A participação popular na prevenção e fortalecimento da atenção primária

A opção por estudar as ações de educação em saúde e a participação popular no contexto da Estratégia Saúde da Família (ESF) surgiu da experiência dos pesquisadores no território da ESF por meio do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Este possibilitou a inserção de estudantes e professores nos Centros de Saúde da Família (CSF) da Secretaria Executiva Regional IV (SER IV) de Fortaleza e a ação conjunta com os profissionais da ESF e os usuários da área de abrangência das unidades.

Essa experiência permitiu identificar o fato de que uma das grandes dificuldades expressas pelos trabalhadores da saúde no desenvolvimento das suas atividades com a comunidade era a escassa participação dos usuários nas ações de educação em saúde oferecidas e realizadas tanto na unidade de saúde quanto nos territórios.

Tal constatação instigou-nos a investigar sobre os motivos da fragilidade da participação popular nestes espaços. Uma das prerrogativas da ESF é a participação da comunidade, em parceria com a equipe de saúde da família, na identificação das causas dos problemas de saúde, na definição de prioridades, no planejamento participativo local e no acompanhamento da avaliação dos trabalhos.

A participação comunitária na formulação e no controle da execução da política de saúde foi uma conquista do movimento da Reforma Sanitária, o qual visa trazer para a arena pública os destinatários da política de saúde como estratégia para democratização da saúde e da sociedade1,2. Possibilita, deste modo, que os usuários desenvolvam a consciência de que são integrantes dos serviços, sujeitos na forma como a assistência e o cuidado se realizam, e sua exclusão se traduz como a negação dos direitos nos níveis individual e coletivo e dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Assim, a conquista do direito à saúde na Constituição brasileira e a consolidação do SUS exigem dos governos, dos serviços de saúde e da sociedade civil um trabalho permanente para efetivação dessa política, de acordo com o preconizado pelo movimento da Reforma Sanitária e os dispositivos legais.

Conforme Paim, o desafio torna-se maior porque o SUS se constituiu sem rupturas, é o novo sendo implantado em velhas estruturas sociais, econômicas, políticas e organizacionais, ou seja, uma revolução passiva, de mais continuidades do que mudanças3. Os princípios do novo sistema colidem frontalmente com o modelo assistencial privatista hegemônico e com a ideologia neoliberal norteadora das ações governamentais nas últimas décadas. Desta forma, há uma tensão entre as diretrizes do SUS e as políticas elaboradas.

Em mais de vinte anos de SUS, contabilizam-se avanços jurídicos, legais, ampliação de serviços e melhoria das condições de saúde da população. Persistem, contudo, grandes desafios, como o financiamento do sistema e as mudanças no modelo de organização das práticas de saúde. Na perspectiva de Teixeira, o debate político sobre “a questão dos modelos de atenção, [...] foi obscurecida pelas discussões em torno do financiamento e da gestão do sistema. [...] Somente com a expansão do Saúde da Família, a partir de 1998, esse tema passou a ter um pouco mais de visibilidade [...]”4.

A princípio, a Estratégia Saúde da Família foi implantada pelo Ministério da Saúde como um programa para atender as populações mais pobres do Nordeste, porém “[...] aos poucos adquiriu centralidade na agenda do governo, convertendo-se em estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde e modelo da APS”5. Este modelo se fundamenta na insuficiência da perspectiva hospitalocêntrica e busca instituir um sistema centrado na atenção primária com ações e serviços voltados para a promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, cura e reabilitação. Com tal orientação, as ações de educação em saúde constituem importante linha de ação e a participação da comunidade é vital, não apenas para a consolidação da ESF, mas também do próprio SUS.

No contexto da luta pela Reforma Sanitária ainda na década de 1970, os trabalhadores da saúde insatisfeitos com o modelo de atenção à saúde vigente intencionavam romper com as práticas autoritárias da relação entre os serviços e a população, fazendo emergir o movimento da educação popular em saúde6,7.

Com efeito, estes se deslocam dos espaços institucionais para as comunidades urbanas e rurais, aproximando-se das classes populares e dos movimentos sociais locais. Tal aproximação favoreceu a interação dos trabalhadores com o cotidiano das comunidades e a compreensão do processo de adoecimento e cura sob a ótica popular. Essa visão requer dos trabalhadores a busca de uma reorientação das suas práticas, com vistas a enfrentar os problemas de saúde identificados, em conjunto com a população. A educação popular, fundamentada na metodologia emancipadora de Paulo Freire, torna-se referência de novas práticas6,7. Como movimento e prática social, a educação popular em saúde demanda se instituir como política integrante do SUS, na perspectiva de tornar a saúde mais humanizada e em sintonia com a cultura popular8. Contudo, segundo alertam os referidos autores, essa institucionalização não pode prescindir da articulação com os movimentos sociais para o fortalecimento da cidadania e da participação popular.

Adversamente à educação tradicional, a educação popular em saúde se contrapõe àquele autoritarismo da cultura individualista e dominadora e ao modo tradicional de conceituar, técnica e politicamente, intervenções na área de saúde, lutando pela transformação das relações de subordinação em favor da autonomia, da participação social e da interlocução de saberes e práticas9. Conforme Vasconcelos, a educação popular é um saber indispensável para o estabelecimento da participação, e serve tanto para a formação da consciência sanitária como para a democratização radical das políticas públicas. Inclui um estilo de comunicação e ensino e um instrumento de gestão participativa da ação social10.

O movimento de educação popular em saúde valoriza a prática educativa, numa perspectiva horizontal da relação trabalhador-usuário, incentivando as trocas interpessoais, as iniciativas da população usuária e, pelo diálogo, busca compreender o saber popular. Esta metodologia reconhece o usuário como sujeito capaz de estabelecer uma interlocução dialógica com o serviço de saúde e desenvolver uma análise crítica sobre a realidade, que possibilite incrementar estratégias de luta e de enfrentamento. Dessa forma, a educação popular em saúde deve ser concebida como habilidade de reorientação das práticas de saúde, superando a distância cultural entre os serviços e a população assistida de modo participativo e dialógico11.

Com base nesses elementos conceituais, buscamos apreender como foram desenvolvidas as ações de educação em saúde, no contexto da ESF, identificando a participação popular, bem como as abordagens metodológicas utilizadas pelos trabalhadores da saúde na realização das ações educativas.

Este artigo é um recorte da pesquisa “A participação popular na Estratégia Saúde da Família” em Fortaleza-CE. O estudo original, financiado pelo CNPq, foi uma pesquisa participante do tipo investigação-ação, que compôs as ações do PET-Saúde. O foco deste texto é discutir a relevância da educação em saúde no âmbito da ESF e problematizar seu caráter interdisciplinar e transformador das práticas de cuidado na atenção primária em saúde (APS).

Desenvolvida no período de 2009 a 2011, em cinco Centros de Saúde da Família da Secretaria Executiva Regional IV, em Fortaleza, a pesquisa contou com a participação de professores, bolsistas de iniciação científica do Laboratório de Seguridade Social e Serviço Social, estudantes do PET-Saúde da UECE, coordenadores de unidades, trabalhadores da saúde, agentes comunitários de saúde (ACS), usuários, preceptores do PET-Saúde e estudantes da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (RMSFC). Os trabalhadores da saúde são todos os sujeitos trabalhadores no setor saúde. Nesse estudo foram: médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de enfermagem, agentes de saúde bucal e funcionários do setor de marcação de consultas. Contudo, reconhecemos a diferenciação do ACS em relação aos outros trabalhadores da saúde, por este também ser membro da comunidade.

O estudo seguiu as orientações de Brandão que conjuga na pesquisa participante investigação e ação, numa interação entre pesquisadores e pesquisados12. Isso constitui o primeiro desafio, qual seja, produzir conhecimento e participação13. Tínhamos como meta a participação dos pesquisados em todas as fases da pesquisa: elaboração do projeto, trabalho de campo, sistematização e análise do material empírico, discussão dos resultados e montagem de planos de ação. Efetivamente, a proposta político-pedagógica da pesquisa participante buscou operar uma práxis, visando não só conhecer a realidade, mas também transformá-la14.

Normalmente, nos relatórios de pesquisa, só se apontam os resultados e dificilmente se registram as dificuldades. De tal modo, é importante destacarmos o fato de que o processo desta pesquisa transcorreu num tempo longo e em diferentes espaços, no serviço, na academia e na comunidade. Verificou-se dificuldade em conciliar horários compatíveis para todos, havia sobrecarga de atividades dos trabalhadores da saúde e ACS, e tudo isso contribuiu para o afastamento de alguns participantes em determinados momentos da pesquisa. Portanto, a participação de todos os pesquisados, em todas as fases, foi bastante variada. Não conseguimos contar com os usuários e ACS em todas as etapas; a participação destes foi maior na discussão do projeto, na produção dos dados, discussão dos resultados, bem como na elaboração dos planos de ação.

Em muitas pesquisas, os usuários são apenas informantes e o senso comum é material empírico, “[...] formas de conhecimento não verdadeiro com que precisaríamos romper para tornar possível o conhecimento científico”15. Na estratégia metodológica adotada, no entanto, valorizamos o saber popular e trabalhamos com ele na perspectiva ensinada por Paulo Freire, ou seja, problematizar o conhecimento popular, articulando-o com o saber técnico-científico, e, por meio deste processo, possibilitar aos sujeitos atuarem na transformação da sua realidade16.

Na condução da pesquisa, buscamos ultrapassar a discussão puramente metodológica e assumimos atitude epistemológica ao problematizarmos o fenômeno de elaboração do conhecimento no sentido de que a produção do conhecimento não seja privilégio de intelectuais, mas possa ser compartilhada com as classes populares. Isto “implica uma interação comunicacional, em que sujeitos com saberes diferentes, porém não hierarquizados, se relacionam a partir de interesses comuns”15.

Para produzir os dados, utilizamos as técnicas da observação participante e do grupo focal (GF). A primeira ocorreu durante todo o período da pesquisa e possibilitou observar as situações espontâneas e formais, ou seja, acompanhar as ações cotidianas nos CSF. Nesse trabalho, foi de fundamental importância o diário de campo para o registro dos eventos e das intervenções promovidas pela equipe de pesquisadores.

Quanto à técnica do grupo focal, esta é reconhecida pela sua relevância nas pesquisas qualitativas, pois sua operacionalização favorece a participação. Foram realizados dezesseis grupos focais com 125 participantes: um GF com quatro coordenadores; cinco GF envolvendo 41 trabalhadores da saúde; cinco GF dos quais participaram 37 agentes comunitários de saúde e cinco GF que contaram com 43 usuários. Os GF foram mediados por um facilitador, um relator e um observador, além de registrados por meio de gravação.

Após as transcrições dos grupos focais e a organização dos relatórios da observação participante, aconteceram oficinas para a sistematização das informações produzidas e a elaboração de relatórios. Foi um momento de aproximação com o material empírico, no qual ocorreu significativo processo de aprendizagem entre estudantes, trabalhadores da saúde e professores dos diferentes cursos.

Com base no referencial teórico de Minayo17, para a análise construímos alguns instrumentais voltados a operacionalizar a análise temática. Os passos propostos pela referida autora são: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Contudo, não seguimos a orientação de “contagem de frequência das unidades de significação”17; privilegiamos a busca de significados identificados nas categorias empíricas, relacionando-as com o referencial teórico.

Na sistematização dos diários de campo produzidos durante a observação participante, foi montado um quadro que agrupou os dados conforme os seguintes aspectos: atividades/facilitadores; número de participantes; objetivo; fortalezas; fragilidades; resultados/conclusões. Para os grupos focais, as informações foram sistematizadas em outro quadro, indicando as categorias analíticas definidas a priori “participação popular” e “educação em saúde”; em uma segunda coluna, fomos incluindo os recortes significativos dos textos – transcrições dos grupos focais – relativos às categorias analíticas; em seguida, fomos identificando as categorias empíricas que emergiam dos discursos. Para a categoria analítica “participação popular”, as categorias empíricas apreendidas foram: “formas de participação” e “dificuldades para a participação”. Para a categoria analítica “educação em saúde”, as categorias empíricas foram: “tipos de ações educativas”, “estratégias de mobilização” e “metodologias das ações educativas”. As categorias empíricas orientaram a apresentação dos resultados e discussões mediados pelo referencial teórico da pesquisa.

A partir da reflexão sobre as práticas de educação em saúde observadas, implementaram-se algumas intervenções educativas. Essas proposições foram facilitadas por estudantes do PET-Saúde e da Residência Multiprofissional em Saúde de Família e Comunidade, com o apoio de docentes e preceptores, subsidiadas pela metodologia da educação popular. Após cada atividade, os facilitadores também produziam os diários de campo que foram sistematizados para compor a análise.

Os princípios da educação popular orientaram o planejamento e a execução das atividades de educação em saúde, num intenso trabalho interdisciplinar, no qual cada sujeito envolvido trazia os conhecimentos da sua área, contribuindo para o desenvolvimento da tarefa. Antes das atividades, eram promovidas discussões com os usuários sobre seus interesses e curiosidades. E, no momento das intervenções, o conhecimento da população era o ponto de partida para o desenvolvimento do diálogo, no qual os saberes e crenças populares eram problematizados com vistas a ampliar os conhecimentos populares sobre o SUS, processo saúde-doença e as práticas de cuidado.

O projeto de pesquisa seguiu a Resolução no 196/1996 sobre as Normas Éticas que regem as pesquisas com seres humanos, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética da UECE, sob o no 09230420-6.

Os resultados do estudo foram apresentados e discutidos em várias reuniões com diferentes sujeitos: representantes da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza e dos Conselhos de Saúde Municipal, Regional e Locais, coordenadores dos CSF, trabalhadores de saúde e usuários.

Várias evidências coletadas por meio da observação participante e dos grupos focais demonstraram a falta de prioridade para a execução das ações de educação em saúde na agenda das equipes de saúde da família. As raras ações coletivas promovidas aconteciam de forma assistemática, por meio de metodologias tradicionais, como a palestra informativa. Nessas atividades, havia pouca participação dos usuários e alguns não demonstravam interesse durante sua realização, distraindo-se com conversas paralelas ou permanecendo alheios ao que era exposto.

Historicamente, os saberes e as práticas de educação em saúde fundamentaram-se na teoria higienista, que orienta as intervenções normalizadoras, tradicionalmente características do campo de práticas da educação em saúde. Estas práticas organizavam-se com base no enfoque biologicista, que aborda o processo saúde-doença apenas na dimensão individual, não articulando as implicações econômicas, políticas e sociais das condições de vida e de trabalho da população. Este viés, historicamente, norteou o campo da educação em saúde e ainda predomina nas práticas educativas, também caracterizadas pelo autoritarismo e verticalidade das ações, funcionando como forma de controle dos serviços de saúde sobre as pessoas11,18. Ainda que a ESF se baseie em pressupostos que valorizem as ações de educação para a promoção da saúde, no contexto em estudo, as práticas dos trabalhadores se mantêm tradicionais.

Na ótica dos trabalhadores da saúde, as ações educativas eram realizadas predominantemente de forma individual, durante as consultas, como pode ser observado na discussão do grupo focal:

[...] às vezes, a gente não faz educação em grupo, mas a gente faz educação individual, porque a partir do momento que a gente tira quinze minutos pra falar com o indivíduo, a gente tá aprendendo sobre tuberculose, a gente faz todo aquele [...], é aquela pergunta [...] (Grupo focal – trabalhadores de saúde).

Conforme verificamos, a ideia de educação em saúde para a maioria dos trabalhadores está associada à transmissão de informações, desconsiderando o saber popular. Atribuem um sentido de valorização da comunidade ao fato de realizarem atividades diretamente no território, ou seja, fora da unidade de saúde. Na realidade, essas ações contingenciais na comunidade eram, apenas, a transferência dos atendimentos clínicos para os espaços do território e as intervenções de educação em saúde, nessas ocasiões, assumiam papel secundário. Essa concepção pode ser verificada nos depoimentos dos trabalhadores pesquisados.

Algumas equipes estão fazendo isso e eu acho muito importante. Eles se reúnem numa igreja, numa residência, num determinado dia e as pessoas são atendidas, elas se sentem valorizadas. Tem algumas pessoas que moram muito distante, tem hipertensos. Assim eu acho que as pessoas se mobilizavam, se interessariam mais pelo serviço (Grupo focal – ACS).

Como podemos observar, acredita-se que o simples fato de levar o atendimento para mais próximo da comunidade favorece sua participação. Como a maioria dos trabalhadores das equipes de saúde da família não desenvolve atividades de educação em saúde, estas não fazem parte do cotidiano do trabalho. Elas são desenvolvidas como práticas circunstanciais, improvisadas. Segundo eles, vários fatores contribuem para essa realidade: faltam estrutura, material, recursos humanos capacitados e maior entendimento da educação em saúde como componente do cuidado, tanto por parte dos trabalhadores quanto dos seus usuários.

Durante o processo formativo, os trabalhadores da saúde não são capacitados para desenvolver práticas educativas na perspectiva emancipadora e dialógica. Desse modo determina-se a perpetuação das práticas tradicionais. A formação, em regra, não privilegia a concepção ampliada de saúde, tampouco a metodologia da educação popular.

Além disso, há escassez de tempo e sobrecarga dos trabalhadores, especialmente de uma categoria – enfermeiros – da equipe mínima. Isso ficou evidenciado nas observações e nas discussões dos grupos focais, conforme destacado no depoimento:

[...] Tem horas que falta perna porque se não for as [...] enfermeiras tentando resolver e tentando agilizar essas coisas, os médicos não participam disso, os dentistas não participam disso, então acaba ficando nas costas do enfermeiro. Enfermeiro fica com mapa, enfermeiro fica com num sei o que, grupo, [...] a coordenação vai só passando, vai só passando. Aí complica, e aí a gente se desestimula, aí vem a cara feia [...] (Grupo focal – trabalhadores de saúde).

Diferentemente das equipes de saúde da família, os trabalhadores dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) realizavam, sistematicamente, ações educativas. No entanto, estas, na maioria das vezes, transcorriam no modo de transmissão de informações, desconsiderando a experiência e sugestões dos usuários na definição dos temas abordados. Configuravam-se como repasse de normas e orientações definidas pelos trabalhadores, baseadas naquilo que julgavam relevante, visão esta nem sempre compreendida e/ou compartilhada com a população. Esses dados corroboram estudo de Gomes et al. sobre sala de espera, no qual as temáticas do processo informativo eram alheias às necessidades de informações dos usuários, e, muitas vezes, desinteressantes19.

Consoante observamos, muitas ações de educação em saúde eram motivadas pela agenda da saúde – campanhas e datas comemorativas. Nessas ocasiões, eram ofertadas atividades diferenciadas com uso de atrativos materiais, tais como sorteio de cestas básicas e oferta de lanches, como estratégias de mobilização da comunidade. Nas ações de rotina sem este atrativo, contudo, a participação era reduzida. Sem negar a importância da socialização nestes eventos, questionamos o emprego dessas estratégias como forma de motivação da participação popular, pois condicionam a inserção dos usuários nas ações de saúde, atrelada a interesses materiais. Ao mesmo tempo, os trabalhadores não percebem que, com essas ações, condicionam a participação popular a este estímulo, como revela o depoimento:

[...] Agora nessas histórias eventuais, programação de saúde da mulher, programação de combate à tuberculose, de combate à AIDS, [...] seja o que for que a gente faz o evento, aí os agentes de saúde comunicam, aí eles vêm porque tem sempre alguma coisa em troca. Dia das crianças aqui era absolutamente lotado, que eles já sabem como é que funciona, que é pra trazer a criança pra participar [...] Mas foi pra eles participarem, participar dos problemas deles, eles não [...] é questão de consciência [...] (Grupo focal – trabalhadores de saúde).

Nas ações educativas promovidas, a formulação de perguntas e as manifestações dos usuários eram pouco estimuladas, o que nos leva a interrogar: os trabalhadores reconhecem os usuários como sujeitos capazes de reflexão e ação?

A observação das atividades coletivas de educação em saúde demonstrou a predominância do modelo hegemônico, evidenciando-se a difusão de informações, procedimentos e a persuasão das pessoas para adotarem comportamentos saudáveis. Resultado semelhante foi identificado por Pinafo et al.20

Nesse contexto, o ser humano é percebido como o responsável pela sua saúde e o culpado por sua doença. Isso demonstra a desconsideração do fato de ele estar inserido em relações culturais, políticas e econômicas, que determinam e condicionam seu modo de vida21. Se essas condições não são problematizadas, as práticas educativas, consequentemente, não contribuem para a tomada de consciência passível de levar a uma ação transformadora.

Nos exemplos referidos, a relação pedagógica não se fundamenta no princípio da autonomia22 e contraria as diretrizes e princípios do SUS, privilegiados na gestão participativa, na educação permanente e na Política Nacional de Humanização. Assim, a participação dos usuários em todos os processos da atenção e gestão em saúde ainda é considerada insuficiente23.

Processos históricos configuram resistências à participação popular, embora seja crescente a consciência dos direitos de cidadania. Conforme Moroni, nos países da América Latina, a concepção de democracia e participação política é limitada a um procedimento de escolha de representantes por meio de eleições24. Este caráter formal da democracia esconde a dominação e a opressão instituídas socialmente e legitimadas pelo Estado autoritário. No caso brasileiro, as marcas do patriarcado, do regime escravocrata, do patrimonialismo ainda influenciam os processos participativos e a democracia formal25. Essa discussão sobre o caráter político da participação é pouco enfocada no âmbito da Estratégia Saúde da Família.

No modelo assistência, o processo de mudança no modelo assistencial é tensionado pelas práticas hegemônicas, a exemplo do observado nas equipes de saúde bucal (ESB), que incorporaram as ações preventivas de educação em suas rotinas de trabalho. Ainda predomina, no entanto, o curativismo, pois cada cirurgião-dentista destina a maior parte do tempo ao atendimento em consultório, além de programar atividades preventivas – escovação supervisionada, palestras educativas, controle da placa bacteriana e aplicação de flúor nas escolas – com crianças na faixa etária de 6 a 14 anos. Inegavelmente, a realização das atividades de saúde bucal nas escolas contribui para criar vínculos com a comunidade e fortalecer laços com os equipamentos sociais disponíveis no território.

Contudo, os tipos de atividades e as metodologias precisam ser repensados. É com esteio dessa lógica de atenção que as ações preventivas se configuram no cotidiano das ESB, de forma acrítica e limitada, sem os cuidados com a solução de problemas inerentes a este campo.

Na Estratégia Saúde da Família, os trabalhadores enfrentam dificuldades na condução e formação de grupos e uso de metodologias participativas, apesar da formulação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde, a qual, elaborada pelo Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (CNEPS), com a participação dos movimentos sociais em saúde, foi apresentada e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde e instituída pela Portaria no 2.761 de 19/11/201326. No entanto, conforme Bonetti et al.8, esta se apresenta contra-hegemônica como política pública protagonizada pela sociedade civil.

De acordo com Pedrosa, é preciso reconhecer que o “popular” da educação em saúde implica os conceitos de libertação, autonomia e cogestão, devendo contribuir para a formação de sujeitos críticos27. No Brasil, as propostas de mudança convivem com a reiteração de práticas tradicionais que reforçam a dominação e a subalternidade, confirmando o caráter de revolução passiva na política brasileira3.

Concepções próprias da educação popular, entretanto, são incorporadas por uma minoria, trazendo novas experiências e desejos de transformação. Nesse sentido, o educador em saúde implicado pode colaborar com o grupo de usuários, questionar e assessorá-lo na tomada de decisão, contribuindo para o crescimento da autonomia e da consciência do coletivo. Além disso, os trabalhadores da saúde necessitam ampliar sua consciência sobre seu ser e estar no mundo, reconhecer-se como seres igualmente condicionados, buscar formas de superação dos limites de sua prática e contribuir para que os usuários também o façam21,16.

Como acentua Buss, a educação em saúde é considerada estratégia fundamental, compreendida de forma ampliada e não apenas como acontecimento que precede a doença28. Isso se realiza quando a promoção da saúde passa a ser percebida como uma forma de pensar e de fazer a saúde, na qual as pessoas são vistas em sua autonomia e em seu contexto político e cultural como sujeitos capazes de superar o instituído e de serem os protagonistas não só de um estilo de vida saudável, mas da luta por condições de vida saudáveis. Neste prisma, Pedrosa27 expressa ser indispensável repensar a educação em saúde sob a perspectiva da participação social; compreender que as verdadeiras práticas educativas só têm destaque entre sujeitos sociais se considerar a educação em saúde como um caminho para a constituição de sujeitos ativos, que se movem em direção a um projeto de vida libertador.

Sob este aspecto, um resultado significativo da pesquisa foi favorecer a educação permanente dos trabalhadores envolvidos no estudo por meio das oficinas temáticas, de metodologias participativas e educação popular em saúde. Esta pesquisa participante propiciou o aprendizado coletivo de todos os sujeitos envolvidos, o que é uma característica inerente a essa metodologia.

Embasada nos pressupostos da educação em saúde emancipatória, a equipe de pesquisadores propôs e realizou atividades educativas com diferentes grupos de usuários. Entre estes, destacamos os grupos de crianças e idosos, que contaram com o protagonismo da equipe da RMSFC, a qual planejou as ações educativas com base nos interesses dos usuários, dialogando com o conhecimento prévio destes sobre os temas abordados. Consoante entende Vasconcelos, é fundamental tomar o saber das classes populares como ponto de partida do processo pedagógico, promovendo um processo de debate horizontal e de respeito à cultura popular, mas com questionamentos que possibilitem sua desmistificação6.

Durante as atividades educativas implementadas na sala de espera pelos estudantes do PET-Saúde e equipe da RMSFC, foi possível perceber que os usuários se sentiam mais à vontade para participar de forma espontânea e expor suas opiniões. O fato pode decorrer da formação de vínculos entre os alunos e a comunidade e as estratégias participativas como as rodas de conversa e peças teatrais com o uso de fantoches. Em corroboração aos nossos achados, o relato de experiência de Santos et al.29 sobre a realização de ações educativas em sala de espera ressaltou a importância do acolhimento aos usuários, com a escuta das suas necessidades, em um ambiente crítico. Tal iniciativa favoreceu o diálogo entre o saber técnico-científico e o saber popular, tornando as gestantes protagonistas do seu processo saúde/doença/cuidado.

Nas experiências observadas em nossa pesquisa, os sujeitos interagiram e opinaram sobre temas relevantes para a comunidade, direitos dos usuários do SUS, ações de autocuidado. Portanto, foram ativos na problematização de hábitos e atitudes considerados de risco para a saúde. Deste modo, a eficácia dessa metodologia ficou evidenciada na maior participação dos usuários.

Além das atividades realizadas nas salas de espera, também ocorriam na comunidade caminhadas e passeatas. As caminhadas eram ações de caráter informativo, seguindo as campanhas do Ministério da Saúde; as passeatas tinham um caráter mais político, de denúncia dos problemas do sistema e reivindicações para atender às necessidades da comunidade. Isto favoreceu o protagonismo dos sujeitos envolvidos na luta por direitos e fortalecimento da cidadania.

Assim, a educação dialógica propiciou o estabelecimento de novos saberes e a prática educativa contribuiu para o desenvolvimento da autonomia e da corresponsabilidade.

Esta pesquisa investigação-ação no contexto da ESF e do PET-Saúde possibilitou o diálogo entre o saber popular e o científico; a interação serviço-academia contribuiu para a formação de mais pesquisadores; permitiu o aprofundamento na metodologia da pesquisa participante, nas metodologias participativas e na educação popular em saúde. Dessa forma, seu legado não foi apenas de elaboração do conhecimento, mas do aprendizado coletivo da investigação e da ação, numa perspectiva crítica, comprometida com a transformação social.

No cenário estudado, as diretrizes e os princípios do modelo de atenção à saúde são contra-hegemônicos, como ficou evidente nas concepções tradicionais de educação em saúde e participação popular.

Essa limitação é passível, todavia, de superação. A proposta de educação popular em saúde se efetiva nos processos formativos desenvolvidos pelas equipes do PET-Saúde e da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, que integram neste processo os trabalhadores da equipe de saúde da família, conforme observamos neste estudo. Nas intervenções mediadas pela educação popular, houve maior autonomia, protagonismo, participação popular, confirmando o potencial dessa metodologia para favorecer a participação dos usuários e o diálogo entre o saber científico e o popular.