casos submetidos pela Comissão ou Estados signatários. Por isso, indivíduos ou grupos necessariamente terão que primeiro provocar a Comissão e, se esta decidir, envia o caso à Corte, privilegiando-se assim a solução amistosa dos conflitos. A jurisdição da Corte depende de aceitação prévia por parte do Estado acusado, essa aceitação pode ser incondicional, ou condicionada a certos casos ou por certo período de tempo. A Corte, com sua decisão, pode exigir o restabelecimento do direito ou liberdade violados, a reparação do dano e o pagamento de justa indenização a vítima. Suas decisões são definitivas, não cabendo recursos, devendo ser fundamentadas. Quando publicadas, as decisões são remetidas a todos os Estados signatários, e o controle de sua execução cabe à Assembléia Geral da OEA, que anualmente recebe relatório com os casos julgados pela Corte. No que se refere a função consultiva da Corte, este pode ser provocada por qualquer Estado-membro da OEA, mesmo que não seja signatário do Pacto, ou mesmo por outros órgãos internos deste organismo. CAPÍTULO 3 OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS & O ESTADO BRASILEIRO: inserção e aplicabilidade no ordenamento jurídico interno 3.1 – Considerações Gerais Em relação ao posicionamento do Estado brasileiro no que concerne ao Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, observa-se que o marco inicial de um processo mais intenso de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro se deu com a ratificação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1986)28, seguindo-se de diversos instrumentos de proteção, dos quais trataremos infra. Tal fato atribui-se às inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988 – especialmente no que se refere ao primado da prevalência dos direitos humanos, como princípio norteador das relações internacionais -, bem como à crescente necessidade do estado brasileiro portar-se, perante a comunidade internacional, de modo mais condizente com as transformações advindas do processo de democratização, objetivando-se, por fim, adquirir uma imagem mais positiva em esfera internacional. É neste contexto que o presente capítulo tem o intuito de apresentar os principais tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, sem antes tecer considerações sobre os tratados em geral, sua inserção e aplicabilidade no ordenamento jurídico interno. ____________________________________ 28 PROVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 1998, p.32. Note-se que, antes da Convenção sobre a Tortura, somente duas convenções haviam sido ratificadas pelo Estado brasileiro, quais sejam a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação racial, em 1968, e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 1984, sendo que ambos constituíram atos jurídicos isolados. 3.2 – Os Tratados Internacionais: valor jurídico e processo de formação Os tratados internacionais são a principal fonte de obrigação do Direito Internacional. Constituindo-se em todos os Pactos, Cartas, Convenções e acordos internacionais celebrados entre sujeitos de direito internacional, sejam eles Estados ou organizações internacionais. Pela Convenção de Viena (1969), conhecida como a “Lei dos Tratados” por regular e disciplinar o processo de formação dos tratados, regras preliminares devem ser observadas, tais como: a) os tratados são por excelência expressão de consenso, portanto não atribuem obrigações aos Estados que não o consentiram expressamente, sob pena de sua nulidade, a menos que a obrigação seja oriunda do costume internacional, outra fonte do Direito Internacional. b) por sua vez, ao contraírem obrigações, sob o livre e pleno exercício de sua soberania; não mais podem invocar problemas de ordem interna que tentem justificar o não cumprimento de tais obrigações assumidas. Quanto a seu processo de formação, este pode variar substancialmente de um Estado para outro, mas, em geral, pode-se identificar quatro fases bem distintas. A primeira fase é formada pelos atos de negociações, conclusão e assinatura do instrumento, que em regra são da competência do Poder Executivo, na figura do Presidente da República ou do Ministro das Relações Exteriores. Note-se que o ato da assinatura é de mera aquiescência, não possuindo força vinculante29. _____________________________________ 29 PIOVESAN, Flávia. Op. p. 68 Na segunda fase o tratado, após sua assinatura, é submetido a apreciação e aprovação do Poder Legislativo. Uma vez aprovado, o instrumento é novamente remetido ao poder Executivo (terceira fase) para que este, então, proceda a ratificação, momento em que o Estado confirma formalmente sua aceitação de estar obrigado por um tratado. Por fim, a quarta e última fase é a do depósito do instrumento objeto da ratificação em órgão que detenha sua custódia. Desta feita, tratando das Nações Unidas deve ser depositado na ONU, assim como tratado de âmbito regional interamericano será depositado na OEA. Divergências há quanto a necessidade de ato normativo interno, posterior a ratificação, para que o tratado possa ter efeitos no plano nacional. Para alguns (teoria monista) o ato de ratificação produz efeitos concomitantemente nos planos internacional e interno, o que se denomina incorporação automática, sistema adotado pela maioria dos países europeus, alguns latino-americanos, africanos e asiáticos, sendo essa a teoria considerada a mais efetiva e avançada para assegurar a implementação de tratados internacionais. Por outro lado, há aqueles (teoria dualista) que consideram que a ratificação somente produz efeitos no plano internacional, daí a necessidade de produção legislativa interna. Por último, há ainda aqueles que ora adotam a teoria monista, ora a dualista, dependendo do teor do tratado internacional. Este é o caso do Brasil, que adota teoria mista, como veremos no item seguinte. 3.3 - A Constituição Federal de 1988 e os Tratados de Direitos Humanos: aspectos de incorporação automática (CF, art. 5º, §§ 1º, 2º)
Todavia, tal regra não poderá ser aplicada na hipótese de tratados que versem sobre a proteção dos direitos humanos, por força do que dispõe o §1º do art. 5º da Carta de 1988, senão vejamos: _____________________________________ 30 PIOVESAN. Op. Cit, p. 71 "Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País e inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, a segurança e a propriedade (...) §1º - As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata".
Ademais, tratamento diferenciado também é dado aos tratados de direitos humanos, por força do §2º do citado artigo, senão vejamos: "Art. 5º (...) §2º - Os direitos e garantias expressas nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Por esse dispositivo, enquanto os tratados de direitos humanos assumem hierarquia de norma constitucional, aos demais tratados internacionais fora atribuindo status de norma infraconstitucional.
Dessas distinções surge a afirmação de que a Carta de 1988 adota um sistema misto, congregando as teorias monista e dualista, conforme o teor do instrumento internacional. ___________________________________ 31 ONU. High Commissioner for Human Rights. Core Document Forming Part of the Reports of States Parties: BRAZIL (ONU HRI/CORE/Add. 53). Jan/1995, parágrafo 42. 32 TRINDADE, A. A. Cançado. Direito Internacional e Direito Interno: sua interação na proteção dos direitos humanos. In: SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: 1997. Prefácio, p. 21. 3.4 – Os Instrumentos Globais de Direitos Humanos Ratificados pelo Estado Brasileiro
FONTE: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional Internacional, 1997. p. 335-337 Pelo quadro supra, pode-se afirmar que, com a adoção dos Pactos Internacionais das Nações Unidas em 1992 e com a ratificação anterior dos instrumentos jurídicos mais importantes, o Brasil cumpriu praticamente todas as formalidades para se considerar integrado ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Importante ressaltar, todavia, que, apesar de ter ratificado quase todos os instrumentos do sistema global sem reservas, o Brasil ainda não ratificou, por exemplo o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o que habilitaria o Comitê de Direitos Humanos a receber e apreciar petições individuais que veiculem denúncia de violação de direitos humanos previsto no Pacto. Ademais, ainda sobre o referido Pacto, até 1994 não havia elaborado declaração expressa de que aceitaria a competência do Comitê de Direitos Humanos para receber e considerar o procedimento facultativo das comunicações, previsto em seu art. 41. Quanto as convenções em particular, ressalte-se que o estado brasileiro não reconhece o Comitê contra a Tortura (CAT) como competente para examinar as comunicações interestatais e as petições individuais referentes a violação de direitos previstos na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes (art. 21 e 22). Situação semelhante ocorre quanto a Convenção sobre todas as formas de Discriminação Racial, a qual demanda declaração expressa do Estado-parte que reconheça a competência do respectivo Comitê para examinar petições individuais (art. 14), competência esta ainda não reconhecida pelo Brasil. Em relação à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, cabe enfatizar que em 1994, o Estado Brasileiro notificou o Secretário Geral das Nações Unidas sobre a retirada das reservas constantes desde o momento da ratificação em 1984. Tais reservas eram relativas à igualdade legal entre homens e mulheres, que versavam sobre diversas instituições de direito civil, como o casamento e a propriedade, que, com o advento da Constituição de 1988, mostraram-se ultrapassadas. Não obstante a demora em retirá-las, se o Estado brasileiro as mantivesse estaria retirando toda a essência de tão importante instrumento, calcado no reconhecimento da igualdade entre os gêneros de forma ampla. Como se pode observar faz-se necessário ainda uma série de medidas por parte do Estado brasileiro para que os mecanismos internacionais de proteção possam ser utilizados de forma efetiva. 3.5 – Os Instrumentos regionais de Direitos Humanos Ratificados pelo Estado Brasileiro
FONTE: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional Internacional, 1997. p.337 Em esfera regional interamericana, apesar de haver ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Estado brasileiro não autorizou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a examinar comunicações interestatais, a fim de que um Estado-parte possa alegar que outro tenha cometido violação a direito assegurado pela Convenção. Dessa forma, o Estado brasileiro somente poderá sofrer denúncias de violações por meio das petições individuais, por força do que dispõe o art. 44. da Convenção Americana, ao qual fizemos referência no capítulo anterior. 3.5.1 – A Corte Interamericana: reconhecimento de sua jurisdição pelo Estado Brasileiro. O reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui-se em mais uma cláusula facultativa prevista pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Apesar de ter aderido à Convenção em setembro de 1992, o Estado brasileiro não aceitou tais cláusulas, inclusive a mensagem presidencial, que submeteu o texto da Convenção à aprovação do Congresso Nacional (Mensagem nº 621, de 28.11.85), referiu-se à questão da seguinte forma: “No tocante às cláusulas facultativas contempladas no §1º do art. 45 – referente à competência da CIDH para examinar queixas apresentadas por outros Estados sobre o não-cumprimento das obrigações – e no §1º do art. 62 – relativo à jurisdição obrigatória da Corte – não é recomendável, na presente etapa a adesão do Brasil”33. A partir de sua criação em 1978, a Corte vem progressivamente ampliando sua atuação em virtude da aceitação de sua jurisdição por um número crescente de países. Atualmente, dos 24 Estados-partes da Convenção, apenas 06 países não a reconhecem (Barbados, Granada, Haiti, Jamaica, México e República Dominicana) como competente para julgar os casos submetidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ou pelo Estado interessado e, ainda, pode protelar setença, dicidindo se o Estado é ou não responsável por violar a Convenção, além de determinar a obrigação de tomar medidas que façam cessar as violações, bem como indenizar as vítimas ou seus herdeiros legais. Esclarece-se, todavai, que as sentenças condenatórias oriundas da Corte não substituem as ações penais que tramitam internamente, já que não se trata de tribunal penal com poder de invalidar sentenças domésticas, mas sim de obrigar os estados à promoverem a justa indenização às vítimas. Em âmbito nacional, cumpre enfatizar que o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), criado em 1996, tem como uma de suas metas de médio prazo o fortalecimento da cooperação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. _____________________________________ 33 BRASIL. Diário do Senado Federal, 21 de out./1998, p. 14361 Em 04 de setembro de 1998, o Ministro de Estado das Relações Exteriores, Sebastião do Rego Barros, ao enviar a solicitação ao Presidente da República para que procedesse ao reconhecimento da jurisdição da Corte, referiu-se aos argumentos de Antônio Augusto cançado Trindade, ex-consultor jurídico do Itamaraty e atual Vice-presidente da Corte Interamericana sobre a matéria, alguns dos quais estão citados infra pela sua plena relevância e prioridade: “a) o reconhecimento constituiria uma garantia adicional a todas as pessoas sujeitas à jurisdição brasileira, da proteção de seus direitos tais como consagrados no Pacto de São José; (...) c) a Constituição brasileira propugna pela formação de um tribunal internacional de direito humanos, que já existe (a Corte Interamericana de Direitos Humanos) e cuja criação foi proposta expressamente pela delegação do Brasil, na IX Conferência Interamericana, realizada em Bogotá no ano de 1948; d) o Brasil participou dos trabalhos prepartórios do Pacto de São José, e apoiou a inclusão do art. 62; (...) i) não faria sentido aceitar o conteúdo do Pacto e não aceitar os mecanismos para garantir os direitos consagrados no mesmo”34. Apesar de que mais de uma década fez-se necessária para o reconhecimento pelo Brasil da jurisdição da Corte, este finalmente ocorreu em dezembro de 1998, por força do Decreto Legislativo nº 89/98, publicado no Diário Oficial da União de 04.12.98, o qual transcrevemos na integra: _____________________________________ 34 BRASIL. Op. Cit., p. 14362-14363 Faço saber que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Antônio Carlos Magalhães, Presidente do Senado Federal, nos termos do art. 48, item 28 do Regimento Interno, promulgo o seguinte: DECRETO LEGISLATIVO Nº 89, de 1998 Aprovada a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no §1º do art. 62 daquele instrumento internacional. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. É aprovada a solicitação do reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional. Parágrafo único. São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida solicitação. Art. 2º. Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação. Senado Federal, em 3 de dezembro de 1998 Senador ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES Presidente Nota-se que pelo teor do decreto legislativo somente poderão ser submetidos à Corte Interamericana as denúncias de violações ocorridas a partir do reconhecimento, o que significa afirmar que os atuais casos de violações de direitos humanos em trâmite perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA não poderão ser recebidos e julgados pela referida Corte. Com o citado decreto promove-se a devida interação entre o direito internacional e o direito interno, bem como cumpre-se, dentre outros compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, a previsão da Constituição de 1988 sobre a criação de Tribunal Internacional de Direitos Humanos (CF, ADCT, art. 7º), por ora consubstanciado na própria Corte Interamericana. Sem dúvida este reconhecimento constitui-se em relevante avanço no que se refere à proteção internacional aos direitos humanos. Por fim, é importante ressaltar que, relativamente ao Estado brasileiro, a estrutura da OEA mostra-se bem mais eficaz, se comparada à estrutura da ONU. Tal fato atribui-se a ratificação da Convenção Americana pelo Brasil, bem como ao recente reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana. Ademais, pode-se afirmar inclusive que a Comissão é o único órgão internacional competente para examinar petições individuais de casos ocorridos sob jurisdição brasileira, uma vez que os demais instrumentos que prevêem este mecanismo, por serem facultativos, não foram até hoje aceitos pelo Brasil, como o Protocolo Facultativo do Pacto de Direitos Civis e Políticos, e ainda há instrumentos que prevêem os relatórios como única forma de monitoramento, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que não contêm sistemática para o recebimento de petições individuais. |