A forma da particiáção popular na constituinte de 88

A Constituição de 1988 é o texto-base que determina os direitos e os deveres dos entes políticos e dos cidadãos do nosso país. Foi escrita durante o processo de redemocratização do Brasil após o fim da Ditadura Militar, sendo conhecida por isso como Constituição Cidadã. Foi resultado de um amplo debate que se estendeu durante mais de um ano e simbolizou o início da Nova República.

Antecedentes

Os debates pela realização de uma nova constituição aconteciam em diversos grupos da oposição durante os anos finais da ditadura. Na década de 1970, quadros importantes da política brasileira já debatiam a questão, que também era abraçada por diversos intelectuais do país. Um exemplo muito conhecido aconteceu na Faculdade de Direito da USP quando Goffredo da Silva Teles leu um documento intitulado Carta aos brasileiros.

Esse documento havia sido escrito por advogados, intelectuais, políticos, estudantes, entre outros, e fazia uma defesa jurídica do Estado de Direito no Brasil. O documento atacava a Constituição outorgada pelos militares em 1967 e afirmava que uma Constituição somente era válida se fosse elaborada pelos representantes do povo em uma Assembleia Nacional Constituinte ou se elaborada durante um processo revolucionário legítimo.

Videoaula sobre os 30 anos da Constituição de 1988

Veja também: Constituição de 1967

Esse discurso em defesa da redemocratização e, consequentemente, da composição de uma Constituinte para a elaboração da nova Constituição foi ganhando força à medida que o regime militar se enfraquecia e conduzia a sua “redemocratização lenta e gradual”. Tanto que nos últimos governos (Geisel e Figueiredo) foram tomadas medidas que indicavam isso, como a revogação do AI-5.

Em 1984, o país foi varrido pelo que ficou conhecido como Diretas Já, isto é, a exigência popular de que o presidente brasileiro que seria eleito em 1985 viesse de eleição direta, ou seja, com participação popular. Na ditadura, como se sabe, as eleições presidenciais foram indiretas, ou seja, a escolha era feita pelos parlamentares apenas.

Os comícios em favor das Diretas Já espalharam-se pelo país, mobilizando milhares de pessoas. A emenda que reivindicava o retorno das eleições diretas no Brasil, a qual ficou conhecida como Emenda Constitucional Dante de Oliveira, acabou sendo derrotada, pois não conseguiu a quantidade suficiente de votos (precisava de 320 e obteve 298).

Após a derrota da Emenda Dante de Oliveira, os políticos da oposição juntaram-se na defesa da composição de uma Constituinte e de uma nova Constituição. O regime militar estava nas últimas, e a sentença que marcou o fim da ditadura no Brasil foi a eleição de Tancredo Neves (candidato da oposição) para presidente do Brasil. Um problema de saúde, entretanto, impediu a posse de Tancredo, e seu vice, José Sarney, assumiu a presidência.

Assembleia Nacional Constituinte e a nova Constituição

Durante o governo Sarney, foram realizadas eleições gerais no final de 1986 para eleição de governadores, senadores e deputados. Todos os deputados e senadores eleitos também compuseram a Assembleia Nacional Constituinte que tomou posse em 1º de fevereiro de 1987 e reuniu-se durante mais de um ano na elaboração da nova Constituição do Brasil.

Os trabalhos da Constituinte foram bastante longos porque os parlamentares não possuíam um projeto-base, tendo de iniciar literalmente do zero, além de terem sido debatidas diversas e mínimas questões conforme afirmação de Boris Fausto1. A elaboração da Constituição de 1988 ficou marcado pela ampla participação de grupos populares e é a Constituição mais democrática da história do nosso país.

A Assembleia Constituinte contou, ao todo, com 559 congressistas e uniu esforços no sentido de organizar uma nova carta constitucional que estruturasse as bases para a implantação de um regime democrático no Brasil. As historiadoras Lília Schwarcz e Heloísa Starling também afirmam que:

O novo texto constitucional tinha a missão de encerrar a ditadura, o compromisso de assentar as bases para a afirmação da democracia no país, e uma dupla preocupação: criar instituições democráticas sólidas o bastante para suportar crises políticas e estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros2.

O texto produzido do debate realizado pela Constituinte foi considerado bastante avançado nas questões que abarcam os direitos dos cidadãos e das minorias existentes no país. Isso foi resultado de uma ampla mobilização social, a qual teve participação ativa no processo de elaboração da Constituição. A participação popular ocorreu a partir da atuação de “associações, comitês pró-participação popular, plenários de ativistas, sindicatos” etc.3

Apesar dos diversos avanços que aconteceram com a Constituição de 1988, sobretudo nas questões relacionadas aos direitos sociais, ela também manteve entraves da nossa sociedade. O mais destacado está relacionado com a questão da reforma agrária, uma vez que não foi incluído nenhum artigo a respeito dessa questão.

Sobre o fracasso dos congressistas em acrescentar algo sobre a reforma agrária na Constituição de 1988, Thomas Skidmore afirma: “Uma nova organização de proprietários rurais, a União Democrática Rural, flanqueou os defensores da reforma agrária por intenso e efetivo lobbying. A mensagem conservadora era clara: garantias de direitos humanos eram inofensivas mas ameaças aos direitos de terra eram outro assunto.”4

O texto final da Constituição foi aprovado por Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, e promulgado no dia 5 de outubro de 1988. Contém 250 artigos e é a maior Constituição elaborada na história brasileira, inclusive, estando em vigor até hoje. A Constituição de 1988 foi a prova definitiva de que o poder dos militares encerrou-se, e a Nova República, período mais estável da democracia brasileira, consolidava-se.

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1
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, p. 445.
SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 488.
Idem, p. 488.
SKIDMORE, Thomas E. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, pp. 269-270.

*Créditos da imagem: FGV/CPDOC Por Daniel Neves

Graduado em História

Texto publicado originalmente na plataforma Cidades Educadoras

“Construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade e quaisquer outras formas de discriminação”; “reduzir desigualdades sociais e garantir o desenvolvimento nacional”.

A forma da particiáção popular na constituinte de 88
Esses são os pilares sobre os quais foi erguida a Constituição Federal de 1988, que comemora três décadas de aprovação em 22 setembro deste ano. Singular pela massiva participação social em sua construção e na extensa redação sobre direitos humanos, o marco legal promulgado em 5 de outubro se difere das constituições passadas, mais abstratas e menos populares.

A ideia de uma Constituição Federal como um documento magno e escrito, superior a qualquer lei, acontece pela primeira vez no Brasil pós 1822, quando é declarada a independência do País de Portugal. Dom Pedro I, que se proclamou imperador, elaborou na ocasião a autocrática Constituição de 1824 junto a uma assembleia constituinte pouco representativa.

Essa reportagem integra o especial 30 anos da Constituição Cidadã – série de matérias que analisa os trinta anos da Constituição Federal de 1988 e a relaciona com a manutenção da democracia brasileira, especialmente, nas áreas de educação, território e participação social.

Há divergências de quantas constituições se seguiram desde então, nos momentos de intempéries e alternância política no Brasil. Se existe dúvidas sobre seu número, não há nenhuma sobre terem sido constituições escritas a poucos punhos, com nenhuma participação popular, como explica Dimitri Dimoulis, professor de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Essas constituições, desde a Independência, serviram para organizar o poder e eram feitas por grupos que se fechavam em salas minúsculas, escreviam a constituição, a comparavam com versões anteriores e pronto.”

Essas constituições eram também frágeis e entraram em suspensão nos dois momentos ditatoriais da história brasileira: a ditadura de Getúlio Vargas – que durou de 1937 até 1945,  suspendendo os poderes legislativos e reintroduzindo medidas afrontosas aos direitos humanos como a pena de morte – e a Ditadura Militar (1964-1985), período mais longo de repressão autoritária.

Rafael Custódio, coordenador do programa de Violência Institucional da organização Conectas, relembra esse segundo período: “Em um primeiro momento, os militares mantêm a Constituição Federal em vigor, que era a de 1947, mas depois acabam promulgando uma nova constituição sob a égide do sistema militar, produzida numa lógica completamente diferente. Nela, o cidadão era visto como um ser que deveria estar a serviço do Estado e, potencialmente, um sujeito perigoso. Todas as políticas partiam do princípio que o Estado deveria ser protegido tanto das ameaças internas como externas.”

Partindo deste princípio de que o indivíduo não era um sujeito de direitos, as consequências nefastas desta constituição incluíram perseguições políticas, assassinatos, torturas e intensa repressão a qualquer ideologia contrária ao regime. Ao Estado, por sua vez, não era imputado o dever de garantir direitos fundamentais ao cidadão.

A forma da particiáção popular na constituinte de 88

Passeata dos 100 mil contra a ditadura militar, que aconteceu em 1968 / Crédito: Evandro Teixeira

Um norte para a redemocratização

Após vinte anos de ditadura, o Brasil tateava sua redemocratização, apesar de carregada de reminiscências autoritárias. O primeiro presidente a assumir em 1985, Tancredo Neves, foi escolhido pelo Congresso Nacional – composto, vale-se dizer, por muitos que participaram ativamente do regime militar.

Em paralelo, movimentos sociais e organizações da sociedade civil pressionavam a nova ordem política para que fossem feitas garantias pétreas de que o Brasil se comprometeria com o desenvolvimento social e não mais repetiria a violência e o horror do Estado nos chamados anos de chumbo.

A Constituição Cidadã assegurou que o Brasil se comprometeria com o desenvolvimento social e não mais repetiria a violência e o horror do Estado nos chamados anos de chumbo

Durante 19 meses, entre 1987 e 1988, foi feita então a tecedura do que seria a Constituição de 1988.  “A constituição de 1988 teve uma grande participação social. Propostas populares eram enviadas e grupos de movimentos sociais e entidades se envolviam em discussões com os deputados do Congresso Nacional em Brasília”, explica Dimitri.

O processo foi extenso e tecnicamente complexo, mas necessário para dar conta da participação popular. Além dos canais de participação institucionalizados pela Assembleia Nacional Constituinte, como sugestões, audiências públicas e emendas populares, foram criados fóruns de debate por setores da sociedade civil em áreas como Educação, Saúde e Habitação.

A segunda característica importante, e que confere à constituição uma extensão de mais de 200 páginas e 1,6 mil dispositivos, é a ênfase nos direitos humanos. “A Constituição de 88 está muito preocupada em orientar o legislador em como introduzir mudanças na sociedade. Se nas outras constituições existiam normas sobre direito à educação ou saúde, por exemplo, a de 1988 escreve páginas e páginas para guiar políticas públicas, oferecendo mecanismos para tirar do papel metas, direitos e objetivos”, relata o professor.

Para assegurar que o Estado é responsável pelos direitos que garantem o desenvolvimento integral do sujeito, um dos pontos mais importantes, segundo Dimitri, é sua vinculação orçamentária: “O documento determina a porcentagem do orçamento que vai para saúde, para educação e assim sucessivamente, garantindo e detalhando o quanto é necessário para que o direito de fato seja cumprido.”

Constituição como projeto de País

Mais do que um documento magno, a Constituição como foi redigida reflete um projeto de país democrático, no qual o Estado tem o dever de garantir os direitos e a população de cobrá-los caso não cumpridos com o acionamento do Judiciário. “Os constituintes quiseram tematizar no documento problemas sociais que eram muito anteriores à ditadura. A Constituição não é somente uma reação ao que aconteceu nos anos ditatoriais, mas uma reflexão sobre a história do país”, explica Dimitri.

Mais do que um documento magno, a Constituição como foi redigida reflete um projeto de país democrático, no qual o Estado tem o dever de garantir direitos

Para exemplificar, o professor discorre sobre o racismo, previsto como crime na Constituição no artigo 5 e fruto da luta de movimentos sociais negros e anti-racistas. “Não é que houve racismo especificamente na Ditadura, e sim que a história do Brasil é escravocrata e era necessário um compromisso para combater o racismo e outros problemas sociais já existentes”, explica.

Nesta perspectiva, a Constituição foi uma aposta do povo brasileiro na democracia e no Estado, ao oferecer ferramentas possíveis para que futuros governantes, independentemente de suas matrizes ideológicas, encontrassem nela caminhos para sua efetivação.

Desafios para a democracia

Construir uma constituição que é referência em democracia e garantia de direitos não determina, contudo, que esses direitos serão concretizados. A própria construção da Constituição foi resultado de lutas de pactuação entre setores progressistas e conservadores, onde ambas as partes tiveram que ceder para tornar a materialização do documento possível.

“Em panorama geral, nos últimos 30 anos, temos avançando em relação à Constituição. Temos certa estabilidade econômica, institucional e política, apesar do recente impeachment de Dilma Rousseff em 2016, cuja legalidade ainda é questionada”, avalia Rafael.

No que concerne aos direitos humanos ainda se está longe do prescrito, principalmente quando o escopo são os direitos das populações histórica e socialmente prejudicadas

Se houve relativa manutenção dos princípios democráticos, permitindo o funcionamento do sistema político, também é possível apontar, na opinião dos dois especialistas, que no que concerne aos direitos humanos ainda se está longe do prescrito, principalmente quando o escopo são os direitos das populações histórica e socialmente prejudicadas, como as populações tradicionais, negras e LGBT.

Isso se dá, segundo Dimitri, por conta de “certa seletividade constitucional”. Ou seja, existem artigos dentro da Constituição que são menos disputados e mais aceitos. Enquanto partes mais liberais da Constituição são priorizadas, vemos aquilo que diz de mudanças sociais ser silenciado.

“A liberdade de expressão, os direitos clássicos como à propriedade privada e o funcionamento – ainda que questionável – do sistema político, com eleições a cada quatro anos, são mais aceitos. Já no que de fato é novidade nesta Constituição, se analisado artigo por artigo e por áreas como Educação e Saúde, se percebem avanços, mas também graves deficiências.”

Participação social como razão e garantia da Constituição

A Constituição de 1988 e a própria democracia, no entanto, não são conquistas dadas e finitas. Sua manutenção é uma atividade perene: se foram os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que influenciaram progressivamente sua feitura, incidindo nos direitos sociais ante interesses de setores mais conservadores, é também a participação social praticada nos dias de hoje a ferramenta para garantir que a Constituição seja reconhecida e respeitada para o combate às desigualdades.

“Entende-se que a Constituição Federal precisa ser efetivada diariamente. Se as instituições públicas e privadas deixam de fazê-lo, ela acaba se tornando só um papel. É preciso ressaltar que essa responsabilidade compartilhada se faz no dia a dia, logo, a contínua pressão para sua efetivação é muito importante”, explica Rafael.

A forma da particiáção popular na constituinte de 88

Manifestação na Cinelândia na ocasião da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes / Foto: Mídia Ninja

Dimitri contrapõe. Para ele, a participação social enquanto um direito carece de ênfase no documento final constituinte. “Mesmo assim, a participação social ainda é um dos maiores aliados na efetivação da Constituição. Mandar um projeto de lei para o Senado, fazer protestos e manifestações, são alguns dos mecanismos de participação institucional do cidadão.”

A Constituição de 1988 e a própria democracia, no entanto, não são conquistas dadas e finitas. Sua manutenção é uma atividade perene

Entretanto, é consenso a necessidade de reconhecer a Constituição e lutar contra qualquer retrocesso que ameace o Brasil como Estado de Direito ante um momento de profunda crise econômica, social e institucional como a que o País vive e um cenário de eleições que promete uma forte polarização.

Para Rafael, o Brasil é um país relativamente novo, com pouca história constitucional e períodos curtos de estabilidade. São 30 anos sem nenhuma ruptura mais drástica, o que não torna, porém, o amadurecimento democrático garantindo.

“Uma crise como a que estamos vivendo pode ser uma abertura não para um processo de ruptura constitucional, mas para uma ferida que pode se abrir completamente nos próximos anos. A história não acontece de um dia para o outro, mas em processos espalhados pelo tempo. Por isso, é importante superar nossas diferenças para que pelo menos encontremos respeito à Constituição de 1988 e o que representa enquanto denominador comum”, conclui.

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