A origem e significados dos ditados populares ditos na escravidão

17/11/2020 12h03 - Atualizado em 17/11/2020 12h07

A origem e significados dos ditados populares ditos na escravidão

“Mulata”, “Dia de branco”, “A coisa tá preta”: você conhece ou usa essas expressões? Então, precisamos debater sobre racismo. Neste Novembro Negro, a Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) está com uma agenda de atividades que busca promover o enfrentamento ao preconceito, à desigualdade e à violência contra a população negra. Dessa forma, esta publicação traz o significado de algumas expressões racistas para fazer refletir e assim moldar o vocabulário do cotidiano.

A gerente Estadual de Promoção da Igualdade Racial da SEDH, Edineia Conceição de Oliveira, explicou que muitas expressões são reproduzidas sem que as pessoas tenham o conhecimento histórico. O fato de ainda serem usadas mostra o quanto o problema segue enraizado nos costumes da sociedade.

“O uso dessas expressões é algo que as pessoas naturalizaram. Como, por exemplo, falar que é ‘coisa de preto’ tem o sentido de que algo não é bom, algo que não dá certo. Então, acredito que as pessoas talvez não saibam o que significam essas expressões ao pé da letra, pela história, mas sabem que a ideia é ofender, isso é fato. Acho que com o conhecimento, algumas retirem essas palavras e expressões de seu vocabulário, mas outras vão continuar usando conscientemente. Infelizmente, só no dia que essas ofensas forem entendidas como crime de racismo, e não como injúria racial, então pode haver alguma mudança efetiva”, explicou a gerente Edineia de Oliveira.

Confira algumas expressões racistas e seus significados:

  • Meia tigela”: Os negros que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam alcançar suas “metas”. Quando isso acontecia, recebiam como punição apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de “meia tigela”, que hoje significa algo sem valor e medíocre.
  • “Mulata”: Na língua espanhola, referia-se ao filhote macho do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua. A enorme carga pejorativa é ainda maior quando se diz “mulata tipo exportação”, reiterando a visão do corpo da mulher negra como mercadoria. A palavra remete à ideia de sedução, sensualidade.
  • “Cor do pecado”: Utilizada como elogio, se associa ao imaginário da mulher negra sensualizada. A ideia de pecado também é ainda mais negativa em uma sociedade pautada na religião, como a brasileira.
  • “Não sou tuas negas”: A mulher negra como “qualquer uma” ou “de todo mundo” indica a forma como a sociedade a percebe: alguém com quem se pode fazer tudo. Escravas negras eram literalmente propriedade dos homens brancos e utilizadas para satisfazer desejos sexuais, em um tempo no qual assédios e estupros eram ainda mais recorrentes. Portanto, além de profundamente racista, o termo é carregado de machismo.
  • “Denegrir”: Sinônimo de difamar, possui na raiz o significado de “tornar negro”, como algo maldoso e ofensivo, “manchando” uma reputação antes “limpa”.
  • “A coisa tá preta”: A fala racista se reflete na associação entre “preto” e uma situação desconfortável, desagradável, difícil, perigosa.
  • “Serviço de preto”: Mais uma vez a palavra preto aparece como algo ruim. Desta vez, representa uma tarefa malfeita, realizada de forma errada, em uma associação racista ao trabalho que seria realizado pelo negro.
  • “Mercado negro, magia negra, lista negra e ovelha negra”: Entre outras inúmeras expressões em que a palavra ‘negro’ representa algo pejorativo, prejudicial, ilegal.
  • “Inveja branca”: Mais uma expressão que associa o negro ao comportamento negativo. Inveja é algo ruim, mas se ela for branca é suavizada.
  • “Amanhã é dia de branco”: Essa expressão tem muitas explicações. De acordo com estudiosos e por explicações do senso comum, tal afirmação foi criada em alusão ao uniforme da marinha. Outra justificativa para a declaração é feita com menção a nota de mil cruzeiros, que possuía a estampa do Barão do Rio Branco e, portanto, usava trajes brancos. Resumindo, dizer que o dia posterior é "de branco" significa que é um dia de trabalho ou de ganhar dinheiro. Mas, sabe-se que tal dito popular foi ganhando sentidos preconceituosos, uma maneira de demonstrar a "inferioridade dos negros".
  • “Criado-mudo”: O nome do móvel que geralmente é colocado na cabeceira da cama vem de um dos papéis desempenhados pelos escravos dentro da casa dos senhores brancos: o de segurar as coisas para seus “donos”. Como o empregado não poderia fazer barulho para atrapalhar os moradores, ele era considerado mudo. Logo essa expressão se refere a esses criados.
  • “Doméstica”: Domésticas eram as mulheres negras que trabalhavam dentro da casa das famílias brancas e eram consideradas domesticadas. Isso porque os negros eram vistos como animais e por isso precisavam ser domesticados através da tortura.
  • “Nasceu com um pé na cozinha”: Expressão que faz associação com as origens. “Ter o pé na cozinha” é literalmente ter origens negras. A mulher negra é sempre associada aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar dentro das casas grandes na parte da cozinha, onde, inclusive, dormiam no chão (sua presença dentro da casa grande facilitava o assédio e estupro por parte dos senhores).
  • “Barriga suja”: Outro termo que faz relação à origem é usado quando a mulher tem um filho negro. Se ela teve um filho negro, algo impuro — como uma “barriga suja” — explica esse fato.
  • “Cabelo ruim ou cabelo duro”: São falas racistas mais usadas, principalmente na fase da infância, pelos colegas. No entanto, elas se perpetuam até a vida adulta. Falar mal das características dos cabelos Afro também é racismo.
  • “Feito nas coxas”: A origem da expressão popular "feito nas coxas" deu-se na época da escravidão brasileira, onde as telhas eram feitas de argila, moldadas nas coxas de escravos.
  • “Samba do crioulo doido”: Título do samba que satirizava o ensino de Historia do Brasil nas escolas do País nos tempos da ditadura, composto por Sergio Porto (ele assinava com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta). No entanto, a expressão debochada, que significa confusão ou trapalhada, reafirma um estereótipo e a discriminação aos negros. 
  • “Crioulo/Negão”: Era a designação do filho de escravizados, é um termo extremamente pejorativo e discriminador do indivíduo negro ou afrodescendente.
  • “Tem caroço nesse angu”: A expressão possui origem em um truque realizado pelos escravizados para melhor se alimentarem. Quando o prato era composto de angu de fubá, o que acontecia com frequência. A escravizada que lhes servia, por vezes, conseguia esconder um pedaço de carne ou alguns torresmos embaixo do angu.
  • “Nhaca”: Desde o português do Brasil Colônia, vem sendo usada para referir-se ao mal cheiro, forte odor, no entanto Inhaca é uma Ilha de Maputo, em Moçambique, onde vivem até hoje os povos Nhacas, um povo Ban.
  • “Disputar a nega”: Possui sua origem não só na escravização, como também na misoginia e no estupro. Quando os “senhores” jogavam algum esporte ou jogo, o prêmio era uma escravizada negra.
  • “Preto de alma branca”: Tentativa de elogiar uma pessoa preta fazendo referência à dignidade dela como algo pertencente apenas às pessoas brancas.
  • “Macumbeiro/Galinha de macumba/ Chuta que é macumba”: Expressão que discrimina as(os) praticantes de religiões de matriz africana.

Informações à Imprensa:
Assessoria de Comunicação da SEDH
Juliana Borges
(27) 3636-1334 / (27) 99926-4669

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A origem e significados dos ditados populares ditos na escravidão

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Muitas expressões que falamos hoje nasceram séculos atrás, com outra forma e outro sentido. A tradição oral se apropria das palavras e seu sentidos e promove adaptações conforme o contexto histórico. O professor de Língua Portuguesa Reinaldo Pimenta diz que a história das palavras é a história do próprio homem. “Elas nascem e atravessam idiomas, mudando quase sempre na forma – para se adaptarem à fala de um povo – e muitas vezes no conteúdo, revelando o olhar e o pensar dos novos usuários”, escreveu na apresentação do livro A Casa da Mãe Joana, uma coleção de origens curiosas de palavras e frases populares.

A professora de Língua Portuguesa do Colégio Marista Paranaense, Eliane Viture, explica que as expressões populares são criadas por meio do senso comum, da aplicação de conceitos religiosos, morais e filosóficos. “São expressões utilizadas no nosso cotidiano, vencendo a barreira do tempo. São parte da cultura de um povo, uma comunidade. Além de uma forma de comunicação, também enriquecem a língua, pois as palavras unidas possuem significados distintos dos vocábulos isolados.”

A Gazeta do Povo resgatou a história por trás de algumas das expressões mais comuns do linguajar coloquial brasileiro:

Abraço de tamanduá

Tamanduá tem origem no tupi (tá-monduá) e dá nome a um caçador de formigas. Mamífero e desdentado, o bichinho parece não representar grande perigo para ninguém. Ledo engano. Não é à toa que “abraço de tamanduá” ganhou o sentido de “abraço de amigo falso”. Quando o tamanduá avista um inimigo, ergue-se nas patas traseiras e abre as dianteiras para aquele abraço. Diante de recepção tão calorosa, o inimigo se aproxima. É aí que o tamanduá se revela: abraça a vítima e lhe crava as unhas nas costas.

Arranca-rabo

Atire a primeira pedra que nunca teve ou testemunhou um arranca-rabo na vida? Pois é, a expressão faz referência a uma grande discussão ou briga envolvendo muitas pessoas. A origem da expressão remonta às batalhas de muito antigamente, quando arrancar o rabo do cavalo do inimigo era visto como uma façanha digna dos maiores guerreiros. A mania chegou a Portugal e ao Brasil – aqui, os cangaceiros aderiram à prática e passaram a descaudar o gado das fazendas como forma de humilhar os proprietários.

Rodar a baiana

Quando alguém ameaça rodar a baiana, sai de perto: é confusão na certa. Mas e a baiana, o que tem a ver com gente armando barraco?

A expressão tem origem no carnaval do início do século 20, quando alguns engraçadinhos tinham a péssima mania de distribuir beliscões no bumbum das mulheres. As tradicionais baianas também eram vítimas do assédio. Revoltadas, passaram a desfilar com capoeiristas disfarçados, fantasiados tal qual uma baiana. Porém, ao receber um beliscão inapropriado, os capoeiristas revidavam com navalhas. Eis a cena: beliscão, giro da baiana, confusão.

O fim da picada

Picada é aquela faixa limpa de terra, entre a roça e o mato, para evitar que o fogo ateado no roçado não alcance o mato. O fim da picada é, portanto, um local perigoso para quem estiver ateando o fogo no roçado. Picada também é a trilha feita geralmente a facão para facilitar a passagem por meio da mata e marcar o caminho para a volta. Uma pessoa que desaparece em uma dessas trilhas é facilmente encontrada pois, em tese, basta seguir a picada. Mas, se se chega ao fim da picada sem encontrar o desaparecido, significa que algo muito grave aconteceu com a pessoa – do contrário, a picada continuaria. Assim, fim da picada serve para falar de situações ruins, absurdas.

Tirar o pai da forca

Todo mundo sabe que a criatura que vai tirar o pai da forca está apressada. A origem da expressão está em Santo Antônio, o casamenteiro. A história conta que Antônio fazia um sermão no convento de Arcella, onde vivia, quando soube que seu pai havia sido condenado à forca. Antônio então teria colocado a mão no rosto, transportado-se espiritualmente para Lisboa e defendido o pai no tribunal, conseguindo sua absolvição. Para quem ouvia seu sermão, no convento, passou apenas um instante de silêncio. Eles sequer poderiam desconfiar a manobra que Antônio acabara de fazer para salvar o pai.

Cheio de nove horas

Aposto que você conhece alguém “cheio de nove horas”. A expressão é utilizada para dizer daquela pessoa cheia de frescuras e manias. Mas e o que as manias alheias têm a ver com nove horas? O pesquisador Luís da Câmara Cascudo, no livro Locuções tradicionais do Brasil, explica que, no século 19, a marca das nove horas da noite era uma espécie de regulador da vida social brasileira. Quando o relógio marcava 21 horas, era hora de se despedir das visitas e convivas e se recolher. Estender-se não pegava bem. Aqueles avistados pelas ruas depois das nove horas eram associados à boemia, aos pândegos.

Uma pessoa cheia de nove horas é, portanto, aquela pessoa meticulosa, cerimoniosa, apreciadora de regras e restrições, afeita aos códigos sociais que muitas vezes apenas complicam o que é simples.

Onde Judas perdeu as botas

Embora não haja registro ou nem mesmo indícios nos relatos bíblicos de que Judas Iscariotes, o discípulo que delatou Cristo, usasse botas, uma antiga história popular dá conta de que o traidor escondeu a recompensa recebida por entregar Cristo aos judeus justamente em um par delas. Como até hoje ninguém conseguiu encontrar as botas recheadas de moedas, diz-se “onde Judas perdeu as botas” daqueles lugares longínquos ou quando nem promessa a São Longuinho ajuda a encontrar um objeto perdido.

Pensar na morte da bezerra

Outra expressão alterada pela tradição oral. A original dizia “Pensar na morte do Bezerra”, pois fazia menção à morte de um homem de nome Bezerra que, após ser acusado de um crime hediondo, teria sido espancado por populares até a morte. O episódio teria sido tão violento que quando alguém era flagrado com ar pensativo, dizia-se que estava “pensando na morte do Bezerra”. Hoje, a frase é evocada na mesma situação, mas agora o indivíduo pensativo, preocupado, está é pensando na morte da bezerra mesmo.

Sem eira, nem beira

Um sujeito sem eira nem beira é aquele sem dinheiro e sem juízo. Antigamente, “eira” designava um espaço de terra batida ou cimentada, próximo às casas, onde se limpavam e secavam frutos e cereais. Possuir uma eira significava ser proprietário e produtor, ou seja, possuir riquezas. Já “beira” é o nome dado à parte saliente do telhado que sobressai da parede e serve para proteger da chuva. Aqueles que possuíam eira e beira eram pessoas de posses, dinheiro e cultura. Quem não tinha eira nem beira eram aqueles menos abastados.

Espírito de porco

A expressão designa uma pessoa inconveniente, atrapalhada, incômoda. No Brasil Colônia, os escravos faziam todo tipo de trabalho, mas tinham verdadeiro pavor de abater porcos. A crença popular dizia que os espíritos suínos atormentavam seus algozes durante à noite.

Ir para a cucuia

Fala-se que o falecido “foi para a cucuia”. A expressão surgiu no Rio de Janeiro, em um bairro da Ilha do Governador chamado Cacuia. Quando algum morador da região falecia, os conhecidos diziam que a pessoa foi para o cemitério da Cacuia. A tradição oral transformou Cacuia em cucuia.