A tradução popular nordestina na obra auto da compadecida

José Belém de Oliveira Neto

Análise da legendagem do filme “O Auto da Compadecida”: aspectos

culturais e identidade dos personagens

São Paulo

2008

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado a UNIBERO – Centro

Universitário Ibero-Americano para

conclusão do curso de Letras - Tradução e

Interpretação.

José Belém de Oliveira Neto

Análise da legendagem do filme “O Auto da Compadecida”: aspectos culturais e

identidade dos personagens

São Paulo

2008

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a

UNIBERO – Centro Universitário Ibero-

Americano para conclusão do curso de Letras -

Tradução e Interpretação.

Orientador (a): Profª. Dra. Alzira Leite Vieira

Allegro.

Dedicatória

Ao meu pai.

(in memoriam)

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer

sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”

Clarice Lispector

Agradecimentos

À minha família, principalmente, a minha avó por me acolher e pelo seu imenso

amor.

Aos meus amigos mais íntimos, Adriano, Kelly, Kioko, Paulinho e Rodrigo por

fazerem parte da minha história.

À Profa. Dra. Alzira Leite Vieira Allegro pelas orientações, sugestões e

questionamentos.

SUMÁRIO

Introdução ..........................................................................................................1

Capítulo 1 – Breve histórico da obra / filme........................................................ 3

Capítulo 2 – Os personagens............................................................................. 6

Capítulo 3 – Legendagem e sociolingüística.................................................... 10

Capítulo 4 – Análise do corpus......................................................................... 15

Considerações finais........................................................................................ 22

Referências bibliográficas................................................................................ 23

RESUMO

O cinema tem um papel importante no universo cultural da sociedade. A legendagem

tem o objetivo de divulgar e propagar uma obra, possibilitando a sua aquisição por

diversas outras culturas. Configura-se também como elemento de grande

importância para o espectador que procura exibições estrangeiras. O objetivo deste

trabalho é analisar os aspectos culturais e a identidade dos personagens inseridas

na legenda do DVD O Auto da Compadecida de Guel Arraes e observar os fatores

que podem prejudicar a recepção do filme ao leitor. A análise discute alguns

fragmentos extraídos da legenda em inglês e através dela constata algumas perdas

que ocorrem na tradução de linguagem informal, regionalismos e coloquialismos na

legendagem.

Palavras-chaves: Legendagem; Identidade dos personagens; O Auto da

Compadecida; Linguagem informal

ABSTRACT

The movies constitute an important part in the culture of society. Subtitiling enables

the diffusion of films around the world to reach a wide audience besides beings very

important to the spectators that search for foreign films. This paper aims at analyzing

some cultural aspects and characters´ identity in subtitles of the DVD O Auto da

Compadecida (The Dog´s will) directed by Guel Arraes and observe the factors which

influence the reception of the film to the audience. Some fragments were selected

from the subtitles in English to verify some losses in the translation of informal

speech, regionalisms and colloquialisms in subtitling.

Keywords: Subtitling; Characters’ identity; O Auto da Compadecida; Informal speech

Introdução

A legendagem é um processo que implica diversos fatores. O termo

“legendagem” é utilizado para se referir a todo o processo que corresponde à

produção da legenda no filme. Entretanto, esse termo também é compreendido

como o ato de tradução da mensagem fílmica.

A tradução das falas no filme é limitada por diversas diretrizes que são

instituídas pelos manuais de legendagem, laboratórios cinematográficos e, algumas

vezes, pelas produtoras da obra.

O ato de tradução de legendas é bastante complexo e envolve aspectos de

ordem lingüística, extralingüística, entre outros. No processo de legendagem,

certamente, há perdas no ato tradutório de alguns elementos como: regionalismos,

questões culturais, linguagem informal e etc., pois na maioria das vezes, por

questões alheias ou mesmo intrínsecas a essa tradução limita a captação do

espectador da mensagem que é pretendida no filme.

Tendo como ponto de partida a constatação das perdas na identidade dos

personagens e questões culturais envolvidas na mensagem do filme, o objetivo

deste trabalho é analisar aspectos culturais e a identidade das personagens de

alguns fragmentos extraídos da legenda em inglês do DVD do filme O Auto da

Compadecida, inspirado na obra escrita por Ariano Suassuna e adaptada para o

cinema por Guel Arraes; lançado em 2001 pela Globo Filmes.

No primeiro capítulo apresenta-se um breve histórico da obra que posiciona o

leitor das particularidades do filme, obra original, seus criadores, aspectos da

adaptação para cinema, principais personagens e trama.

O segundo capítulo apresenta a descrição das personagens a fim de

identificar os aspectos inseridos em cada um deles para melhor visão do que foi ou

poderia ser levado em consideração no processo de legendagem, objetivando

manter suas características na legenda para uma melhor compreensão do

espectador.

O terceiro capítulo consiste de uma fundamentação teórica abordando as

diretrizes que limitam a atuação do tradutor de legendas, os fatores sociolingüísticos

que envolve regionalismos, questões culturais e coloquialismos e que devem ser

considerados no processo de legendagem. Destaca-se também a dificuldade

2

encontrada pelos tradutores em transpor da língua de partida para a língua de

chegada discursos informais, regionais e coloquiais.

O último capítulo apresenta uma análise de alguns fragmentos extraídos da

legenda do filme em inglês, destacando as perdas na captação do espectador da

identidade das personagens, falas humorísticas e informais, jogos de palavras,

regionalismos e coloquialismos.

3

Capítulo 1 – Breve histórico da obra / filme

O Auto da compadecida foi escrito por Ariano Suassuna em 1955, obra

construída para linguagem teatral. O autor se inspirou em três folhetos de cordéis,

fábulas do romanceiro popular nordestino para produção; são eles: “O enterro do

cachorro”, “a História do cavalo que defecava dinheiro”, ambos de Leandro Gomes

de Barros, e “O castigo da soberba” de Anselmo Vieira de Souza. Entretanto, como

grande estudioso e conhecedor da cultura mundial, Suassuna, introduz na obra forte

intertextualidade, principalmente da cultura ibérica (MOGRABI, 2008).

Desde sua criação até os dias de hoje, três produções audiovisuais do Auto

da Compadecida foram exibidas no cinema: “A compadecida” (1969), de George

Jonas, “Os trapalhões no Auto da Compadecida” (1987), de Roberto Farias, e O

Auto da Compadecida (2001) , de Guel Arraes, sendo esse último o objeto desta

análise.

O Auto da compadecida introduz o leitor ao universo nordestino, revelando

sua cultura, sua linguagem peculiar e crenças.

Na obra original, há a presença de um palhaço como narrador, figura que dá

movimento ao texto. A adaptação de Guel Arraes é a única a retirar de cena esse

personagem circense para dar ao filme o formato autônomo do cinema clássico

(BEZERRA, 2008). Apesar disso, os predicativos do palhaço são percebidos nos

personagens João Grilo e Chicó, que movimentam o filme.

A adaptação de Arraes contou com a colaboração de João Falcão e Adriana

Falcão para o roteiro. Primeiramente, a produção foi apresentada como minissérie

na TV Globo (1999) e logo depois articulada para o cinema.

O filme se passa na cidade de Taperoá, onde Suassuna residiu. A primeira

cena inicia com o anúncio de João Grilo e Chicó do filme “A paixão de Cristo” que

será exibido na paróquia. Desde o início, fica explícita a questão da avareza quando

o padre, com muito dinheiro arrecadado com os “ingressos” do filme, paga a João

Grilo apenas algumas moedas pela divulgação que fez com Chicó. Podemos

observar na obra críticas à igreja, como o fato de o padre e o bispo aceitarem

dinheiro para enterrar a cachorra rezando em latim. Além disso, há inversão de

valores notada no padeiro e em sua mulher, que oferecem péssimo tratamento aos

empregados e grande prestígio à “cachorra”.

4

A trama do filme é “dirigida” por João Grilo que cria todas as situações

inusitadas por que passam outros personagens. Ele é a figura que mostra esperteza

e fluência para sair de qualquer situação. Essa característica é bem forte durante a

negociação desse com o cangaceiro, Severino de Aracaju, para poupar sua vida em

troca da gaita que ressuscita defunto, benzida pelo Padim Padi Ciço (sic). O grande

momento do filme é o julgamento dos “pecadores”, entre eles membros do clero “o

bispo” e “o padre”, também o cangaceiro “Severino de Aracajú”, “o padeiro”, “a

mulher do padeiro”, e “João Grilo”. Outra cena de grande impacto no filme é a

ressuscitação de João Grilo, fato bastante inusitado que devolve ao filme ainda mais

o aspecto original da peça de Suassuna, um espetáculo circense com a cena cômica

de Chicó se assustando com o morto que retorna à vida. Além de criar uma polêmica

do ponto de vista religioso, equiparando um mortal a Jesus Cristo, que ressuscitou

depois de três dias após sua morte na crucificação.

Arraes criou novas situações na sua adaptação, como o romance entre

Rosinha e Chicó; a inclusão de personagens de outras obras de Suassuna, como o

Cabo 70 e Vicentão, originários de “A tortura de um coração”. Além disso, no filme,

foram excluídas cenas como a do “gato que descome dinheiro” e a substituição do

filho do coronel Antônio de Morais por uma filha, Rosinha (BEZERRA, 2008). Apesar

das mudanças, a produção foi elogiada por Suassuna, que ficou muito satisfeito com

a adaptação, apesar de sua fama de crítico severo às construções da obra em

outras linguagens (MENTER, 2008).

A imagem do nordeste é bem refletida no filme, que, apesar de exibir a

pobreza e a falta de estrutura e desenvolvimento do sertão, deixa claro a riqueza de

suas raízes e seus costumes. Há o enriquecimento da imagem do sertanista através

de João Grilo e Chicó que em meio à miséria e abuso dos patrões, safam-se e

ultrapassam as dificuldades. Nesse contexto, o filme vai além do objetivo da obra

original, que pretende encenar o exercício da moralidade, mostrando a luta do

sertanejo para sobreviver no semi-árido nordestino. Ademais, com a inclusão de

imagens reais, no julgamento pela compadecida, Arraes produz uma metalinguagem

que emociona os espectadores.

Na cena final do filme, o triunfo de João Grilo, Chicó e Rosinha sobre o tirano

coronel Antonio de Moraes constitui-se em uma cena engraçada, que foge da

maioria dos finais de filmes, pois os personagens (Chicó e João Grilo) continuam

como sempre foram, pobres nordestinos, porém satisfeitos com sua liberdade e

5

felizes por contarem um com o outro na luta pela sobrevivência. E ainda fica explicita

a religiosidade desses, pois o conceito popular de que “Deus é brasileiro”, porém no

caso especificamente “Deus é baiano” é retomado; conceito levantado através de

uma das muitas histórias fantasiosas de Chicó.

6

Capítulo 2 – Os personagens

A descrição dos personagens é de extrema importância para este trabalho,

pois é ponto de partida para a análise que se pretende apresentar dos aspectos

inseridos em cada um deles e os que foram ou poderiam ser levados em

consideração no momento da versão para língua inglesa das legendas do filme.

Portanto, segue uma breve descrição de cada personagem para contextualização e

conhecimento do leitor. São eles: João Grilo (Matheus Nachtergaele), Chicó (Selton

Melo), O padre (Rogério Cardoso), O bispo (Lima Duarte), Severino de Aracaju

(Marco Nanini), O padeiro (Diogo Vilela), a mulher do padeiro (Denise Fraga),

Rosinha (Vírginia Cavendish), Coronel Antônio Moraes (Paulo Goulart), A

compadecida (Fernanda Montenegro), Jesus Cristo (Maurício Gonçalves), o Diabo

(Luís Melo), Cabo 70 (Aramis Trindade) e Vicentão (Bruno Garcia).

João Grilo é um dos protagonistas da trama que representa o nordestino

pobre e de pouca instrução. O diferencial dele foi a conquista de grande flexibilidade

para livrar-se dos “aperreios” da vida. Esse personagem representa os nordestinos

que sofrem com abuso dos poderosos. O ator Matheus Nachtergaele declara nos

“extras” do filme que procurou montar seu personagem espelhando-se nos

moradores locais de Cabaceiras no Sertão da Paraíba onde foi rodado o filme. João

Grilo é bastante esperto, franzino, lutador, sofrido e cheio de esperança. Seu retrato

é bem aproximado da visão que temos dos nordestinos que sempre procuram

sobreviver a tantas desgraças, sendo a maior delas a seca do nordeste.

Chicó, interpretado por Selton Melo, é um personagem bastante divertido que

vive à sombra de João Grilo e o tem como companheiro inseparável. Ele representa

o oposto do nordestino “cabra macho”, pois quando os problemas surgem, ele é o

primeiro a correr, um covarde, mas que se lança a sorte das situações e sempre se

dá bem, graças à sua parceria com João Grilo, o “guengo mais fino do nordeste” (O

Auto da Compadecida, 2001). Nas declarações de Selton Melo, ele conta sobre seu

mergulho no mundo da galhofa, ou seja, do humor. Isso traz ao seu personagem

grande impacto humorístico sendo ele um dos personagens mais divertidos da

trama.

Rogério Cardoso, o padre, foge da imagem preconceituosa da sociedade para

um membro da igreja. É o tipo interesseiro e submisso aos poderosos, característica

7

notada em sua ação com o poderoso Cel. Antônio de Moraes e o Bispo. Ele se

mostra fiel aos preceitos de Deus, porém corrompido pela ganância mundana e a

busca de seus interesses próprios e de sua paróquia.

Lima Duarte protagoniza “O Bispo”, uma autoridade religiosa; mostra-se

implacável em suas decisões e interesses e também foge da imagem religiosa

comum, pois no final é alguém cheio de preconceitos, ambição e subserviente aos

poderosos da cidade.

Marco Nanini, no papel de Severino de Aracaju, é um personagem de grande

importância. Sua imagem já é enraizada na cultura brasileira, pois faz referência à

figura de Lampião, o maior do cangaceiro do século (nome dado aos foras-da-lei que

viveram de forma organizada, no final do século passado e início deste, na região do

nordeste brasileiro), que percorreu o nordeste durante a década de 1920 e 1930

(Cultura itinerante, 2008). Severino de Aracaju de O Auto da Compadecida é de

importância chave para mudar o rumo do filme que passa, basicamente, do convívio

terreno para o espiritual. Sua figura é representada como um tirano que não possui

escrúpulos e tampouco piedade, principalmente em relação àqueles que

demonstram avareza e falta de compaixão para com o próximo.

Diogo Vilela, o padeiro, conhecido como Eurico, é um personagem incomum

do nordeste, pois é um homem que teve sucesso financeiro, vive um casamento

infeliz e é traído pela mulher. Por sua submissão diante da esposa, é sinônimo de

“corno manso”, conceito bastante difundido no nordeste e no Brasil como um todo. É

homem cheio de coragem e altivez; porém, sua essência é a de um indivíduo cheio

de temores e muito apaixonado por sua mulher, que o engana.

Dora, a mulher do padeiro, é uma personagem forte, esperta e namoradeira.

Durante a trama ela se oferece a diversos homens. É controladora, divertida,

mimada e religiosa. Denise Fraga, grande atriz brasileira, foi um achado para

representar o papel, pois ela consegue passar a imagem da fragilidade feminina,

porém corajosa nas situações onde há necessidade. A figura de Fraga é uma

representação da mulher nordestina com traços divergentes do comum, ou seja, da

submissão ao marido e da participação coadjuvante nos negócios, fugindo do antigo

conceito de dominação do homem nas decisões familiares.

Vírginia Cavendish, que faz Rosinha, é a típica senhorinha educada na

capital, que sofre o controle do pai. Sua beleza, inteligência e elegância

acrescentam à trama o clima de romance e concorrência entre os homens da cidade

8

para ter sua mão em casamento. Apesar do controle do pai, Rosinha, com a ajuda

de João Grilo, consegue fugir com Chicó, sua paixão, trazendo à tona a imagem de

mulher apaixonada e que está disposta a tudo para viver uma historia de amor,

ignorando as dificuldades financeiras e a miséria.

Paulo Goulart vive a imagem de Coronel Antônio Moraes, homem poderoso,

rico e de grande prestigio. Ele representa os fazendeiros implacáveis e dominadores

do nordeste que conseguem tudo o que querem por deterem uma grande fortuna.

Antônio de Moraes é o tipo “cabra macho”. Porém, apesar de seu prestigio, é pouco

perspicaz, pois é facilmente ludibriado por João Grilo, Chicó e sua filha, Rosinha na

cena do acordo para dote do casamento.

A Compadecida, interpretada por Fernanda Montenegro, é uma personagem

decisiva para o final que é reservado a João Grilo e aos outros personagens, quando

convence Jesus Cristo a conceber uma chance para não serem condenados ao

“fogo eterno”. Sua imagem de mulher experiente e que demonstra grande amor aos

seres humanos corrobora com a imagem esperada do público de Nossa senhora

Aparecida, mãe de Jesus, da cultura popular. Fernanda Montenegro acrescenta à

personagem sua experiência cênica e impactante, trazendo a cena do céu, o que é

esperado pelos fiéis de nossa senhora, uma imensa compaixão pelos homens.

Jesus Cristo é representando por Maurício Gonçalves, ator negro muito

competente em suas atuações cênicas. É interessante a escolha do diretor do filme

por esse ator, o que desperta a antiga referência popular brasileira de Deus ser afro-

descendente. O personagem de Jesus Cristo é um homem amoroso, de

temperamento ameno e bastante justo.

Luís Melo interpreta “o Diabo” na trama; o demônio é representado com

chifres e de temperamento intolerante e insolente. Também é importante na cena do

juízo final em que acusa sem cerimônias todos os envolvidos, mostrando ao público

cada “pecado” dos julgados. O ator declarou que durante as filmagens o mais difícil

foi a maquiagem, pois consumia algumas horas de preparação com o maquiador. O

diabo é um personagem bastante popular na cultura do nordeste, além de ser

também muito comum nas religiões, pois a grande maioria delas possui um

elemento negativo, que é geralmente representado por um homem com aspectos de

touro relembrando o Minotauro da mitologia grega.

Cabo 70, interpretado por Aramis Trindade, foi um dos personagens que Guel

Arraes adaptou ao filme, conforme já citado no capítulo anterior. Ele é um dos

9

valentões do filme. É um homem de manias duras e petulância militar. Apesar desse

aspecto, esse personagem tem suas inquietações e sofrimentos, provocadas pela

paixão não correspondida por Rosinha. Falta-lhe também coragem quando se vê

diante do perigo e da morte.

Bruno Garcia vive Vicentão, o valentão da cidade. Tem fama de forte e brigão

e é um dos amantes da mulher do padeiro, mas como todo homem tem suas

limitações perante a moral. Ele é conhecido por sua altivez, voz grave e físico

avantajado. Apesar de toda sua fama, também é vencido por João Grilo e Chicó,

durante uma armação de um duelo entre ele e Cabo 70, fazendo o valente Vicentão

correr de medo da morte.

Conforme indicado no início, conhecer os personagens do filme pode

contribuir para a interpretação da trama e perceber com mais propriedade o

resultado da legendagem para o inglês.

10

Capítulo 3 – Legendagem e sociolingüística

O processo de legendagem de um filme engloba diversos fatores de origem

técnica e procedimentos que limitam a atuação do tradutor; o próprio limite de

caracteres por imagem exibida na tela, o total de 56, constitui uma barreira. Além

disso, há um pequeno espaço de tempo para entrega do trabalho, limitações na

linguagem quanto à norma culta, restrições quanto ao uso de gírias, palavrões e

regionalismos.

Portanto, o desempenho do tradutor é prejudicado e mais importante, o

espectador perde particularidades da fala dos personagens que, na legenda, não

são representadas. O que é justificável, pois “a oralidade carrega um nível de

informalidade dificilmente superável pela reprodução escrita” (GOROVITZ, 2006, p.

46, 66).

Segundo Gorovitz (2006, p. 22) a legenda “de uma perspectiva da

apropriação da mensagem estética e da mensagem como experiência artística é um

elemento de interferência na mensagem fílmica”. O posicionamento dessa na tela, a

cor e a sucessão de acontecimentos concomitantes exigem do espectador uma

atenção redobrada, o que acaba trazendo muitos constrangimentos na recepção da

mensagem do filme.

A captação do filme é perturbada por uma tarefa suplementar de leitura de uma

mensagem escrita, dificultando a assimilação da obra e invadindo seu espaço de

projeção. Assim, o espectador disponibiliza uma capacidade maior de

concentração e captação que modifica a apropriação original da obra.

(GOROVITZ, 2006, p. 22)

O tradutor de legendas tem uma tarefa dupla de reproduzir a fala do texto

original no seu universo pessoal lingüístico (língua de partida) e ainda repassá-la

para outro idioma (língua de chegada).

O sujeito é inevitavelmente o tradutor de sua própria relação com aquilo que o

circunda, e, por meio desse ato, transforma e constrói fazendo significar aquilo que

só pode existir pela sua apropriação subjetiva. Traduzir o filme implica traduzir o

outro; ler o filme traduzido implica também traduzir traduções. (GOROVITZ, 2006,

p. 45)

11

Portanto, a relação tradutor-tradução é um ato complexo que depende de

diversos fatores tanto lingüísticos como culturais do universo subjetivo do tradutor,

que deverá dispor de elementos para compor a mensagem de forma a satisfazer o

espectador e fazer do seu trabalho um ponto de partida para compor a mensagem

fílmica.

Segundo Preti (1994, p. 62), os meios de comunicação de massa, entre eles o

cinema, tentam aproximar a língua falada da escrita possibilitando ao espectador

uma recepção “confortável”, pois a norma comum adotada por esses veículos tenta

reproduzir o ato de fala a fim de não agredir a norma culta, muitas vezes adequando

as normas gramaticais e ortográficas da língua.

É fato que a sociedade desvaloriza representações lingüísticas que fujam das

normas consagradas da língua, o que muitas vezes limita o campo de atuação de

algumas obras que pretendem representar personagem com uma linguagem

característica ao universo da obra. De acordo com Preti (1994, p. 65) defende que a

transcrição do ato falado é desvalorizada pela sociedade, principalmente pela

diferença entre esses dois sistemas, o sonoro e o escrito. Para falantes

acostumados com a leitura de textos que seguem os padrões gramaticais oficiais, a

descrição da fala servirá apenas como estímulo ao erro e poderá causar

incompreensão, tornando-a desinteressante e de serventia apenas para estudiosos

de linguagem. Com isso, no descrever da fala, “o autor caminhará para uma

ortografia fonética individual” (PRETI, 1994 p. 65.), com pouco impacto e

possivelmente de baixa aceitação pelo grande público que vê nisso uma

desvalorização dos “registros lingüísticos clássicos”, nesse caso, representados pela

ortografia.

Em O Auto da Compadecida, a linguagem é extremamente peculiar à cultura

nordestina, repleta de construções coloquiais que mostram nos principais

personagens João Grilo e Chico falas particulares que não representam a norma

culta. Apesar disso, existem em suas falas marcas importantes para sua

caracterização que condiz com a realidade nordestina apresentada no filme, ou seja,

pobreza, pouca instrução e raízes regionais, além da grande marca humorística.

Esse tipo de linguagem particular pode ser observado em obras de grandes autores

como Gil Vicente que, em seus Autos produziu importantes marcas lingüísticas em

seus personagens. De fato, é possível traçar um paralelo entre a obra de Suassuna

a de Gil Vicente partindo do pressuposto da convivência constante entre o sagrado e

12

o profano, característica marcante nos Autos de Gil Vicente e em “O Auto da

Compadecida, como apresentado por Lyday, Ariano Suassuna certamente o

escreveu com a Barca da Glória em sua mente” (LAPPIN, 1996)*.

Esse processo de diversificação da linguagem de acordo com os

personagens pode ser considerado como “carnavalização do texto”, ou seja,

promove uma mistura lingüística que tem como objetivo principal a teatralização da

linguagem e o divertimento do espectador/leitor (TRIGO, 1983, p. 225).

A tradução de textos com forte influência regional é um processo complexo,

pois exige do tradutor encontrar saídas para incluir no texto de chegada signos que

correspondam e que mantenham o significado difundido culturamente no texto de

partida.

*Minha tradução

13

Podemos perceber que a tradução cultural implica maior dificuldade para o

tradutor, pois envolve problemas não somente referentes a estruturas da língua de

partida e da língua de chegada, mas também de tomadas de decisões, com

relação a fatores psicológicos e sócio-culturais”. (VALIDÓRIO, 2005, p. 1350).

Alcançar a equivalência total nesse contexto é quase impossível, pois as

diferenças culturais, sociais e econômicas de cada sociedade levam a um

distanciamento da realidade de cada individuo. Do mesmo modo que a tradução fiel

ao original, defendida pelos logocêntricos, essa transição cultural, apresenta muitas

dificuldades.

[...] a existência de obras literárias de cunho regionalistas, por vezes tão

estreitamente vinculadas a determinadas realidades que até mesmo falantes da

mesma língua, mas pertencentes a outras sub-áreas culturais, sociais e/ou

geográficas, enfrentam sérias dificuldades para bem apreenderem o conteúdo do

texto em toda a sua plenitude. (AUBERT, apud VALIDÓRIO, 2005, pg 1350)

Gorovitz (2006, p.52) também afirma em seu trabalho que “é de uso comum

definir a linguagem como meio de comunicação. No entanto, pela diversidade das

línguas, os indivíduos que pertencem a comunidades lingüísticas distintas muitas

vezes não podem comunicar-se”. A tradução literária, portanto, envolve

complexidades que ultrapassam a simples idéia de passar um significado de uma

palavra para outra; e no processo de legendagem, em que o tempo para tomar

decisões e aplicar ao texto uma pesquisa mais ampla é quase inexistente, o tradutor

de textos audiovisuais se vê em um beco sem saída e muitas vezes opta por ignorar

fatores da cultura regional do material traduzido.

Uma saída encontrada pelos tradutores é adaptação do texto da língua de

chegada para “dar conta do recado” do discurso apresentado no filme, porém nesse

processo muita coisa se perde, como a personalidade de cada figura do filme, seu

modo específico de comunicar-se, sua visão cultural e identidade social.

Em seu trabalho, Mello (2005, p. 70) cita que o termo adaptação é com

freqüência utilizado para referir-se à tradução em legendagem, pois “as mudanças

entre texto falado e texto escrito num espaço e tempo pré-determinados são mais

evidentes do que nos outros meios de tradução”; deste modo é inevitável na

tradução de legendas, assim como em qualquer tipo de tradução, a consciência de

14

que os fatores sócio-culturais e suas diferenças levam o tradutor a uma adequação

do texto, objetivando a melhor recepção dos espectadores/leitores.

Entretanto, como já citado neste trabalho, como a legenda tem como único

meio a escrita para representar todos esses fatores em uma língua diferente do

original, este processo torna-se praticamente impossível. Além disso, é interessante

lembrar que se deve levar em consideração quanto a “reprodução total do original”

que remete ao conceito da inexistência de uma só “leitura/apropriação” de uma

determinada mensagem/texto, pois cada individuo faz uma “leitura/apropriação”

divergente do outro. “[...] O saber originário não pode-se tornar real, realizar-se em

sua unidade em um só indivíduo [...]” (DERRIDA, apud Gorovitz, 2005, p. 63).

Desse modo, a tradução de regionalismos e elementos culturalmente

marcados no filme demanda discussões e conscientização nos estudos de tradução

atrelados à legendagem, que por sua vez, não é considerada por muitos como um

trabalho de habilidades específicas ou de demandas por pesquisas mais

aprofundadas no tema e sim como um processo automático e técnico.

A legenda do filme é parte de extrema importância para a recepção da obra e

deve ser revista para melhor estética e sincronia com os personagens,

gesticulações, paisagens e tudo o que está inserido no universo da mensagem

fílmica.

15

Capítulo 4 – Análise do corpus

Conforme já indicado na introdução, o presente trabalho pretende apresentar

uma análise de alguns fragmentos quanto aos aspectos culturais e à identidade das

personagens conforme elas são representadas na legenda em inglês do filme O

Auto da Compadecida.

A análise corresponde a uma visão particular do autor deste trabalho, o que

pode, evidentemente, na leitura de outros, sugerir outras significações e sentidos.

Nesta análise não se pretende apontar eventuais erros na legendagem e nem

classificar o trabalho de incorreto ou apropriar-se de uma postura corretiva a respeito

das decisões da produtora responsável pela legendagem do material.

Como evidenciado no capítulo anterior, O Auto da Compadecida, de Guel

Arraes, traz na fala dos personagens alta informalidade e a presença de

regionalismos. Trata-se de uma linguagem carregada de significados que

enriquecem a obra do ponto de vista cultural. Na legenda do filme, a influência

regional não é encontrada pelo uso de termos comuns ou formais da língua inglesa.

Desse modo, o espectador estrangeiro não tem acesso às minúcias da fala de cada

personagem e tão pouco ao léxico regional utilizado. A ausência dessas

particularidades pode prejudicar a captação da mensagem pretendida no original.

Abaixo seguem alguns fragmentos do “script” original e da legendagem, com os

respectivos comentários:

A cena abaixo é retratada no início do filme quando João Grilo e Chicó fazem

a divulgação do filme “A Paixão de Cristo”, que será exibida na paróquia de Taperoá.

PT: Um filme de aventura que mostra um cabra sozinho, desarmado

enfrentando o império romano todinho. (Chicó)

LG: - An adventure film! One unarmed man...faces the entire Roman empire!

O termo “cabra” é definido no dicionário Houaiss da língua portuguesa, como:

“Regionalismo: Brasil. mestiço indefinido, de negro, índio ou branco, de pele morena

clara; indivíduo determinado; sujeito, cara; indivíduo forte, valente, petulante, brigão;”

portanto, para os brasileiros, o termo traz um significado muito além daquele que a

palavra “man” (homem) apresentada na legenda em inglês. Além disso, nesse

fragmento a palavra todinho, com o objetivo de enfatizar ou valorizar a quantidade

de “soldados” ou mesmo toda a população de Roma, foi vertida por “entire” que é

16

bastante formal e de uso comum em inglês. Pode-se notar que a opção na

legendagem foi a de manter um discurso comum, sem levar em consideração as

particularidades lingüísticas expostas por cada personagem. Na mesma cena Chicó

anuncia que o filme é “cheio de milagre e acontecimentos doto (sic) mundo”:

PT: Um filme de mistério cheio de milagres e acontecimentos doto mundo!

(Chicó)

LG: A film of mystery, full of miracles and amazing events!

A informalidade de “doto mundo” considerado erro na norma culta na fala de

Chicó, caracteriza o personagem e revela ao espectador o alto envolvimento do

personagem com a influência lingüística daquela região. O texto em inglês tem um

discurso uniforme que não considera esses fatores, posicionando a fala livre de

influência lingüística ou variação regional. Nesses fragmentos, pode-se perceber que

o tradutor tem muita dificuldade em adequar o discurso, pois com as diretrizes de

legendagem e das limitações que lhe são impostas, que dita que se deve considerar

a norma gramatical, não é possível incluir erros de pronúncia ou de característica

regional na legenda, o que poderá parecer para o espectador, que não tem

conhecimento da língua original, um erro de digitação ou de tradução.

Os fragmentos abaixo foram retirados da cena em que João Griló e Chicó

estão procurando emprego na padaria de Taperoá. Pode-se observar no primeiro

fragmento a adaptação do tradutor à luz do discurso oral dos personagens.

PT: Pode ajudar. Ajuda e dinheiro são duas coisas que não se enjeita.

(Padeiro)

LG: Okay. I never say “no” to help and money.

Na fala acima, o padeiro é questionado por João Grilo se eles podem ajudar e

claramente recebem uma resposta rabugenta e interesseira do padeiro. Na língua

original, a palavra utilizada é “enjeitar”, o que é praticamente um jargão. Entretanto,

na legenda perde-se um pouco do humor pretendido na fala dele.

Na cena abaixo, Chicó refere-se ao salário oferecido pelo serviço na padaria a

tradução na legenda é extremamente formal para o modo de expressão do

personagem; pode-se notar que a fala está gramaticalmente correta em inglês. Esse

fato descaracteriza o personagem, de fala carregada de regionalismo e

informalidade.

O espectador estrangeiro, portanto, não tem acesso a essas características

no discurso. A mesma coisa ocorre no próximo fragmento, em que a mulher do

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padeiro se dirige a Chico, querendo saber se ele está sem trabalho. Portanto,

nessas circunstâncias especiais, quando as marcas de oralidade são apagadas, a

intenção do personagem pode ser perdida ou limitada a interpretação que faz o leitor

da personagem em questão. É necessário deixar claro que as normas da

legendagem é que ditam essa formalidade na escrita, o que limita a atuação do

tradutor.

PT: Quanto senhô paga? (Chicó)

LG: How much do you pay?

PT: Cê tá parado, é? (Dora, Mulher do Padeiro)

LG: Are you unemployed?

No fragmento abaixo que pertence à mesma cena citada acima, Chico utiliza

a palavra “aperreado” que, segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, é

“regionalismo: Brasil. uso: informal. que vive ou está temporariamente sem recursos

financeiros; apertado; sem liberdade, oprimido, preso, etc”, na legenda esse termo é

omitido e apenas as palavras “parado” com sentido de desemprego, e “esfomeado”

foram mantidas; entretanto, perdeu-se aí outra identidade do personagem que utiliza

uma palavra bastante utilizada na cultura nordestina. Além disso, Chico com a

palavra “aperreio” faz uma corte à mulher do padeiro. Na legenda, apesar de esse

elemento ser extratextual, pois é uma manifestação do personagem, não é possível

notar. Talvez, o espectador entenda que Chicó está se referindo apenas à sua

condição “starved” (esfomeado, com muita fome) e não a também “investida” para

despertar a atenção amorosa da mulher.

PT: Parado, esfomeado, aperreado. (Chicó)

LG: Unemployed and starved.

Outro exemplo de omissão que pode-se notar ainda na cena da padaria, é

quando João Griló completa a fala de Chicó dizendo que ele “está doido para ajudar”

e Chicó confirma o que o amigo disse utilizando “doidinho” e ainda fitando os olhos

da futura patroa de modo a seduzi-la. Na legenda, o termo foi ignorado, ficando no

ar a sensação estranha na manifestação do ator.

PT: Doidinho. (Chicó)

LG: -

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Na cena abaixo, durante a refeição de João Grilo e Chicó nos fundos da

padaria, os personagens fazem um comentário sobre a existência de um “folheto”

que menciona mais de sessenta tipos de “corno”. Na legenda dessa cena, o tradutor

optou por omitir a frase “tem corno po alfabeto todo” que é de extrema importância

para entendimento da alusão engraçada e continuidade da frase seguinte do

personagem. Além disso, os termos grifados “apressado” e “zeloso” que caracteriza

a piada de João Grilo foram traduzidos de forma que não mantiveram o humor

pretendido. Apesar de as frases na legenda conseguirem passar a mensagem ao

espectador, o jogo de palavras foi totalmente perdido. Essa adequação

provavelmente foi necessária devido ao número de caracteres e tempo de exibição

na tela da legenda.

PT: Já leram para mim um folheto que reza mais de 60 qualidade de corno!

(João Grilo)

LG: There are more than 60 types of cuckolds.

PT: Danou-se! Tem mais corno que passarinho! (Chicó)

LG: Wow! That´s more than there are birds!

PT: Tem corno po alfabeto todo! (João Grilo)

LG: -

PT: Desde o apressado que é corno mesmo antes de casar. Até o zeloso que

só gosta de ver a mulher bem vestida! (meu grifo) (João Grilo)

LG: The “hasty” type is cuckolded before marriage...and the “careful type”

likes his wife well-dressed!

No fragmento apresentado a seguir, a cachorra da mulher do padeiro, por um

descuido de João Grilo e Chicó, se alimenta da refeição deles. É uma cena bastante

engraçada, pois eles admitem que a comida fez mal ao animal pelo costume da

dona de o alimentar com pratos de muita qualidade que se comparados com a

“gororoba” que comem seria o mesmo que a cachorra comer veneno. Ao perceber

que a cachorra passa mal, os personagens ficam muito preocupados e João Grilo

utiliza a expressão “ta com a gota” diante da situação de desespero. “Ta com a

gota”, pelo público brasileiro, pode ser interpretado como “ferrou-se tudo”, na

legenda é utilizado o termo “Damn” que segundo o The free dictionary de Farlex, de

modo interjetivo é utilizado para “expressar: raiva, irritação, desprezo ou decepção”.

Portanto, o termo utilizado na legenda não está muito adequado para expressão do

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personagem que pode ser interpretado como irritação, sendo que, na verdade seu

posicionamento é de desespero e preocupação com o ocorrido.

PT: Ta com a gota! Deve ter sido a cumida! (João Grilo)

LG: Damn! It must have been the food!

No registro abaixo, que ocorre na conversa entre o padeiro e o major Antônio

Moraes sobre a visita dele à igreja da cidade para dizer ao padre que sua filha

compareceria à igreja para pedir-lhe a bênção. O modo grosseiro e indignado que o

major usa para se referir ao costume da filha de ir a igreja utilizando o termo “mania”,

na legenda foi traduzido por “loves”, o que não deixa muito claro a intenção da fala,

pois perde-se a imagem de desdém do personagem. O termo utilizado na legenda

pode sugerir que Antônio de Moraes se posiciona de modo positivo e sua opinião é

que Rosinha,como toda mulher, adora ir à igreja. Os termos “adorar” e “mania” são

bem divergentes um do outro, como se observa na definição do dicionário Houaiss

dos dois termos: “adorar: ter veneração por (alguém ou algo); ter grande apreço por;

reverenciar”; “mania: hábito extravagante; prática repetitiva; costume esquisito,

peculiar; excentricidade”.

PT: Mas como tudo que é mulher, tem verdadeira mania por igreja! (Major

Antônio Moares)

LG: Like all women, she loves going to church!

O fragmento abaixo é protagonizado por João Grilo e o padeiro e mostra a

cena em que Dora, mulher do padeiro, tem um ataque de nervosismo, pois o padre

se nega a enterrar sua cachorra. Ao receber aprovação do padeiro para gastar o que

for necessário para providenciar o enterro, João Grilo, que conhece a ganância

monetária do padre, declara a facilidade que terá para convencê-lo. Na fala de João

Grilo é utilizada a expressão idiomática “vai ser mais fácil que dar milho a bode” que

na legenda é apresentada como “this is going to be easy”; isso prejudica a

interpretação o personagem na cena, pois retira o humor contido na expressão dele.

PT: Posso gastar o que quiser? – (João Grilo)

LG: Can I loose the purse strings?

PT: Pode. (Padeiro)

LG: Yes.

PT: Vai ser mais fácil que dar milho a bode! (João Grilo)

LG: This is going to be easy!

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Abaixo nota-se a mesma coisa, pois há perda da expressão de Chicó, na

cena em que ele faz uma representação teatral para fugir com Rosinha e é

surpreendido com a presença de Severino de Aracaju na cidade causando-lhe muito

medo. A fala “que nem pavio de vela em talo de macaxeira” é bastante regional, pois

o termo “macaxeira” não é conhecido até por alguns brasileiros, pois seu uso é mais

comum em cidades da região do nordeste do país. Portanto, a equivalência nesse

caso é quase impossível.

PT: Porque comigo a volta é por dentro. Que nem pavio de vela em talo de

macaxeira.

LG: I like to do things right from the inside out!

No próximo fragmento que é exibido durante a cena em que Rosinha, filha do

major Antônio Moraes, chega à cidade chamando a atenção de todos os homens. O

padeiro, referindo-se à ida de Rosinha à missa que será proferida pelo bispo, faz um

comentário de duplo sentido referindo-se ao “pecado” de perder o acontecimento da

presença do bispo, porém ele se refere ao “pecado” em perder a missa que terá a

presença da bela Rosinha. Conforme se pode notar, o espectador na legenda não

tem acesso ao duplo sentido da frase, pois a tradução não conseguiu resgatar na

fala do padeiro o interesse dele em comparecer à missa, não pela presença do

bispo, e sim de Rosinha. O padeiro, portanto, nesse fragmento assume na legenda o

papel de um homem religioso, sendo que na verdade seu posicionamento original é

de “mulherengo”.

PT: Homê! É até um pecado perder uma missa dessa! (Padeiro)

LG: The Bishop? It´d be a sin to miss that mass!

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Na fala a seguir João Grilo e Chicó querem escarpar da morte e convencem

Severino de Aracajú a levar um tiro, que o mata, para visitar a “padim padi ciço” e

logo após ser ressuscitado com o som da gaita que “ressuscita defunto”. Severino de

Aracajú questiona o fato de João Grilo não tocar a gaita e não cumprir o prometido;

este lhe responde dizendo “não vê que eu não faço uma miséria dessa”, o termo

“miséria“ acrescenta humor à fala do personagem, porém na legenda ela é

representada de forma muito simples o que resulta na perda do humor, característica

muito marcante desse personagem.

PT: E se você não tocar? (Severino de Aracajú)

LG: I´ll play, it´s a promise.

PT: Não vê que eu não faço uma miséria dessa! (João Grilo)

LG: I wouldn´t do that to you.

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Considerações finais

A tradução de legendas é um processo complexo que, devido ao tempo,

imposições dos laboratórios cinematográficos e diretrizes adotadas, muitas vezes,

não faz jus a alguns aspectos importantes e particulares da obra exibida. Tais

fatores influenciam na recepção da obra pelos espectadores e em alguns casos,

afetam a interpretação do leitor.

A análise apresentada neste trabalho possibilitou o apontamento de algumas

deficiências na legenda, que resultam e interferem na imagem que o espectador

forma dos personagens do filme. Nos fragmentos apresentados pôde-se perceber

nitidamente a perda de características muito importantes para a compreensão de

particularidades da fala dos personagens, tais como: marcas de personalidade,

interpretação e humor. Entretanto, como já evidenciado, a equivalência total dessas

falas requer fatores lingüísticos e extralingüísticos e talvez, uma pesquisa mais

profunda do tradutor de legendas na tentativa de levar o leitor a uma maior

satisfação na captação de elementos particulares (regionalismos, coloquialismos e

informalidade na fala dos personagens) das obras exibidas.

Em todo esse processo é importante enfatizar que pela dificuldade a tradução

pode sofrer perdas, e no caso da legendagem, onde não há a possibilidade de

utilização de um material de apoio para o entendimento do leitor (como glossários ou

notas de rodapé) e também a necessidade de agilidade para passar a mensagem ao

espectador é de extrema importância, essa perda é muito mais acentuada.

Talvez uma maior atenção ao estudo de tradução de legendas e projetos que

diminuam as limitações do tradutor possa amenizar as possíveis perdas na captação

do espectador da mensagem do filme.

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Compadecida. Disponível em:

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