A malandragem cantada na música popular brasileira

O samba-malandro ajuda a refletir sobre as diferentes formas de violência que se acumulam em nossa sociedade

Em 16 de setembro de 1954, a seção “Notas Policiais” do jornal O Estado de S. Paulo publicava duas ocorrências protagonizadas por malandros:

“Notas Policiais” do jornal O Estado de S. Paulo | Imagem: Reprodução/Acervo Estado

“APREENSÃO DE MACONHA — Há tempos, Manoel Fernandes, proprietário do Bar e Bilhares Libanês, á rua do Triunfo, 15, queixou-se á Delegacia de Costumes de que vários malandros traficavam com maconha em seu estabelecimento comercial. Ontem, investigadores daquela especializada efetuaram uma diligencia no local e apreenderam 30 pacotes contendo maconha. Á aproximação dos investigadores, os malandros fugiram, não sendo possível prendê-los.

PRISÃO EM FLAGRANTE — Ontem, no interior do Banco Londres, foi preso em flagrante Luis Parisi, de 22 anos de idade, solteiro, residente á rua Três n.55, em Santos, quando furtava Cr$ 26.000,00 de José Souza Oliveira, de 66 anos de idade, casado, morador á avenida São João, 300. A vítima pouco antes retirara da Caixa Economica Federal Cr$ 60.000,00 e fora seguida pelo malandro até o banco. Luis Parisi foi encaminhado á Delegacia de Repressão á Vadiagem e recolhido ao xadrez.”

As notícias destacadas podem causar alguma surpresa, em especial, quando se tem em mente aquela figura clássica cantada desde os anos 1920 em nossa música popular: o finório de chapéu de palha, terno branco ou camisa listrada, com o baralho e a navalha à mão, que faz samba e escapa do trabalho, como na letra do emblemático samba “Lenço no Pescoço”, de Wilson Baptista, gravado por Silvio Caldas, em 1933.

Porém, até a primeira metade do século XX, o malandro era uma personagem recorrente nas páginas policiais, sem necessariamente obedecer ao estereótipo cristalizado pelas letras de samba. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, chamava de “malandros” personagens tão diversas quanto um japonês que falsificava molho de pimenta com terra, um rapaz negro que aplicava golpes por saber falar inglês, um soldado do exército que cometia furtos no ônibus, batedores de carteira chilenos, curandeiros discriminados como exploradores da “credulidade popular”, vendedores de maconha ou de cocaína, desordeiros, assaltantes, exploradores na zona do meretrício, entre outros tipos, que agiam amparados na esperteza ou no uso de armas brancas ou de fogo.

“….é possível compreender a malandragem como uma estratégia cotidiana de sobrevivência para um grande número de indivíduos fora do mundo visível do trabalho.”

A partir dessa constatação, a ideia da malandragem ganha abrangência e suscita outras questões, que podem ser pensadas ao se considerar as relações entre a sociedade e suas expressões artísticas. A situação social de nosso país dá pistas sobre a ressonância da temática malandra na música popular brasileira. Apresentada nas canções por um viés individual, como uma forma de resistência ou de descrença ao batente, no plano prático, é possível compreender a malandragem como uma estratégia cotidiana de sobrevivência para um grande número de indivíduos fora do mundo visível do trabalho. Essa população buscaria alternativas para conseguir dinheiro, entre a mendicância, o subemprego e os expedientes eventuais, que poderiam incluir, por exemplo, a prática de ilícitos, a venda de proteção, o comércio informal ou a produção de sambas (especialmente, a partir do desenvolvimento da indústria do Rádio e do Disco).

Há que se considerar ainda o significado que as narrativas cantadas sobre malandros possuíam à época em que tais notícias ocupavam as páginas dos jornais e como se transformaram à medida em que outras personagens fora da lei foram ganhando relevância. Citado na imprensa como sinônimo para vigarista, vagabundo, ladrão, entre outros contraventores e criminosos, o malandro correspondia a uma figura de marginalidade ao longo de um período de nossa história.

Mesmo em seus assuntos clássicos, como a vadiagem, a valentia, o universo do samba e da boemia, os conflitos com os representantes da lei e com as mulheres, o samba-malandro ajuda a refletir sobre as diferentes formas de violência entremeadas ao cotidiano. Em “Nega Dina”, samba de Zé Keti, gravado por Germano Mathias, em 1965, boa parte desses temas estão presentes. Na narrativa cantada, ouve-se o desabafo de um malandro, procurado por sua mulher, Dina, nos morros do Rio de Janeiro. Ao encontrá-lo, Dina faz escândalo e “quizumba”, mas de acordo com o sugestivo narrador, o motivo da irritação não seria propriamente o seu chá de sumiço, e sim o interesse da mulher na “grana”, que ele não lhe entrega há uma semana.

A partir do desacerto com a mulher, o malandro assume um papel de “vítima das circunstâncias”, ao comentar com naturalidade que “dá duro no baralho pra poder viver” e relatar a dificuldade de se esconder da polícia para não entrar “em cana, toda hora, sem apelação”. A brutalidade parte do conflito do casal para se mostrar presente também por meio das relações com o capital, até culminar na arbitrariedade policial (destaque para as rimas Dina — grana — cana). Não à toa, no desfecho da letra do samba, o protagonista se justifica: “sou um marginal brasileiro” — confissão significativa também por revelar uma inter-relação da marginalidade econômica e social.

As letras de Germano Mathias apresentam discussões sobre o imáginário da malandragem | Foto: Joana Gudin

A lembrança de Germano Mathias também é oportuna para levar adiante a discussão sobre os estereótipos que povoam o imaginário da malandragem. Apesar das notícias listadas acima, se a figura de um malandro paulistano e branco causa estranhamento, é preciso recordar que o samba de Germano está enraizado nas rodas de batucada de engraxates que aconteciam na praça da Sé, na João Mendes ou na Clóvis Bevilacqua, onde ele adquiriu o hábito de batucar na tampinha da lata de graxa. Sua malandragem decorre ainda das experiências diárias de “viração” entre prostitutas, rufiões, boêmios, ambulantes, traficantes, valentes e outros frequentadores do submundo paulistano.

“….nas letras do samba-malandro, a violência atinge ou é praticada por todo rol de personagens, em nuances diversas, a começar pela ridicularização e intimidação verbal.”

Também é o caso de prestar atenção ao gesto artístico do intérprete, com a sua voz que ginga, ao improvisar o canto no samba sincopado. Em suas performances, a potência malandra faz com que se contrariem expectativas em relação à “terra do trabalho” e aos seus habitantes, passando uma rasteira nos determinismos e abrindo caminhos para o samba-malandro muito além do Rio de Janeiro, onde o estilo teria nascido e se desenvolvido no começo do século XX, como um produto da recém-surgida indústria cultural. O samba-malandro se tornou mais um “jeito de fazer samba”, relacionado ao gosto pessoal e à familiaridade dos compositores com o universo apresentado nas letras das canções. É o caso do pernambucano Bezerra da Silva, por exemplo, ou do mineiro Geraldo Pereira, que compôs com Cristóvão de Alencar e David Nasser, “Golpe Errado”, samba gravado por Cyro Monteiro em 1945.

Em vez do apego a regionalismos, para reconhecer o samba-malandro melhor é se ater em alguns temas recorrentes, como a violência. É compreensível que ela seja relativizada diante da alegria provocada pelo ritmo do samba, do aspecto despojado de crônica de costumes das narrativas cantadas ou do tom bem-humorado dos intérpretes. Mas nas letras do samba-malandro, a violência atinge ou é praticada por todo rol de personagens, em nuances diversas, a começar pela ridicularização e intimidação verbal, por exemplo, com o xingamento de “otário”. A exploração da mulher pelo malandro e a violência doméstica são outras situações recorrentes, assim como as disputas sangrentas entre rivais, o racismo e o abuso policial.

Além disso, há a violência da pobreza, de uma vida miserável no morro ou no asfalto. Essa discussão está presente no samba “Jerônimo”, que Eduardo Gudin (outro paulistano), compôs com Carlos Mello, em 1986, e parece ter sido feita “sob encomenda para a bossa de Germano Mathias”, conforme o biógrafo do sambista, Caio Silveira Ramos. A narrativa cantada descreve o perfil de um típico malandro e sua habilidade em inventar trambiques para, como um “herói anônimo”, triunfar no cotidiano de São Paulo. Apesar de os feitos de Jerônimo não serem dignos de louvor, é perceptível a conotação positiva desse malandro, especialmente na época da gravação, marcada por recessão e desemprego em massa, quando a população precisava vencer obstáculos semelhantes aos do protagonista para a sua subsistência no dia a dia.

Descrito como habilidoso, por lançar mão de estratégias baseadas na astúcia, como a “prosa”, o “trambique”, o “biscate” e a “arapuca”, Jerônimo não se equipara nem a um reles e inexperiente gatuno, nem a um outro tipo que estaria ganhando espaço na cena urbana. A aliteração malandro/ladrão estabelece textualmente essa oscilação entre atitudes mais ou menos criminalizadas e violentas:

Na letra da música já estão sugeridas as transformações da violência urbana, que fariam os casos narrados nos sambas sobre malandros agora soarem, muitas vezes, como simples anedotas. O samba-malandro pode não ter acompanhado a escalada da brutalidade no cotidiano, mas representa uma das etapas da “acumulação social da violência”, conceito do sociólogo Michel Misse, que estudou as representações dos malandros, dos vagabundos e dos marginais no Rio de Janeiro. Para ele, a valorização da malandragem, idealizada e limpa de traços de violência, é resultado do “aparecimento” do marginal. Assim, nos jornais, os malandros deixariam as páginas policiais para surgir vez ou outra nos cadernos de cultura.

Se escutarmos com atenção, na música popular também caberá a outra figura de marginalidade articular com lucidez as experiências violentas da nossa realidade, na virada para o século XXI. Essa personagem, “ginga e fala gíria” como o malandro, mas precisará assumir novas performances para responder à altura do desafio que é sobreviver (agora no sentido literal, permanecer vivo) na sociedade brasileira contemporânea. Esse assunto, porém, já é outro capítulo da nossa História.

Rachel Sciré é batuqueira, jornalista (2007) pela PUC-SP e mestra em Filosofia (2019) pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Sua dissertação de mestrado pesquisou as figuras dos malandros nos sambas de Germano Mathias e dos bandidos nos raps do Racionais MC’s. Desde 2018, é editora web do Sesc Vila Mariana.

colagem por Renan Abreu— radialista, palmeirense, aquariano. Trabalha desde 2015 no Sesc São Paulo, atualmente como editor web no Selo Sesc. Não toca nenhum instrumento musical, mas “quem sabe um dia”.

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